domingo, 30 de março de 2008

John Rawls, "Uma Teoria da Justiça"

«O papel da justiça
A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas. Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que a perda da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas por um maior número. Assim, numa sociedade justa, a igualdade de liberdades e direitos entre os cidadãos é considerada definitiva; os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes da negociação política ou do cálculo dos interesses sociais. A única justificação para mantermos uma teoria errada está na ausência de uma alternativa melhor; de modo análogo, uma injustiça só é tolerável quando necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo as virtudes primeiras da actividade humana, a verdade e a justiça não podem ser objecto de qualquer compromisso.
Estas proposições parecem expressar a nossa convicção intuitiva sobre o primado da justiça. [...]
[…] Admitamos, para assentar ideias, que uma sociedade é uma associação de pessoas, mais ou menos auto-suficiente, as quais, nas suas relações, reconhecem certas regras de conduta como sendo vinculativas e, na sua maioria, agem de acordo com elas. Suponhamos ainda que estas regras especificam um sistema de cooperação concebido para fomentar o bem dos que nela participam. Assim, embora uma sociedade seja uma tentativa de cooperação que visa obter vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada, simultaneamente, tanto por um conflito como por uma identidade de interesses. Há identidade de interesses uma vez que a cooperação torna possível uma vida que, para todos, é melhor do que aquela que cada um teria se tivesse de viver apenas pelos seus próprios esforços. Há conflito de interesses uma vez que os sujeitos não são indiferentes à forma como são distribuídos os benefícios acrescidos que resultam da sua colaboração, já que, para prosseguirem os seus objectivos, todos preferem receber uma parte maior dos mesmos. É necessário um conjunto de princípios que permitam optar por entre as diversas formas de ordenação social que determinam esta divisão dos benefícios, bem como obter um acordo sobre a repartição adequada dos mesmos. Estes princípios são os da justiça social: são eles que fornecem um critério para a atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social.
Assim, dir-se-á que a sociedade é bem ordenada quando não só é concebida para aumentar o bem dos respectivos membros mas quando é também efectivamente regida por uma concepção pública de justiça. Ou seja, trata-se de uma sociedade em que, por um lado, cada um aceita, sabendo que os outros também aceitam, os mesmo princípios da justiça e, por outro lado, em que, no geral, as respectivas instituições básicas satisfazem esses princípios, sendo reconhecidas como tal. Nesta situação, ainda que os sujeitos possam formular, uns contra os outros, exigências que sejam excessivas, eles reconhecem, apesar disso, um ponto de vista comum a partir do qual serão decididas as respectivas pretensões. Se as inclinações humanas se orientam para a prossecução do interesse próprio, tornado necessária a vigilância mútua, o seu sentido público da justiça torna a associação de todos possível e segura. Entre sujeitos com objectivos e fins díspares, a partilha de uma concepção comum da justiça estabelece os laços de amizade cívica; o anseio geral de justiça limita a prossecução de outros fins. Pode considerar-se que uma concepção pública da justiça constitui a regra fundamental de qualquer associação humana bem ordenada.
É certo que as sociedades existentes raramente estão bem ordenadas nos termos agora expostos, dado que a determinação do que é justo ou injusto é normalmente objecto de disputa. Os princípios que devem definir os termos básicos de qualquer associação são, eles próprios, objecto de discórdia. E no entanto pode ainda afirmar-se que, apesar do desacordo, cada um dos seus membros tem uma concepção da justiça. Ou seja, todos reconhecem a necessidade de um conjunto específico de princípios para atribuição de direitos e deveres básicos e para a determinação do que se entende ser a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação em sociedade, e estão dispostos a afirmá-lo. Assim, é natural que se considere que o conceito de justiça é distinto das várias concepções de justiça (…). Assim, os defensores das diferentes concepções da justiça podem, apesar disso, estar de acordo quanto ao facto de que as instituições são justas quando não há discriminações arbitrárias na atribuição dos direitos e deveres básicos e quando as regras existentes estabelecem o equilíbrio adequado entre as diversas pretensões que concorrem na atribuição dos benefícios da vida em sociedade.
