«Precisamos pois criar uma ideia de vida em que o ser humano comum possa usufruir de um mínimo de condições favoráveis. O normal nas vidas humanas, mesmo nas mais difíceis, é que as pessoas não sejam forçadas a trabalhar além das suas capacidades; que tenham o apoio de uma família ou comunidade; que possam saciar as necessidades de alimento; que tenham esperança no futuro; e que possam descansar ao fim do dia. Tais condições foram negadas aos homens e mulheres do campo de concentração de Vyatlag descritos por Panin; nem mesmo o descanso nocturno era permitido, quando eram importunados por parasitas na cama, por barulho, fedor, e quando os seus corpos eram revistados e submetidos a banhos comuns, os quais decorriam durante a noite para não interferirem com as regras de trabalho diurno. Também a doença pode privar a condição humana de bem-estar. Quando um doente está profundamente afectado pela dor ou náusea, não tem prazer em alimentar-se, isto se conseguir fazê-lo, e se encontra fora de um ambiente afectivo, deixa de usufruir de uma condição humana normal, tal como a temos vindo a descrever. E retomando agora o fio da análise feita anteriormente, podemos observar que qualquer depressão crónica pode tão eficazmente destruir no sujeito qualquer capacidade de apreciar os aspectos bons da vida como os factores externos o fazem.
Esta discussão, que admitimos ser inadequada, no sentido em a vida é normalmente boa, e as razões pelas quais o pode não ser em determinados casos, completa a fundamentação sobre os moldes em que entendemos a eutanásia. Um acto de eutanásia é atribuído a uma agente que opta pela morte de outro uma vez que, nestas circunstâncias, a vida parece constituir mais um mal do que um bem. A questão a ser levantada é se os actos de eutanásia são justificáveis. Existem duas questões nesta matéria e não apenas uma. Uma coisa será dizermos que alguns actos de eutanásia, considerados em si e pelos seus resultados, são moralmente aceitáveis, outra será dizermos que seria aceitável legalizá-los. Talvez a prática legal da eutanásia levasse a muitos abusos e talvez conduzisse a muitos erros. Além disso, esta prática poderia ser acrescida de efeitos secundários importantes altamente indesejáveis, uma vez que seria muito difícil alterar os nossos princípios sobre o tratamento dos idosos e doentes sem alterarmos também as nossas atitudes emocionais fundamentais e as nossas relações sociais. Estas questões devem, pois, ser analisadas separadamente. Na próxima fase desta análise não haverá referência a consequências sociais ou possíveis abusos decorrentes da prática da eutanásia, apenas a actos de eutanásia em si.
O que pretendemos averiguar é se actos de eutanásia, nos termos em que os temos vindo a abordar, podem, alguma vez, ser moralmente aceitáveis. Para sermos mais precisos, queremos saber se a morte entendida como mais um bem do que um mal é razão suficiente e válida para a escolha da prática da eutanásia.
Será impossível ter uma perspectiva clara sobre a dimensão exacta deste assunto sem antes definirmos as bases nas quais reside a objecção, face ao acto de alguém optar pela morte de outro. Existem duas virtudes diferentes, cujos requisitos, em geral, são contrários a tais actos. Um acto de morte injustificado, ou a conivência face à morte, são contrários à ideia de justiça ou caridade ou a ambas, e as consequências morais são distintas. A justiça está relacionada com o que cada um de nós está obrigado perante o outro numa perspectiva de não-interferência e de prestação de serviço ou ajuda. Quando usado neste sentido mais abrangente, que tem raízes na doutrina das virtudes cardinais, a justiça não está particularmente ligada às leis ou aos tribunais, por exemplo, mas a uma área mais abrangente de direitos e deveres correspondentes. Deste modo, o assassinato é, em primeiro lugar, uma forma de injustiça, depois, constitui uma desonestidade e, por fim, uma incapacidade de assegurar os contratos sociais; a arte do engodo num tribunal ou o acto de destituir alguém do seu direito a uma herança, são outras formas de injustiça. A justiça enquanto tal não está directamente ligada à promoção do bem do outro, e pode exigir que algo lhe seja devolvido, mesmo quando isso implica causar-lhe mal, tal como Hume salientou quando observa que uma dívida deve ser paga mesmo a um debochado devasso, que “merece mais sofrer do que beneficiar de largas somas”.[1] Por outro lado, a caridade é a virtude que nos liga ao bem dos outros. Estamos perante um acto de caridade quando algo não é exigido pela justiça. Por outro lado, estamos perante falta de caridade e justiça quando é negado a alguém algo que necessita ou a que tem direito; tanto a caridade como a justiça exigem que viúvas e órfãos não sejam defraudados, pelo que a pessoa que deles abusa não é nem caridosa nem justa.
