terça-feira, 25 de março de 2008

Amartya Sen, "Igualdade de quê?" (Parte I)

«Porquê a igualdade? Que igualdade?
As duas questões centrais para a análise ética da igualdade são: (1) porquê a igualdade? (2) igualdade de quê? Estas duas perguntas são distintas mas completamente interdependentes. Não podemos começar a defender ou criticar a igualdade sem saber do que estamos afinal a falar, quer dizer, igualdade de que características (por exemplo, de rendimentos, de riquezas, de oportunidades, de realizações, de liberdades, de direitos)? Possivelmente não podemos responder à primeira pergunta sem lidar com a segunda. Isso parece suficientemente óbvio.
Mas se de facto respondermos à segunda pergunta, ainda será necessário enfrentar a primeira? Se argumentarmos com sucesso a favor da igualdade de x (independentemente do que seja x – algum resultado, algum direito, alguma liberdade, algum respeito ou alguma outra coisa), então já estamos a argumentar defendendo a igualdade naquela forma, tendo x como padrão de comparação. De igual modo, se refutamos a pretensão de igualdade de x, então já estamos a argumentar contra a igualdade naquela forma, tendo x como padrão de comparação. Não há, nesta perspectiva, nenhuma pergunta “que vá mais além”, que seja “mais profunda”, a ser respondida sobre porquê - ou porque não – a “igualdade”. A pergunta (1), nesta análise, assemelha-se bastante com a pergunta “mais habitual” (2).
Há um certo propósito em ver o problema desta forma, mas há aqui uma questão substantiva mais interessante. Está relacionada com o facto de que toda a teoria normativa do ordenamento social que tenha afinal resistido ao teste do tempo parece exigir a igualdade de algo – algo que é considerado como particularmente importante nesta teoria. As teorias envolvidas são diferentes e frequentemente estão em conflito umas com as outras, mas ainda parecem ter essa característica comum. Nas disputas contemporâneas da filosofia política, a igualdade de facto figura, é claro, de forma importante nas contribuições de John Rawls (igual liberdade e igualdade na distribuição de “bens primários”), Ronald Dworkin (“tratamento como iguais”, “igualdade de recursos”), Thomas Nagel (“igualdade económica”), Thomas Scanlon (“igualdade”), e outras geralmente associadas a uma visão “pró-igualdade”
[1]. Mas a igualdade em algum espaço parece ser exigida até por aqueles que são comummente encarados como críticos do “argumento a favor da igualdade” ou da “justiça distributiva”. Por exemplo, Robert Nozick pode não exigir a igualdade de utilidade ou igualdade das parcelas de bens primários, mas exige a igualdade de direitos libertários – nenhuma pessoa tem mais direito à liberdade que qualquer outra. James Buchanan inclui a igualdade de tratamento político e legal – na verdade, bastante mais do que isso – como partes permanentes da sua visão da boa sociedade[2]. Em cada teoria procura-se a igualdade num qualquer espaço – um espaço que se considera ter um papel central nessa teoria[3].
Mas o que dizer do utilitarismo? Certamente, os utilitaristas em geral não querem a igualdade das utilidades usufruídas por diferentes pessoas. A fórmula utilitarista requer a maximização da soma total das utilidades de todas as pessoas tomadas em conjunto, e isso não é, num sentido claro, particularmente igualitário
[4]. Na verdade, a igualdade que o utilitarismo procura assume a forma do tratamento igual dos seres humanos no espaço dos ganhos e perdas de utilidades. Dá-se ênfase aos pesos iguais dos ganhos de utilidade de todas as pessoas na função-objectivo utilitarista.
Este diagnóstico de igualitarismo oculto na filosofia utilitarista poderia muito bem não ser aceite, porque o utilitarismo envolve de facto uma abordagem de maximização da soma total, pelo que se poderia pensar, em consequência, que qualquer traço igualitário do utilitarismo não pode ser senão acidental. Mas este raciocínio é enganador. A abordagem utilitarista é sem dúvida de maximização, mas a verdadeira questão é saber qual a natureza da função-objectivo que ela maximiza. Essa função-objectivo poderia ter sido bastante não igualitária, por exemplo, atribuir muito mais peso às utilidades de algumas pessoas o que às de outras. Pelo contrário, o utilitarismo concede exactamente a mesma importância às utilidades de todas as pessoas na função objectivo e esta característica – emparelhada com o formato da maximização – garante que os ganhos de utilidade de todas as pessoas recebam o mesmo peso no exercício da maximização. O fundamento igualitário é, portanto, uma parte bastante central da totalidade do cálculo utilitarista. De facto, é precisamente esta característica igualitária que se relaciona com o princípio fundamental do utilitarismo e que é “atribuir peso igual aos interesses iguais de todas as partes (Hare, 1981: 26), ou com o de “atribuir sempre o mesmo peso aos interesses de todos os indivíduos” (Harsanyi, 1982: 47)
