terça-feira, 25 de março de 2008

Jürgen Habermas, "Três Modelos Normativos de Democracia (Parte II)

«(a) Conceito de cidadão
Em primeiro lugar, diferenciam-se as concepções de cidadão. Segundo a concepção liberal, o status dos cidadãos define-se pelos direitos subjectivos de que dispõem diante do Estado e dos demais cidadãos. Como portadores de direitos subjectivos, os cidadãos contam com a defesa do Estado desde que defendam os seus próprios interesses nos limites impostos pelas leis - e isso se refere-se igualmente à defesa contra as intervenções do estado que excedam as excepções previstas na lei. Os direitos subjectivos são direitos negativos que garantem um âmbito de escolha dentro do qual os cidadãos estão livres de coacções externas. Os direitos políticos têm a mesma estrutura. Eles oferecem aos cidadãos a possibilidade de fazer valer os seus interesses particulares, ao permitir que possam ser agregados a outros interesses privados (por meio de eleições, da composição do parlamento e do governo) até que se forme uma vontade política capaz de exercer uma efectiva influência sobre a administração. Dessa maneira, os cidadãos, como membros do Estado, podem controlar em que medida o poder do Estado se exerce no interesse deles próprios como pessoas privadas.
De acordo com a concepção republicana, o status de cidadão não é definido por esse critério de liberdades negativas das quais só se pode fazer uso como pessoa privada. Os direitos de cidadania, direitos de participação e de comunicação política, são melhor entendidos como liberdades positivas. Eles não protegem a liberdade de coacções externas, mas a participação numa prática comum, cujo exercício é o que permite aos cidadãos transformar-se no que querem ser – sujeitos políticos responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Nessa medida, o processo político não serve somente para o controlo da actividade do Estado por cidadãos que, no exercício dos seus direitos privados e das suas liberdades pré-políticas, alcançaram uma autonomia que já pré-existe. Também não cumpre uma função de articulação entre o Estado e a sociedade, já que o poder do estado democrático não é sob hipótese alguma uma força originária. Na realidade, esse poder provém do poder gerado comunicativamente na prática da autodeterminação dos cidadãos e legitima-se na medida em que protege essa prática por meio da institucionalização da liberdade pública. A justificação da existência do Estado não se encontra primariamente na protecção dos direitos subjectivos privados iguais, mas na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais se entendem sobre quais os fins e as normas que possam corresponder ao interesse comum de todos. Com isso, exige-se do cidadão republicano mais do que a orientação segundo os seus respectivos interesses privados.
b) Conceito de direito
A polémica que tem por objecto o conceito clássico de personalidade jurídica como portadora de direitos subjectivos encerra, no fundo, uma controvérsia sobre o próprio conceito de direito. Enquanto que para a concepção liberal o sentido de uma ordem jurídica está no facto de que essa ordem permite decidir em cada caso particular que direitos cabem aos indivíduos, esses direitos subjectivos, de acordo com a concepção republicana, devem-se a uma ordem jurídica objectiva que, ao mesmo tempo, possibilite e garanta a integridade de uma convivência equitativa, autónoma e fundada no respeito mútuo. No primeiro caso, a ordem jurídica constrói-se a partir dos direitos subjectivos; no segundo, concede-se o primado ao conteúdo objectivo desses mesmos direitos. É verdade que esses conceitos dicotómicos não dão conta do conteúdo intersubjectivo dos direitos que exigem o respeito recíproco de direitos e deveres mediante relações de reconhecimento de carácter simétrico. Na verdade, é o projecto republicano que vai ao encontro de um conceito de direito que outorga à integridade do indivíduo e às suas liberdades subjectivas o mesmo peso que é atribuído à integridade da comunidade cujos indivíduos podem reconhecer-se uns aos outros como seus membros e enquanto indivíduos. Pois a concepção republicana vincula a legitimidade da lei ao procedimento democrático da sua génese, estabelecendo assim uma conexão interna entre a prática da autodeterminação do povo e o império impessoal da lei. "Para os republicanos os direitos não passam, em última análise, de determinações da vontade política prevalecente, enquanto que, para os liberais, certos direitos estão sempre fundados numa 'lei superior’ da razão ou revelação transpolítica. (…) De um ponto de vista republicano, o objectivo de uma comunidade, o bem comum, consiste substancialmente no sucesso do seu empenho político para definir, estabelecer, efectivar e sustentar o conjunto de direitos (ou menos tendenciosamente, leis) melhor ajustados às condições e costumes dessa comunidade, ao passo que, de um ponto de vista contrastantemente liberal, os direitos baseados na lei superior fornecem as estruturas transcendentais e os limites ao poder necessários para que a busca pluralista de interesses diferentes e conflituantes possa decorrer da forma tão satisfatória quanto seja possível".
Na tradição republicana, o direito de voto interpretado como liberdade positiva, converte-se em paradigma dos direitos em geral, não apenas pelo facto desse direito ser condição indispensável da autodeterminação política, mas também porque nele se torna explícito em que medida a inclusão numa comunidade de portadores de direitos iguais está associada à capacidade dos indivíduos de realizar contribuições autónomas e de assumir posições próprias. Essa estrutura que se pode identificar com base na interpretação dos direitos à comunicação e à participação política distribui-se entre todos os direitos ao longo do processo legislativo que os constitui. Também a atribuição de poder no âmbito do direito privado, para que se persigam fins privados e livremente escolhidos, obriga concomitantemente que se respeitem os limites da acção estratégica acordados segundo o interesse de todos.»

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