É fácil verificar que os dois fundamentos da objecção à morte induzida são distintos. Um assassínio é um acto de injustiça. A falha culposa em auxiliar ou socorrer aquele cuja vida está em perigo, é normalmente contrária à ideia não de justiça, mas de caridade. Todavia, sempre que alguém estivesse obrigado a socorrer alguém nestas circunstâncias, de forma explícita ou implícita, estaria a cometer um acto de injustiça. Assim, a injustiça pode ser observada quer no acto em si quer na sua omissão, e o mesmo se aplica no caso da caridade; esta pode exigir que alguém seja auxiliado, mas também que palavras duras sejam pronunciadas.
A distinção entre caridade e justiça será de importância primordial quando mais tarde tentarmos delimitar eutanásia voluntária e involuntária. Isto resulta da ligação entre justiça e direitos, e cabe-nos dizer algo sobre isso agora. Sempre que alguém comete um acto de injustiça está a infringir um direito, uma vez que a justiça está relacionada com tudo o que é devido às pessoas, e tudo isso constitui um direito. Devemos, no entanto, dizer algo sobre os diferentes tipos de direitos. A distinção geralmente é feita entre ter um direito, no sentido de ter uma liberdade inalienável, e “reivindicar um direito” ou “recebê-lo”[2]. A melhor maneira de entender tal distinção parece residir no exemplo seguinte. Dizer que uma pessoa tem um direito no sentido de liberdade significa que ninguém pode exigir que essa pessoa não faça aquilo a que tem direito. O facto de ter esse direito resulta do facto de não existir um qualquer tipo objecção a que o exerça. Assim qualquer pessoa tem direito de andar numa rua pública ou de estacionar o carro num espaço público para o efeito. Isto não implica que alguém não tente evitar que essa pessoa o faça. Se por alguma razão eu não quero que alguém estacione o carro em determinado local, tenho o direito de estacionar aí ou levar os meus amigos a fazê-lo, evitando assim que outra pessoa exerça o seu direito (no sentido de liberdade). Bem diferente é o caso de direito por reivindicação. Este é o tipo de direito que vai além da minha liberdade, quando, por exemplo, tenho um lugar de estacionamento privado; neste caso, os outros têm o dever da não-interferência, bem como no caso de serviços ou bens que me foram prometidos. Por vezes, a posse destes direitos confere às outras pessoas o dever de assegurarem que eles me sejam garantidos, porém, outras vezes o seu dever cinge-se simplesmente ao acto de não-interferência. Se uma queda de neve bloqueia o meu lugar de estacionamento privado, ninguém está geralmente obrigado a limpá-lo para mim. A reivindicação de um direito implica deveres; por vezes, esses deveres são deveres de não-interferência; outras vezes são deveres de serviços. Se o direito de alguém me atribui o dever de não-interferência, então eu “não tenho o direito” de o fazer; do mesmo modo, se o direito de alguém me atribuir o dever de lhe fornecer algo, “não tenho o direito” de me recusar a fazê-lo. Falta-me um direito que é o da liberdade; “não tenho liberdade” para impedir ou recusar a prestação de determinado serviço.
Onde se enquadra o direito à vida neste cenário? Sem dúvida que as pessoas têm o direito de viver no sentido de liberdade, mas o que é fundamental é o conjunto de direitos por reivindicação que o direito à vida acarreta. O principal de entre estes é, obviamente, o direito de ter uma vida livre de interferências que a possam ameaçar. Se alguém nos aponta uma arma ou tenta envenenar-nos com uma bebida, podemos, simplesmente, exigir que essa pessoa desista da sua intenção. E depois também podemos exigir a prestação de serviços por parte de médicos, departamentos de saúde, guarda-costas ou bombeiros; ou seja exigimos direitos resultantes do estabelecimento de contratos ou acordos com entidades públicas. Talvez não seja necessário especificar aqui que os deveres dessas pessoas ou entidades para connosco se enquadram no nosso direito à vida; da mesma forma como poderíamos dizer que os serviços que nos são devidos por parte de alfaiates e costureiros resultam do nosso direito de estarmos elegantes. Todavia, os contratos resultantes da relação médico-paciente assumem um papel de extrema importância quando discutimos o certo e errado sobre a questão da eutanásia, e por isso mesmo são aqui foco de análise.»