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«O objecto da justiça
O objecto primário dos princípios da justiça social é a estrutura básica da sociedade, ou seja, a articulação das principais instituições sociais num sistema único de cooperação. Vimos que estes princípios devem presidir à tributação de direitos e deveres nestas instituições e determinar a distribuição apropriada dos encargos e benefícios da vida social. Mas não se devem, porém, confundir os princípios da justiça relativos às instituições com os princípios aplicáveis aos indivíduos e à sua acção em circunstâncias determinadas. Estes dois tipos de princípios aplicam-se a objectos diferentes e devem ser analisados separadamente.
Defino instituição como sendo um sistema público de regras que determina funções e posições, fixando, por exemplo, os respectivos direitos e deveres, bem como poderes e imunidades. De acordo com estas regras, certas formas de acção são permitidas e outras proibidas; e, em caso de infracção, elas prevêem apenas e medidas de protecção contra as violações.
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«Bens primários
“[…] [S]upunhamos que a estrutura básica da sociedade distribui certos bens primários, isto é, coisas que o homem racional presumivelmente deseja.. Estes bens têm normalmente um uso, independentemente do plano de vida racional da pessoa em causa. Para simplificar, admitamos que os principais bens primários à disposição da sociedade são direitos, liberdades e oportunidades, rendimento e riqueza (mais adiante, na terceira parte, o bem primário respeito por si próprio tem um lugar central). Estes são os bens primários sociais. Outros bens primários há, como a saúde e o vigor, a inteligência e a imaginação, que são naturais; embora a sua posse seja influenciada pela estrutura básica, não estão sobre o seu controlo directo. Imagine-se então um sistema inicial hipotético no qual todos os bens primários sociais estejam igualmente distribuídos: todos têm direitos e deveres semelhantes e o rendimento e a riqueza são correctamente partilhados. Esta situação fornece-nos um ponto de referência para avaliar a evolução posterior.
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«A posição original
A ideia condutora é antes a de que os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica formam o objecto do acordo original. Esses princípios são os que seriam aceites por pessoas livres e racionais, colocadas numa situação inicial de igualdade e interessadas em prosseguir os seus próprios objectivos, para definir os termos fundamentais da sua associação. São estes princípios que regulamentam os acordos subsequentes; especificam as formas da cooperação social que podem ser introduzidas, bem como as formas de governo que podem ser estabelecidas. É a esta forma de encarar os princípios da justiça que designo por teoria da justiça como equidade.
Assim, partimos da ideia de que os sujeitos que estabelecem uma forma de cooperação em sociedade escolhem em conjunto, num acto comum, os princípios que devem orientar a atribuição de direitos e deveres básicos e a divisão dos benefícios da vida em sociedade. Decidem antecipadamente do modo como vão resolver as exigências que formulam mutuamente e qual vai ser a carta fundamental da sociedade. Da mesma forma que cada pessoa deve decidir, através de uma análise racional, o que é que constitui o seu bem, isto é, o sistema de objectivos que lhe é racional prosseguir, também um conjunto de pessoas deve decidir, de uma vez por todas, o que é para elas considerado justo ou injusto. É a escolha que será feita por sujeitos racionais nesta situação hipotética em que todos beneficiam de igual liberdade - aceitando por agora que o problema colocado por escolha tem solução - que determina os princípios da justiça.
Na teoria da justiça como equidade, a posição da igualdade original corresponde ao estado natural na teoria tradicional do contrato social. Esta posição original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma certa concepção da justiça.
