terça-feira, 11 de março de 2008

Sônia T. Filipe, "Padrões de Justiça Distributiva"

«O que significa (…) distribuir na medida justa, os bens materiais e imateriais produzidos pela totalidade do trabalho numa determinada sociedade? Segundo Ch. Perelman há sei propostas diferentes se solução do impasse gerado pela questão anterior. Elas podem ser resumidas nas seguintes fórmulas:
“1. A cada qual a mesma coisa.
2. A cada qual segundo os seus méritos.
3. A cada qual segundo as sus obras.
4. A cada qual segundo as suas necessidades.
5. A cada qual segundo a sua posição.
6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.”
[1]
Embora cada uma dessas proposições signifique um resultado diferente na distribuição dos bens produzidos, todas sugerem algum princípio, seja o da igualdade, ou o da regularidade, o da indiferença em relação aos cidadãos individualmente considerados, para a distribuição de bens. Não importa se é o Roberto, a Tânia ou a Regina, cada um deles recebe aquilo que no senso de justiça institucionalmente consagrado pela sociedade é considerado justo conceber. O senso ou sentido de justiça transmitido por todas essas possibilidades é o da igualdade no tratamento dispensado a todos os cidadãos tidos como iguais. Há um padrão na distribuição. Esse padrão pode contemplar alguns com um pouco mais da totalidade dos bens distribuídos, outros menos, mas, de qualquer modo, no âmbito de uma mesma categoria o tratamento deve ser igual. Não há diferentes medidas para estabelecer o que é justo para os iguais. A questão é garantir a igualdade básica de todos, para que o tratamento justo não acabe por enriquecer o sistema de distribuição que possibilita resultados desiguais.
Se adoptarmos a primeira fórmula para resolver o problema da distribuição justa, a cada um o mesmo, não se faz distinção entre os contemplados. Nem a posição de berço, nem o sexo, nem a idade, nem a constituição natural serão levadas em conta na atribuição de direitos e de obrigações.
[2] Essa não tem sido uma fórmula muito apreciada nas sociedades onde há movimentos para assegurar direitos específicos aos cidadãos, em função das suas especificidades existenciais.
Se adoptarmos a segunda fórmula: a cada um segundo os seus méritos, todos serão respeitados de acordo com o seu mérito. Com o mesmo mérito não há como reivindicar ou receber mais que o outro que lhe é equivalente. Mas, nesse caso, há como oferecer benefícios proporcionais aos benefícios que aqueles méritos representam para a sociedade na qual os mais dotados exercem a sua actividade. Aqui, como muito bem aponta Ch. Perelman, o problema não é apenas o da definição do que deve ser considerado o mérito, mas além disso, o de indicar a escala de variação segundo a qual se distribui o benefício. Para medir os méritos não há solução lógica nem matemática.
[3]
O mesmo se passa se a fórmula do mérito for substituída pela da produção, ou produtividade: para igual quantidade de trabalho, igual remuneração, aquilo que hoje denominamos de isonomia. Nesse caso, mudando-se a necessidade de consumo daquilo que é o trabalho do cidadão, muda a sua posição na cadeia de distribuição. Se é pelo valor da obra que se remunera, o valor será determinado pelo mercado.[4]
A regra destinada a atender a cada um segundo as suas necessidades não dispensa uma definição anterior sobre quais são as necessidades a serem contempladas. Perelman afirma que essa tem sido a regra que mais põe em causa a economia de mercado e que mais tem influenciado os movimentos que asseguram as chamadas conquistas sociais.[5] Mas nem por isso é uma regra simples. Ela exige que se estabeleça “uma distinção” entre as necessidades essenciais e as outras, (e, ainda,) hierarquizar as necessidades essenciais, de modo que se conheçam aquelas que se devem satisfazer em primeiro lugar e determinar o preço que custará a sua satisfação: essa operação conduzirá à definição da noção de mínimo vital.”[6]
A fórmula cinco, a cada um segundo a sua posição ou classe social, preserva a desigualdade social ao mesmo tempo que assegura a igualdade de tratamento no âmbito de uma mesma classe. As atribuições são diferenciadas para diferentes classes de cidadãos.[7] […]
A última fórmula apontada por Perelman dita como justa toda a distribuição que respeita os direitos reconhecidos por lei. Embora E. Dupréel declare a oposição dessa a todas as demais, conforme Perelman, ela é a que mais se ajusta a todo e qualquer sistema jurídico, pois nada prescreve a não ser que a justiça respeite o direito positivo.”
[8]
A igualdade permanece como princípio fundamental do sentido de justiça praticado, qualquer que seja a sua orientação, pois o mesmo tratamento para a mesma classe de pessoas acaba por ser a exigência formal da justiça.[9]»
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[1] Perelman, Ch. (1996). Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 9.
[2] Ibid., p. 9.
[3] De acordo com Ch. Perelman, este impasse lógico-matemático foi apontado em Haia em 1937 por C. Hempel e P. Oppenheim. Cf. Op. Cit. P. 21-3.
[4] No entender de Perelman, essa fórmula reduz-se “à comparação de obras e de conhecimentos da mesma espécie.” Ibid., p. 25.
[5] Ibid., p. 10-1.
[6] Ibid., p. 26.
[7] “Essa divisão em classes, no sentido amplo, pode fazer-se de diversas formas. Pode basear-se na cor da pele, na língua, na religião, no facto de pertencer a uma classe social, a uma casta, a um grupo étnico. A subdivisão dos homens também pode fazer-se de acordo com as suas funções ou as suas responsabilidades, etc.” Ibid., p. 27.
[8] Ibid., p. 12-3.
[9] Cf. Perelman, Op. Cit., pp. 18-9.
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Sônia T. Filipe, "Justiça: igualdade equitativa na distribuição das liberdades" in Filipe, Sônia T. (org.). Justiça como equidade. Fundamentação e interlocuções polémicas. (Kant, Rawls, Habermas). Florianópolis, Editora Insular, pp. 51-3 (Adaptado por Vítor João Oliveira)

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