sábado, 22 de março de 2008

Jürgen Habermas, "Três Modelos Normativos de Democracia (Parte I)

«Com um certo exagero no que diz respeito à tipificação ideal, irei referir-me a seguir às compreensões liberal e republicana da política – expressões que hoje marcam frentes opostas no debate desencadeado nos Estados Unidos pelos chamados comunitaristas. Referindo-me a F. Michelman, descreverei em primeiro lugar os dois modelos de democracia (polémicos, quando contrapostos), sob o ponto de vista dos conceitos de cidadão do Estado e direito, e segundo a natureza do processo político de formação da vontade. Na segunda parte, com base na crítica ao peso ético excessivo que se impõe ao modelo republicano, desenvolverei então uma terceira concepção, procedimental, que gostaria de denominar de “política deliberativa”.
I
A diferença decisiva reside na compreensão do papel que cabe ao processo democrático. Na concepção liberal, esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para que se volte para o interesse da sociedade: entendendo-se o Estado como o aparato da administração pública e a sociedade como sistema de circulação de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, estruturado segundo as leis de mercado. A política, sob essa perspectiva, e no sentido de formação política da vontade dos cidadãos, tem a função de agregar e impor interesses sociais em particular mediante um aparelho do estado já especializado no uso administrativo do poder político para garantir fins colectivos.
Segundo a concepção republicana, a política não se esgota nessa função de mediação. Ela é constitutiva do processo de formação da sociedade como um todo. A política é entendida como uma forma de reflexão sobre um complexo de vida ético (no sentido hegeliano). Ela constitui o meio através do qual os membros de comunidades solidárias surgidas de forma natural ganham consciência da sua dependência recíproca e, como cidadãos, levam por diante essas relações de reconhecimento recíproco em que se encontram, transformando-as de forma voluntária e consciente numa associação de portadores de direitos livres e iguais. Com isso, a arquitectura liberal do Estado e da sociedade sofre uma mudança importante. Ao lado de uma instância hierárquica reguladora do poder soberano estatal e de uma instância reguladora descentralizada do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dos interesses próprios, surge também a solidariedade e a orientação pelo bem comum como terceira fonte de integração social. Essa formação horizontal da vontade política, orientada para o entendimento ou para um consenso alcançado por via da argumentação, deve mesmo gozar de primazia, de um ponto de vista genético ou normativo. Para a prática da autodeterminação por parte dos cidadãos no âmbito do Estado supõe-se uma base de sociedade civil autónoma que não dependa tanto da administração pública como do intercâmbio privado, que protegeria a comunicação política da absorção pelo aparelho do estado ou da assimilação à estrutura do mercado. Na concepção republicana, o espaço público e político e a sociedade civil, como seu sustentáculo, assumem um significado estratégico. Ambos devem garantir a força integradora e a autonomia da prática de entendimento mútuo entre os cidadãos do Estado. Ao divórcio da comunicação política em relação à sociedade económica corresponde a união entre o poder administrativo e o poder comunicativo decorrente do processo de formação da opinião e da vontade política.
Assinalarei, tendo em vista a avaliação do processo político, algumas consequências dessas concepções rivais.»

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