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«A posição original é definida como o status quo no qual quaisquer acordos alcançados são justos. É uma situação em que as partes estão representadas igualmente como pessoas morais e o resultado não é condicionado por contingências arbitrárias ou pelo equilíbrio relativo das forças sociais. […]
[…] [É] evidente que a posição original é uma situação puramente hipotética. Nada de semelhante tem de ocorrer de facto, embora possamos, seguindo deliberadamente as limitações nela expressa, estimular a reflexão das partes intervenientes. A concepção original não visa explicar a conduta humana, excepto na medida em que tenta apreciar os nossos juízos e ajuda a explicar o facto de termos um sentido da justiça. A teoria da justiça como equidade é uma teoria dos nossos sentimentos morais, na forma como se manifestam através dos nossos juízos reflectidos e ponderados, obtidos através de um equilíbrio reflectido. Estes sentimentos afectam presumivelmente, em alguma medida, os nossos pensamentos e a nossa acção. Assim, embora a concepção da posição original seja parte da teoria da conduta moral, daí não decorre de modo algum que haja situações concretas que se lhe assemelhem. O que é necessário é que os princípios que são objecto de acordo desempenham o papel exigido no nosso raciocínio e na nossa conduta moral.
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«O véu de ignorância
Para tal, parto do princípio de que as partes estão situadas ao abrigo de um véu de ignorância. Não sabem como é que as várias alternativas vão afectar a sua situação concreta e são obrigadas a avaliar os princípios apenas com base em considerações gerais.
Parte-se do princípio de que as partes desconhecem certos factos concretos. Antes de mais, ninguém conhece o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou estatuto social; também não é conhecida a fortuna ou a distribuição de talentos naturais ou capacidades, a inteligência, a força, etc. Ninguém conhece a sua concepção do bem, os pormenores do seu projectos de vida ou sequer as suas características psicológicas especiais, como a aversão ao risco ou a tendência para o optimismo ou pessimismo. Mais ainda, parto do princípio de que as partes não conhecem as circunstâncias particulares da sua própria sociedade, isto é, desconhecem a sua situação política e económica e o nível de civilização e cultura que conseguiu atingir. Os sujeitos na posição original não sabem a que geração pertencem. Estas amplas restrições à informação são, em certa medida, necessárias porque as questões de justiça social tanto surgem entre gerações como dentro da mesma geração, de que é exemplo o problema da taxa adequada da poupança ou a conservação dos recursos naturais e do ambiente natural. […] Devem escolher princípios cujas consequências estejam dispostos a viver, seja qual for a geração a que pertencem.
Tanto quanto possível, portanto, o único facto concreto de que as partes têm conhecimento é o de que a sua sociedade está submetida ao contexto da justiça e às respectivas consequências. É dado como adquirido, no entanto, que conhecem os factos gerais da sociedade humana. Compreendem os assuntos políticos e os princípios da teoria económica; conhecem as bases da organização social e das leis da psicologia humana. Na verdade, presume-se que as partes conhecem os factos gerais que afectam a escolha dos princípios da justiça.
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»Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. Assim se garante que ninguém é beneficiado ou prejudicado na escolha daqueles princípios pelos resultados do acaso natural ou pela contingência das circunstâncias sociais. Uma vez que todos os participantes estão em situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa (fair). […] Isto explica a propriedade da designação «justiça como equidade»: ela transmite a ideia de que o acordo sobre os princípios da justiça é alcançado numa situação inicial que é equitativa. […]»
«Consideremos o ponto de vista de alguém na posição original. Não há qualquer meio que lhe permita obter vantagens especiais para si próprio. Por outro lado, também não há justificação para que consinta em sofrer desvantagens particulares. Dado que não lhe é razoável esperar obter mais do que uma parte igual à dos outros na divisão dos bens sociais primários, e na medida em que não é racional aceitar receber uma parte menor, a melhor solução será a de reconhecer como primeiro passo um princípio da justiça que exija uma distribuição igual. Na verdade este princípio é, dada a simetria das partes, tão óbvio que a todos deve ocorrer imediatamente. Assim, os intervenientes partem de um princípio que exige iguais liberdades básicas para todos, bem como uma igualdade equitativa de oportunidades e a divisão igual dos rendimentos e da riqueza.
