«A ideia de um cidadania global ou de uma cidadania mundial – tomo estas noções como sinónimas – é altamente controversa. Muitos defendem que estamos ainda nos primórdios de uma cidadania mundial, enquanto outros consideram a ideia absurda. Uma forma de compreender porque existem posições tão diversas sobre se de facto somos cidadãos globais é através de análise de um conjunto de afirmações concretas e contraditórias que apresentarei a seguir e do exame das razões que se pode avançar para cada uma delas. No mínimo isto revelará a complexidade desta área. Para cada caso apresentarei um comentário crítico o qual será por vezes um resumo das posições opostas, e noutras a defesa de uma posição que reconhece aspectos relevantes assumidos pelo lado contrário.
1. Ética ou institucional?
(a) A cidadania mundial é uma concepção essencialmente ética sobre o que as pessoas estão moralmente obrigadas a fazer.
(b) A cidadania mundial é uma concepção essencialmente institucional sobre a pertença a instituições de um tipo especificamente global.
A favor de (a): A ideia essencial de uma cidadania mundial vem dos Estóicos e tinha que ver com a relação não-artificial que mantínhamos com o universo (e que poderíamos reconhecer se fossemos suficientemente sábios); o que se rejeitava era a relevância das identidades artificiais e contingentes dos seres vivos em comunidades políticas concretas (por exemplo, Heater, 1996). As comunidades políticas são artificiais no sentido em que são criadas e modificadas pela vontade dos seres humanos e são contingentes porque é um acidente eu ter nascido num dada comunidade política, sendo a minha pertença contingente bastante diversa da minha natureza essencial como ser humano. No mundo moderno, a cidadania mundial pode expressar-se através de vários tipos de instituições (e pode um dia expressar-se através de instituições artificiais de governança mundial). Mas permanece como núcleo duro da cidadania mundial a afirmação de um compromisso moral individual básico, baseado na lei natural, nos direitos humanos, no respeito kantiano pelas pessoas ou numa qualquer teoria ética similar que não funde a ética numa convenção ou num acordo. É a partir desta vantagem que qualquer pessoa pode distanciar-se de qualquer instituição actual, global ou de outro tipo (como inúmeros Estóicos fizeram relativamente ao que na altura era, de facto, um império mundial, nomeadamente o Império Romano). Por exemplo, um futuro estado mundial pode inquestionavelmente transformar qualquer pessoa num cidadão mundial num sentido legal, mas esta pode estar profundamente descontente com esse facto por causa das políticas desse estado e, como verdadeiro cidadão mundial, responder apenas perante uma lei moral mais elevada.
A favor de (b): A cidadania mundial não faz sentido a não ser que seja entendida em termos institucionais, uma vez que a cidadania é ela própria um conceito institucional. Podemos ser seres humanos por natureza (com certos deveres e direitos enquanto tal) mas o estatuto de cidadania é essencialmente artificial, dependendo de uma construção de tipos de instituições concretas em virtude das quais somos cidadãos.
Esta posição pode ser adoptada em primeiro lugar por alguém que queira rejeitar a ideia de uma cidadania mundial com base no facto de não existirem instituições relevantes. Por exemplo, a defesa que David Miller faz da cidadania baseada no estado-nação assume esta forma (Miller, 1999). Então a ideia não é considerada a não ser como concepção moral de interesse e relevância duvidosos (e enganadores para um mundo moderno que possui ideias claramente estabelecidas sobre a cidadania independentemente do que possa ter acontecido no mundo antigo).
Por outro lado, a posição pode ser adoptada pelos que aplaudem a ideia de uma cidadania global. Quer dizer, enquanto que a ideia de cidadania mundial pode ser estendida para além do politicamente convencional, essa extensão depende de forma crucial de um factor institucional, nomeadamente do facto de efectivamente existirem ou desejar que existam certos tipos de instituições através das quais uma cidadania mundial possa expressar-se. Segundo esta perspectiva, seremos cidadãos mundiais? Alguns poderão dizer que não, mas que devemos empenhar-nos na criação de instituições relevantes; outros dirão que já somos cidadãos globais dadas as instituições já existentes (ver 3 mais à frente). Muito depende da força das nossas convicções relativamente à existência dessas instituições no que pode ser designado de “sociedade civil global” e ao quão importante é o que agora existe comparado com o esforço para a sua criação.
