sábado, 22 de março de 2008

Robert Nozick, "A Justiça Distributiva" (Parte II)

«Não é claro como aqueles que defendem teses alternativas de justiça distributiva podem rejeitar a concepção de justiça que confere direitos à propriedade. Suponhamos que a distribuição preferida por uma dessas concepções é realizada. Vamos presumir ainda que é a que gosta mais e que designaremos de D1. Talvez todos tenham parcela igual, talvez as parcelas variem de acordo com alguma dimensão a que atribui grande valor. Suponhamos agora que Wilt Chamberlain, sendo uma grande atracção de bilheteira, é objecto de grande disputa por parte das equipas de basquetebol. (Vamos supor ainda que os contratos têm a duração de apenas um ano e que, depois disso, os jogadores têm passe livre.) Ele assina com uma das equipas o seguinte tipo de contrato: por cada jogo ganho, cabe-lhe 25 cêntimos do preço de cada bilhete vendido. (Ignoramos aqui a questão de saber se está ou não a explorar os donos da equipa ou a deixar que eles façam o que quiserem.) Começa o campeonato e as pessoas alegremente comparecem aos jogos da sua equipa. Compram os bilhetes, em todas as ocasiões colocando 25 cêntimos separados do preço de aquisição do bilhete numa caixa especial com o nome de Chamberlain. Ficam emocionadas ao vê-lo jogar e acham que o preço que pagam é justo. Vamos supor que, numa temporada, um milhão de pessoas comparecem aos jogos em que ele toma parte. Wilt Chamberlain termina o campeonato com € 250,000, uma soma muito maior do que o rendimento médio e maior mesmo do que qualquer pessoa aufere. Terá ele direito a esse rendimento? Essa nova distribuição, D2, é injusta? Se é assim, porquê? Não há a menor dúvida de que se cada uma das pessoas tinha direito ao controle dos recursos que possuíam em D1, porque esta era a distribuição (a sua favorita) que (para as finalidades do argumento) supomos que era aceitável. Cada uma dessas pessoas resolveu dar 25 cêntimos do seu dinheiro a Chamberlain. Poderiam tê-lo gasto indo ao cinema, comprando chocolate ou números das revistas Visão ou Focus. Mas todos eles, ou pelo menos um milhão deles, convergiram na decisão de os dar a Wilt Chamberlain em troca do prazer de o ver jogar basquetebol. Se D1 era uma distribuição justa, e as pessoas passaram-na voluntariamente para D2 transferindo parte das parcelas que haviam recebido sob D1 (para quê, se não para fazer alguma coisa com elas?), D2 não será também justa? Se as pessoas tinham o direito de usar os recursos a que tinham direito (de acordo com D1), não incluiria isso terem o direito de os dar, ou trocar, com Wilt Chamberlain? Poderia alguém mais queixar-se por razões de justiça? Todas as demais pessoas já possuíam a sua parcela legítima sob D1. De acordo com esta, nada há que alguém tenha que outra pessoa possa reivindicar. Depois que alguém transferisse algo para Wilt Chamberlain, terceiras partes ainda teriam a suas parcelas legítimas. As suas parcelas não foram mudadas. De que maneira poderia essa transferência entre duas pessoas dar origem a uma reivindicação legítima de justiça distributiva a respeito de uma parcela que foi transferida, por uma terceira parte que não tinha nenhum direito, com base na justiça, a quaisquer propriedades dos outros antes da transferência? (e) A fim de eliminar as objecções irrelevantes neste caso, poderíamos imaginar que as trocas ocorressem numa sociedade socialista, depois do trabalho. Depois de jogar todo basquetebol que sabe durante o seu dia de trabalho, ou fazer qualquer outra coisa em que se ocupasse durante o dia, Wilt Chamberlain resolve fazer horas extraordinárias para ganhar mais dinheiro. (Inicialmente, a sua quota de trabalho é estabelecida. Ele continua a trabalhar depois de a ter atingido.) Ou imaginemos que é um malabarista que as pessoas gostam de ver e que dá espectáculos depois do expediente. Por que deveria alguém fazer horas extraordinárias numa sociedade em que se supõe que as suas necessidades sejam satisfeitas? Talvez porque se interessassem por coisas que não as simples necessidades. Eu gosto de fazer anotações nos livros que leio e ter acesso a eles para os reler quando me dá na telha. Seria muito agradável e conveniente ter no meu quintal todos os recursos da Biblioteca Nacional. Nenhuma sociedade, suponho, colocaria esses recursos tão perto assim das pessoas que gostariam de os ter como parte da sua quota regular (sob D1). Dessa maneira as pessoas ou têm que passar sem as coisas extra