Esta discussão, que admitimos ser inadequada, no sentido em a vida é normalmente boa, e as razões pelas quais o pode não ser em determinados casos, completa a fundamentação sobre os moldes em que entendemos a eutanásia. Um acto de eutanásia é atribuído a uma agente que opta pela morte de outro uma vez que, nestas circunstâncias, a vida parece constituir mais um mal do que um bem. A questão a ser levantada é se os actos de eutanásia são justificáveis. Existem duas questões nesta matéria e não apenas uma. Uma coisa será dizermos que alguns actos de eutanásia, considerados em si e pelos seus resultados, são moralmente aceitáveis, outra será dizermos que seria aceitável legalizá-los. Talvez a prática legal da eutanásia levasse a muitos abusos e talvez conduzisse a muitos erros. Além disso, esta prática poderia ser acrescida de efeitos secundários importantes altamente indesejáveis, uma vez que seria muito difícil alterar os nossos princípios sobre o tratamento dos idosos e doentes sem alterarmos também as nossas atitudes emocionais fundamentais e as nossas relações sociais. Estas questões devem, pois, ser analisadas separadamente. Na próxima fase desta análise não haverá referência a consequências sociais ou possíveis abusos decorrentes da prática da eutanásia, apenas a actos de eutanásia em si.
O que pretendemos averiguar é se actos de eutanásia, nos termos em que os temos vindo a abordar, podem, alguma vez, ser moralmente aceitáveis. Para sermos mais precisos, queremos saber se a morte entendida como mais um bem do que um mal é razão suficiente e válida para a escolha da prática da eutanásia.
Será impossível ter uma perspectiva clara sobre a dimensão exacta deste assunto sem antes definirmos as bases nas quais reside a objecção, face ao acto de alguém optar pela morte de outro. Existem duas virtudes diferentes, cujos requisitos, em geral, são contrários a tais actos. Um acto de morte injustificado, ou a conivência face à morte, são contrários à ideia de justiça ou caridade ou a ambas, e as consequências morais são distintas. A justiça está relacionada com o que cada um de nós está obrigado perante o outro numa perspectiva de não-interferência e de prestação de serviço ou ajuda. Quando usado neste sentido mais abrangente, que tem raízes na doutrina das virtudes cardinais, a justiça não está particularmente ligada às leis ou aos tribunais, por exemplo, mas a uma área mais abrangente de direitos e deveres correspondentes. Deste modo, o assassinato é, em primeiro lugar, uma forma de injustiça, depois, constitui uma desonestidade e, por fim, uma incapacidade de assegurar os contratos sociais; a arte do engodo num tribunal ou o acto de destituir alguém do seu direito a uma herança, são outras formas de injustiça. A justiça enquanto tal não está directamente ligada à promoção do bem do outro, e pode exigir que algo lhe seja devolvido, mesmo quando isso implica causar-lhe mal, tal como Hume salientou quando observa que uma dívida deve ser paga mesmo a um debochado devasso, que “merece mais sofrer do que beneficiar de largas somas”.[1] Por outro lado, a caridade é a virtude que nos liga ao bem dos outros. Estamos perante um acto de caridade quando algo não é exigido pela justiça. Por outro lado, estamos perante falta de caridade e justiça quando é negado a alguém algo que necessita ou a que tem direito; tanto a caridade como a justiça exigem que viúvas e órfãos não sejam defraudados, pelo que a pessoa que deles abusa não é nem caridosa nem justa.
É fácil verificar que os dois fundamentos da objecção à morte induzida são distintos. Um assassínio é um acto de injustiça. A falha culposa em auxiliar ou socorrer aquele cuja vida está em perigo, é normalmente contrária à ideia não de justiça, mas de caridade. Todavia, sempre que alguém estivesse obrigado a socorrer alguém nestas circunstâncias, de forma explícita ou implícita, estaria a cometer um acto de injustiça. Assim, a injustiça pode ser observada quer no acto em si quer na sua omissão, e o mesmo se aplica no caso da caridade; esta pode exigir que alguém seja auxiliado, mas também que palavras duras sejam pronunciadas.