[5].
O que concluir deste facto? Uma conclusão óbvia é que ser igualitário (isto é, igualitário num ou noutro espaço a que se concede grande importância) não é realmente uma característica “unificadora”
[6]. Com efeito, é precisamente porque existem tais diferenças substantivas entre a aprovação de diferentes espaços nos quais a igualdade é recomendada por diferentes autores, que a semelhança básica entre eles (na forma de querer a igualdade em algum espaço que é encarado como importante) pode estar longe de ser transparente. Isto é especialmente assim quando o termo “igualdade” é definido – implicitamente, como é habitual – como igualdade num espaço em particular.
Por exemplo, William Letwin (1983), no seu interessante ensaio “O argumento contra a igualdade”, que serve de introdução a uma colectânea importante de artigos de diferentes autores sobre esse tema (chamada “Contra a igualdade”), argumenta contra a igualdade de rendimentos (ou mercadorias) da seguinte forma: “Na medida em que as pessoas são desiguais, é racional supor que elas devem ser tratadas desigualmente – o que poderia significar parcelas maiores para os necessitados ou parcelas maiores para os merecedores” (“A Theoretical Weakness of Egalitarianism”, 8). Mas mesmo a exigência de igual satisfação de “necessidades” é um requisito de igualdade (num espaço em particular), e de facto tem sido defendida como tal por um longo período de tempo. Mesmo que a ideia de “merecimento” individual seja difícil de caracterizar, as formulações da exigência de “parcelas maiores para os merecedores” tende a incluir um tratamento igual para os iguais, dando a cada um a mesma recompensa pelo mérito que é dado a outro. Desta forma, estas críticas do igualitarismo tendem a assumir, por sua vez, uma forma igualitária nalgum outro espaço
[7]. O problema reduz-se novamente à defesa, implícita, de uma resposta à pergunta “igualdade de quê?
Algumas vezes a pergunta “igualdade de quê?” é enfrentada indirectamente, quando aparentemente se discute “porquê a igualdade?”, com a igualdade definida num espaço específico. Por exemplo, o artigo consistente de Harry Frankfurt (1987), que ataca a “igualdade como um ideal moral”, ocupa-se principalmente com a refutação das pretensões do igualitarismo económico na forma da “doutrina de que é desejável para todos ter as mesmas quantias de rendimento e riqueza (abreviando, ‘dinheiro’)” (p. 21)
[8]. Embora na linguagem dos tribunais o “igualitarismo” como tal fique no banco dos réus, isto ocorre sobretudo porque Frankfut usa o termos geral para se referir especificamente a uma versão em particular do “igualitarismo económico”: “Esta versão do igualitarismo económico (abreviando, simplesmente ‘igualitarismo’) também poderia ser formulada como uma doutrina de que não deve haver desigualdades na distribuição do dinheiro” (p. 21).
A escolha do espaço para a igualdade é, portanto, central para a tese fundamental de Frankfurt
[9]. Os seus argumentos podem ser vistos como uma discordância da exigência específica de uma interpretação comum do igualitarismo económico por sustentar que (1) uma tal igualdade não tem qualquer importância intrínseca maior, e que (2) que ela implica a violação de valores intrinsecamente importantes – valores que se ligam intimamente à necessidade de prestar uma atenção igual a todas as pessoas nalgum outro aspecto – mais relevante.
Querer a igualdade de alguma coisa – algo visto como importante – é sem dúvida uma semelhança de algum tipo, mas esta semelhança não coloca os grupos opositores do mesmo lado. Só mostra que a batalha não é, num sentido relevante, sobre “porquê a igualdade?”, mas sobre “igualdade de quê?”.
Uma vez que alguns espaços estão tradicionalmente associados às exigências de “igualdade” na filosofia política ou social ou económica, é a igualdade em algumas desses espaços (por exemplo, rendimento, riqueza, utilidades) que tende a ser designada de “igualitarismo”. Não estou a refutar o uso sistemático do termos “igualitarismo” nalgum desses sentidos; essa prática não é prejudicial se for entendida como uma exigência de igualdade num espaço específico (e, por implicação, contra a igualdade noutros espaços). Mas é importante reconhecer o alcance limitado desse uso, e também o facto de que exigir a igualdade num espaço – não importando o quanto seja respeitado pela tradição – pode fazer com que se seja anti-igualitário nalgum outro espaço, cuja importância comparativa na avaliação global tem de ser apreciada criticamente.»