Mas, mesmo defendendo firmemente a prioridade das liberdades básicas e da igualdade equitativa de oportunidades, não há razão para que este reconhecimento inicial seja definitivo. A sociedade deve ter em conta a eficiência económica e as exigências da organização e da tecnologia. Se houver desigualdades de rendimento e de riqueza, bem como diferenças de autoridade e de graus de responsabilidade, que permitam que todos estejam em melhor situação, por comparação com o padrão da igualdade, porquê permiti-las? (…) Portanto, a estrutura básica deve admitir estas desigualdades desde que elas melhorem a situação de todos, incluindo as dos menos beneficiados, contanto que sejam compatíveis com a igual liberdade e com a igualdade equitativa de oportunidades. Como as partes têm como ponto de partida uma divisão igual de todos os bens sociais primários, os que beneficiam menos têm, por assim dizer, um poder de veto. Chegamos assim ao princípio da diferença. Tomando a situação de igualdade como base de comparação, os sujeitos que ganharem mais devem fazê-lo em termos que sejam justificáveis para os que ganharem menos.
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«Os dois princípios da justiça
Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas
[1] iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio
As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas de forma a que, simultaneamente:
a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados (...) , e
b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades.
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«Ordenação dos princípios da justiça
Estes princípios devem ser dispostos numa ordenação serial, tendo o primeiro princípio prioridade sobre o segundo. Esta ordenação significa que as violações das liberdades básicas protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas, ou compensadas, por maiores vantagens económicas e sociais. Tais liberdades têm um âmbito central de aplicação dentro do qual só podem ser limitadas, ou ser objecto de compromisso, quando entrem em conflito com outras liberdades básicas. Uma vez que podem sofrer limitações quando tal suceda, nenhuma destas liberdades é absoluta; mas, qualquer que seja o ajustamento que sofram na formação de uma sistema, este sistema será o mesmo para todos. […]
O conteúdo dos dois princípios é assaz específico e a sua aceitação repousa em certas hipóteses que terei de explicar e justificar. Por agora, deve observar-se que estes dois princípios constituem um caso especial de uma concepção mais geral de justiça que pode ser expressa da seguinte forma:
Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, rendimento e riqueza, e as bases sociais do respeito próprio – devem ser distribuídos igualmente, salvo se uma distribuição desigual de algum desses valores, ou de todos eles, redunde em benefício de todos.
Assim, a injustiça é simplesmente a desigualdade que não resulta em benefícios de todos.
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«A regra maximin
Uma vez que os dois princípios garantem uma ordem social que mantém estas condições, serão eles e não princípio da utilidade que serão objecto de estudo. […]
[…] [O]s dois princípios são, pelo menos, uma condição plausível da justiça. O problema, no entanto, está em saber como formular argumentos de natureza mais sistemática em seu favor. […] Para tal, é útil, (…) pensar nos dois princípios como a solução maximin para o problema da justiça social. Há uma relação entre os dois princípios e a regra maximin para a escolha em condições de incerteza. Tal decorre claramente do facto de os dois princípios serem aqueles que qualquer sujeito escolheria para a concepção de uma sociedade na qual o seu lugar lhe fosse atribuído por um seu inimigo. A regra maximin diz-nos para ordenar as alternativas em função das piores de entre as respectivas possíveis: devemos adoptar a perspectiva cuja pior consequência seja superior a cada uma das piores consequências das outras. É evidente que as pessoas na posição original não partem do princípio que o seu lugar na sociedade é decidido por um inimigo malévolo. […] [E]sta analogia sugere que, se a posição original foi descrita em termos tais que para as partes é racional adoptarem a atitude conservadora expressa por tal regra, uma argumentação conclusiva em favor destes princípios pode efectivamente ser construída.
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[1] “Entre elas contam-se, como particularmente importantes, a liberdade política (direitos de votar e de ocupar uma função pública) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proibição da opressão psicológica e da agressão física (direito à integridade pessoal); o direito à propriedade privada e à protecção face à detenção e à prisão arbitrárias, de acordo com o princípio do domínio da lei (rule of law).” [Rawls, John (1993). Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Editorial Presença, p. 68 (adaptado por Vítor João Oliveira)].
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Rawls, John (1993). Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Editorial Presença, pp. 27-9; 63; 69; 33; 109-10; 121;33-4; 132-3; 239; 68-9; 131-3 (adaptado por Vítor João Oliveira).

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