A distinção entre caridade e justiça será de importância primordial quando mais tarde tentarmos delimitar eutanásia voluntária e involuntária. Isto resulta da ligação entre justiça e direitos, e cabe-nos dizer algo sobre isso agora. Sempre que alguém comete um acto de injustiça está a infringir um direito, uma vez que a justiça está relacionada com tudo o que é devido às pessoas, e tudo isso constitui um direito. Devemos, no entanto, dizer algo sobre os diferentes tipos de direitos. A distinção geralmente é feita entre ter um direito, no sentido de ter uma liberdade inalienável, e “reivindicar um direito” ou “recebê-lo”[2]. A melhor maneira de entender tal distinção parece residir no exemplo seguinte. Dizer que uma pessoa tem um direito no sentido de liberdade significa que ninguém pode exigir que essa pessoa não faça aquilo a que tem direito. O facto de ter esse direito resulta do facto de não existir um qualquer tipo objecção a que o exerça. Assim qualquer pessoa tem direito de andar numa rua pública ou de estacionar o carro num espaço público para o efeito. Isto não implica que alguém não tente evitar que essa pessoa o faça. Se por alguma razão eu não quero que alguém estacione o carro em determinado local, tenho o direito de estacionar aí ou levar os meus amigos a fazê-lo, evitando assim que outra pessoa exerça o seu direito (no sentido de liberdade). Bem diferente é o caso de direito por reivindicação. Este é o tipo de direito que vai além da minha liberdade, quando, por exemplo, tenho um lugar de estacionamento privado; neste caso, os outros têm o dever da não-interferência, bem como no caso de serviços ou bens que me foram prometidos. Por vezes, a posse destes direitos confere às outras pessoas o dever de assegurarem que eles me sejam garantidos, porém, outras vezes o seu dever cinge-se simplesmente ao acto de não-interferência. Se uma queda de neve bloqueia o meu lugar de estacionamento privado, ninguém está geralmente obrigado a limpá-lo para mim. A reivindicação de um direito implica deveres; por vezes, esses deveres são deveres de não-interferência; outras vezes são deveres de serviços. Se o direito de alguém me atribui o dever de não-interferência, então eu “não tenho o direito” de o fazer; do mesmo modo, se o direito de alguém me atribuir o dever de lhe fornecer algo, “não tenho o direito” de me recusar a fazê-lo. Falta-me um direito que é o da liberdade; “não tenho liberdade” para impedir ou recusar a prestação de determinado serviço.
Onde se enquadra o direito à vida neste cenário? Sem dúvida que as pessoas têm o direito de viver no sentido de liberdade, mas o que é fundamental é o conjunto de direitos por reivindicação que o direito à vida acarreta. O principal de entre estes é, obviamente, o direito de ter uma vida livre de interferências que a possam ameaçar. Se alguém nos aponta uma arma ou tenta envenenar-nos com uma bebida, podemos, simplesmente, exigir que essa pessoa desista da sua intenção. E depois também podemos exigir a prestação de serviços por parte de médicos, departamentos de saúde, guarda-costas ou bombeiros; ou seja exigimos direitos resultantes do estabelecimento de contratos ou acordos com entidades públicas. Talvez não seja necessário especificar aqui que os deveres dessas pessoas ou entidades para connosco se enquadram no nosso direito à vida; da mesma forma como poderíamos dizer que os serviços que nos são devidos por parte de alfaiates e costureiros resultam do nosso direito de estarmos elegantes. Todavia, os contratos resultantes da relação médico-paciente assumem um papel de extrema importância quando discutimos o certo e errado sobre a questão da eutanásia, e por isso mesmo são aqui foco de análise.»
[1] D. Hume, Treatise, Book III, Parte II, Secção 1.
[2] Ver, por exemplo, D.D. Raphael, “Human Rights Old and New”, in D.D. Raphael, ed., Political theory and the rights of man (Londres, 1967), e J. Feinberg, “The nature and value of rights”, The Journal of Value Inquiry 4, nº 4 (Inverno, 1970): 243-57. Reimpresso em S. Gorowitz, ed., Moral Problems in Medicine (Engelwood Cliffs, New Jersey, 1976).
[2] Ver, por exemplo, D.D. Raphael, “Human Rights Old and New”, in D.D. Raphael, ed., Political theory and the rights of man (Londres, 1967), e J. Feinberg, “The nature and value of rights”, The Journal of Value Inquiry 4, nº 4 (Inverno, 1970): 243-57. Reimpresso em S. Gorowitz, ed., Moral Problems in Medicine (Engelwood Cliffs, New Jersey, 1976).
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