Comentário crítico: Embora existam contextos em que é perfeitamente apropriado alguém apresentar uma tese moral (na linha dos Estóicos), e possam haver circunstâncias futuras em que as instituições (por exemplo, um governo mundial ou formas de governança global aproximadas) possam apresentar uma defesa institucional incontroversa de carácter empírico, no mundo moderno as defesas de uma cidadania mundial resultam da combinação de componentes morais e institucionais. A tese moral diz que em princípio possuímos obrigações de um tipo global que exigem, para que se possam expressar de forma adequada, o desenvolvimento de instituições apropriadas, e a tese institucional implica que essas instituições já existam embora numa forma radicalmente incompleta.
A perspectiva ética e a perspectiva institucional devem ser objectivamente aceites (independentemente de serem ou não aceites pelos indivíduos). As pessoas podem subjectivamente afirmar-se como “cidadãos mundiais” desde que reconheçam tais obrigações e instituições. É claro que a robustez dessas instituições depende efectivamente da força do reconhecimento dessa condição. Sem dúvida que precisamos daquilo que H. G. Wells chamou de “mentalidade cosmopolita” (através da qual “consideramos uma comunidade mundial” antes de, nas palavras de John Macmurray, a intenção estar completamente actualizada (Macmurray, 1957)) e isto tem que preceder a sua concretização nas instituições (cfr. Heater, 1996). Isso é análogo à concepção moral de possuir um corpo defendida por F. H. Bradley (instituições, regras e práticas públicas partilhadas) e uma alma (vontades morais individuais) (Bradley, 1876). Há uma relação dialéctica entre as duas. Na realidade, há aqui três elementos a considerar: (i) a tese da moral objectiva feita pelo pensador, como a afirmação arrebatadora de Piet Hein de que somos “cidadãos globais com almas tribais” (Cfr. Barnaby, 1988), em que o pensador é capaz de, mesmo que só temporariamente, transcender a sua percepção limitada e ver as coisas pelo que elas são; (ii) a necessidade de uma mentalidade (as nossas almas “globais”); e (iii) a necessidade de uma representação concreta (nas relações públicas e na cultura partilhada).»
Nigel Dower, "Global Citizenship: Yes or No?", in Dower, Nigel & Williams, John (eds). Global Citizenship. A Critical Reader. Edinburgh: Edinburgh University Press, pp. 30-2 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
1. Ética ou institucional?
(a) A cidadania mundial é uma concepção essencialmente ética sobre o que as pessoas estão moralmente obrigadas a fazer.
(b) A cidadania mundial é uma concepção essencialmente institucional sobre a pertença a instituições de um tipo especificamente global.
A favor de (a): A ideia essencial de uma cidadania mundial vem dos Estóicos e tinha que ver com a relação não-artificial que mantínhamos com o universo (e que poderíamos reconhecer se fossemos suficientemente sábios); o que se rejeitava era a relevância das identidades artificiais e contingentes dos seres vivos em comunidades políticas concretas (por exemplo, Heater, 1996). As comunidades políticas são artificiais no sentido em que são criadas e modificadas pela vontade dos seres humanos e são contingentes porque é um acidente eu ter nascido num dada comunidade política, sendo a minha pertença contingente bastante diversa da minha natureza essencial como ser humano. No mundo moderno, a cidadania mundial pode expressar-se através de vários tipos de instituições (e pode um dia expressar-se através de instituições artificiais de governança mundial). Mas permanece como núcleo duro da cidadania mundial a afirmação de um compromisso moral individual básico, baseado na lei natural, nos direitos humanos, no respeito kantiano pelas pessoas ou numa qualquer teoria ética similar que não funde a ética numa convenção ou num acordo. É a partir desta vantagem que qualquer pessoa pode distanciar-se de qualquer instituição actual, global ou de outro tipo (como inúmeros Estóicos fizeram relativamente ao que na altura era, de facto, um império mundial, nomeadamente o Império Romano). Por exemplo, um futuro estado mundial pode inquestionavelmente transformar qualquer pessoa num cidadão mundial num sentido legal, mas esta pode estar profundamente descontente com esse facto por causa das políticas desse estado e, como verdadeiro cidadão mundial, responder apenas perante uma lei moral mais elevada.