[1] Ver Rawls (1971, 1988a), R. Dworkin (1978, 1981), Nagel (1979, 1986), Scanlon (1982,1988a). As posições assumidas pelos utilitaristas modernos suscitam uma questão mais complexa (sobre ela, mais adiante), mas o ponto de partida é algo como “dar peso igual aos interesses iguais de todas as partes” (Hare, 1982: 26), ou um procedimento para “atribuir sempre o mesmo peso aos interesses de todos os indivíduos” (Harsanyi, 1982: 47).
[2] Ver Nozick (1973, 1974); J. M. Buchanan (1975, 1986). Ver também J. M. Buchanan e Tullock (1962).
[3] Isto não se aplica, é claro, àquelas críticas da igualdade (em algum espaço) que não incluem, em troca uma proposta de algo construtivo. É da apresentação ou defesa de uma tal proposta construtiva que pode ser esperada a implicação – frequentemente de modo implícito – da exigência de igualdade nalgum outro espaço. Nem é a expectativa de uma exigência de igualdade nalgum outro espaço provável de se aplicar as teorias que não se referem de forma alguma a seres humanos, por exemplo, proposta que defende a “maximização do valor de mercado total a riqueza”. É uma proposta construtiva que faz uso de alguma condição humana em que é mais provável de ocorrer uma existência implícita de algum tipo de igualdade.
[4] No meu livro anterior sobre a desigualdade (Sobre a Desigualdade Económica, Sen, 1973ª na bibliografia), discuti com algum detalhe (ver cap. 1) por que o utilitarismo é não igualitário em alguns aspectos importantes. Como está indicado na Introdução, esse livro é citado neste trabalho como SDE.
[5] John Rawls (1971) sustentou que “existe um sentido no qual o utilitarismo clássico não consegue levar a sério a distinção entre as pessoas” (p. 187). Na medida em que um teórico utilitarista defende apenas a maximização da quantidade de felicidade, prazer, etc., sem prestar atenção ao facto de que estas coisas são características de pessoas singulares, o que Rawls sustenta tem muita força. Mas um utilitarista também pode ver a utilidade como uma característica irredutivelmente pessoal que exige atenção precisamente porque o bem-estar das pessoas envolvidas implica respeito e consideração. Sobre este ponto ver Bentham (1789), Mill (1861), Edgeworth (1881), Pigou (1952), Hare (1981), Harsanyi (1982) e Mirrlees (1982). Esta “defesa” limitada do utilitarismo não deve ser vista como sustentando-o como teoria ética ou política adequada. O utilitarismo tem de facto sérias deficiências (tentei discuti-las noutro lugar: Sem 1970a, 1879b, 1982b), mas não levar a sério a distinção entre pessoas diferentes pode não ser uma acusação razoável contra o utilitarismo em geral.
[6] Sobre este problema e outros afins, ver B. Williams (1973a), Suppes (1977), Sen (1980a), R. Dworkin (1981), Rae (1981), Béteille (1983b).
[7] De modo similar, o convincente argumento de Peter Bauer (1981) a favor do mesmo direito para todos de usufruir do que tenham “produzido” é também uma exigência igualitária nesse espaço escolhido – o de se receber uma recompensa comensurável com a contribuição produtiva que se dá.
[8] Ver também J. R. Lucas (1965, 1980). Para uma crítica aguda da tese de Frankfurt, ver Goodin (1987).
[9] De facto, a natureza do espaço é crucial para todos os axiomas que assumem a forma de exigência ou rejeição da igualdade. Por exemplo, o “axioma fraco da equidade” apresentado no meu SDE indicava uma preferência pela igualdade no espaço de “bem-estar global”. Ainda que tal condição fosse possivelmente demasiado restritiva, uma vez que incorporava uma prioridade lexicográfica da igualdade sobre considerações agregativas, algumas das críticas dessa condição estão mal direccionadas ao interpretar o requisito formal noutros espaços, por exemplo, na alocação de cuidados médicos especializados entre pessoas (ver J. Griffin, 1981, 1986; ver também Brandt, 1979, e a minha resposta à sua crítica em Sen, 1980-1).

Sen, Amartya (2001). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Editora Record, pp. 43-47 (Adaptado por Vítor João Oliveira)

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