que querem ou ter permissão para fazer alguma coisa extra para as obter. Sobre que fundamento seriam proibidas as desigualdades que viriam a surgir? Note também que pequenas fábricas surigiriam nas sociedades socialistas, a menos que fossem proibidas. Gasto parte de minhas posses pessoais (sob D1) e construo uma máquina com o material que adquiri. Ofereço-lhe a si e a outras pessoas, uma aula de filosofia por semana em troca de accionar a manivela da minha máquina, cujos produtos troco por outras coisas mais. (As matérias-primas usadas pela máquina são-me dadas por outros que as possuem sob D1 em troca das aulas que lhes ministro.) Todas as pessoas poderiam participar para obter mais coisas além da sua quota sob D1. Algumas pessoas gostariam mesmo de deixar os seus cargos na indústria socialista a trabalhar em tempo integral nesse sector privado. (…)[D]esejo simplesmente observar que a propriedade privada, mesmo dos meios de produção, ocorreria numa sociedade socialista que não proibisse as pessoas de usar, como desejassem, os recursos que lhes foram dados sob a distribuição socialista D1. A sociedade socialista teria que proibir actos capitalistas a adultos que gostariam de os praticar.
O argumento geral ilustrado pelo exemplo Wilt Chamberlain, e o dos empresários numa sociedade socialista, é que nenhum princípio de estado final ou distributivo padronizado de justiça pode ser continuamente implementado sem interferência contínua na vida das pessoas. Qualquer padrão preferido seria transformado pelo princípio em outro não favorecido, ou por pessoas que resolvessem agir de maneiras diferentes, como por exemplo pessoas trocando bens e serviços com outras pessoas ou dando a estas pessoas coisas a que elas tinham direito de acordo com o padrão distributivo preferido. A fim de manter o padrão, teríamos que ou interferir continuamente para impedir que pessoas transferissem recursos como quisessem ou continuamente (ou periodicamente) interferir para tomar de algumas delas recursos que outras decidiram por alguma razão transferir para si mesmas. (Mas se fossem estabelecidos limites de tempo sobre o período em que as pessoas poderiam conservar os recursos que outras voluntariamente lhes transferiram, por que deixar que conservassem esses recursos por qualquer período de tempo? Por que não confiscá-los imediatamente?) Poder-se-ia objectar que todas as pessoas, voluntariamente, resolveriam abster-se de actos que perturbassem o padrão. Isso pressupõe irrealisticamente que: 1) todos desejarão ardentemente manter o padrão (os que não o fizessem deveriam ser "reeducados" ou obrigados a praticar "autocrítica"?); 2) todos possam reunir informações suficientes sobre os seus próprios actos e as actividades correntes dos demais a fim de descobrir qual dos seus actos perturbará o padrão; e 3) pessoas diferentes e muito distantes poderão coordenar-lhe os actos para que se ajustem ao padrão. Compare-se com isso a maneira como o mercado se mantém neutro entre os desejos das pessoas, na medida em que reflecte e transmite informações muito dispersas por intermédio de preços e coordena actividades pessoais.
Estaremos talvez a forçar um pouco as coisas quando dizemos que todos os princípios padronizados (ou de estado final) provavelmente serão contrariados pelos actos voluntários de partes individuais que transferem algumas das parcelas que recebem sob os princípios. Isso porque, talvez, alguns padrões muito débeis não sejam contrariados dessa maneira. (f) Todos os padrões distributivos que incluem um componente igualitário são subvertidos, ao longo do tempo, por actos voluntários de indivíduos isolados, como também toda situação padronizada, com um conteúdo suficiente para ter sido realmente proposta como representando o âmago da justiça distributiva. Ainda assim, dada a possibilidade de que algumas condições débeis ou padrões talvez não sejam instáveis dessa maneira, seria melhor formular uma descrição explícita dos tipos de padrões interessantes cheios de conteúdo sob discussão e provar um teorema a respeito da sua instabilidade. Uma vez que, quanto mais fraca a padronização, mais provável é que o sistema que confere direitos a satisfaça, afigura-se plausível a conjectura de que qualquer padronização ou é instável ou é satisfeita pelo sistema.»

Nozick, Robert (1994). Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 181-6 (Adaptado por Vítor João Oliveira)

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