A favor de (b): A cidadania mundial não faz sentido a não ser que seja entendida em termos institucionais, uma vez que a cidadania é ela própria um conceito institucional. Podemos ser seres humanos por natureza (com certos deveres e direitos enquanto tal) mas o estatuto de cidadania é essencialmente artificial, dependendo de uma construção de tipos de instituições concretas em virtude das quais somos cidadãos.
Esta posição pode ser adoptada em primeiro lugar por alguém que queira rejeitar a ideia de uma cidadania mundial com base no facto de não existirem instituições relevantes. Por exemplo, a defesa que David Miller faz da cidadania baseada no estado-nação assume esta forma (Miller, 1999). Então a ideia não é considerada a não ser como concepção moral de interesse e relevância duvidosos (e enganadores para um mundo moderno que possui ideias claramente estabelecidas sobre a cidadania independentemente do que possa ter acontecido no mundo antigo).
Por outro lado, a posição pode ser adoptada pelos que aplaudem a ideia de uma cidadania global. Quer dizer, enquanto que a ideia de cidadania mundial pode ser estendida para além do politicamente convencional, essa extensão depende de forma crucial de um factor institucional, nomeadamente do facto de efectivamente existirem ou desejar que existam certos tipos de instituições através das quais uma cidadania mundial possa expressar-se. Segundo esta perspectiva, seremos cidadãos mundiais? Alguns poderão dizer que não, mas que devemos empenhar-nos na criação de instituições relevantes; outros dirão que já somos cidadãos globais dadas as instituições já existentes (ver 3 mais à frente). Muito depende da força das nossas convicções relativamente à existência dessas instituições no que pode ser designado de “sociedade civil global” e ao quão importante é o que agora existe comparado com o esforço para a sua criação.
Comentário crítico: Embora existam contextos em que é perfeitamente apropriado alguém apresentar uma tese moral (na linha dos Estóicos), e possam haver circunstâncias futuras em que as instituições (por exemplo, um governo mundial ou formas de governança global aproximadas) possam apresentar uma defesa institucional incontroversa de carácter empírico, no mundo moderno as defesas de uma cidadania mundial resultam da combinação de componentes morais e institucionais. A tese moral diz que em princípio possuímos obrigações de um tipo global que exigem, para que se possam expressar de forma adequada, o desenvolvimento de instituições apropriadas, e a tese institucional implica que essas instituições já existam embora numa forma radicalmente incompleta.
A perspectiva ética e a perspectiva institucional devem ser objectivamente aceites (independentemente de serem ou não aceites pelos indivíduos). As pessoas podem subjectivamente afirmar-se como “cidadãos mundiais” desde que reconheçam tais obrigações e instituições. É claro que a robustez dessas instituições depende efectivamente da força do reconhecimento dessa condição. Sem dúvida que precisamos daquilo que H. G. Wells chamou de “mentalidade cosmopolita” (através da qual “consideramos uma comunidade mundial” antes de, nas palavras de John Macmurray, a intenção estar completamente actualizada (Macmurray, 1957)) e isto tem que preceder a sua concretização nas instituições (cfr. Heater, 1996). Isso é análogo à concepção moral de possuir um corpo defendida por F. H. Bradley (instituições, regras e práticas públicas partilhadas) e uma alma (vontades morais individuais) (Bradley, 1876). Há uma relação dialéctica entre as duas. Na realidade, há aqui três elementos a considerar: (i) a tese da moral objectiva feita pelo pensador, como a afirmação arrebatadora de Piet Hein de que somos “cidadãos globais com almas tribais” (Cfr. Barnaby, 1988), em que o pensador é capaz de, mesmo que só temporariamente, transcender a sua percepção limitada e ver as coisas pelo que elas são; (ii) a necessidade de uma mentalidade (as nossas almas “globais”); e (iii) a necessidade de uma representação concreta (nas relações públicas e na cultura partilhada).»
Nigel Dower, "Global Citizenship: Yes or No?", in Dower, Nigel & Williams, John (eds). Global Citizenship. A Critical Reader. Edinburgh: Edinburgh University Press, pp. 30-2 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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