«b) Conceito de direito
A polémica que tem por objecto o conceito clássico de personalidade jurídica como portadora de direitos subjectivos encerra, no fundo, uma controvérsia sobre o próprio conceito de direito. Enquanto que para a concepção liberal o sentido de uma ordem jurídica está no facto de que essa ordem permite decidir em cada caso particular que direitos cabem aos indivíduos, esses direitos subjectivos, de acordo com a concepção republicana, devem-se a uma ordem jurídica objectiva que, ao mesmo tempo, possibilite e garanta a integridade de uma convivência equitativa, autónoma e fundada no respeito mútuo. No primeiro caso, a ordem jurídica constrói-se a partir dos direitos subjectivos; no segundo, concede-se o primado ao conteúdo objectivo desses mesmos direitos. É verdade que esses conceitos dicotómicos não dão conta do conteúdo intersubjectivo dos direitos que exigem o respeito recíproco de direitos e deveres mediante relações de reconhecimento de carácter simétrico. Na verdade, é o projecto republicano que vai ao encontro de um conceito de direito que outorga à integridade do indivíduo e às suas liberdades subjectivas o mesmo peso que é atribuído à integridade da comunidade cujos indivíduos podem reconhecer-se uns aos outros como seus membros e enquanto indivíduos. Pois a concepção republicana vincula a legitimidade da lei ao procedimento democrático da sua génese, estabelecendo assim uma conexão interna entre a prática da autodeterminação do povo e o império impessoal da lei. "Para os republicanos os direitos não passam, em última análise, de determinações da vontade política prevalecente, enquanto que, para os liberais, certos direitos estão sempre fundados numa 'lei superior’ da razão ou revelação transpolítica. (…) De um ponto de vista republicano, o objectivo de uma comunidade, o bem comum, consiste substancialmente no sucesso do seu empenho político para definir, estabelecer, efectivar e sustentar o conjunto de direitos (ou menos tendenciosamente, leis) melhor ajustados às condições e costumes dessa comunidade, ao passo que, de um ponto de vista contrastantemente liberal, os direitos baseados na lei superior fornecem as estruturas transcendentais e os limites ao poder necessários para que a busca pluralista de interesses diferentes e conflituantes possa decorrer da forma tão satisfatória quanto seja possível".
Na tradição republicana, o direito de voto interpretado como liberdade positiva, converte-se em paradigma dos direitos em geral, não apenas pelo facto desse direito ser condição indispensável da autodeterminação política, mas também porque nele se torna explícito em que medida a inclusão numa comunidade de portadores de direitos iguais está associada à capacidade dos indivíduos de realizar contribuições autónomas e de assumir posições próprias. Essa estrutura que se pode identificar com base na interpretação dos direitos à comunicação e à participação política distribui-se entre todos os direitos ao longo do processo legislativo que os constitui. Também a atribuição de poder no âmbito do direito privado, para que se persigam fins privados e livremente escolhidos, obriga concomitantemente que se respeitem os limites da acção estratégica acordados segundo o interesse de todos.
(c) Processo político
As diferentes concepções do papel do cidadão e do direito exprimem um desacordo muito mais profundo sobre a natureza do processo político. Segundo a concepção liberal, a política é essencialmente uma luta por posições que asseguram a capacidade de dispor de poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião políticas na esfera pública e no parlamento é determinado pela concorrência entre actores colectivos, que agem estrategicamente com o objectivo de conservar ou adquirir posições de poder. O êxito alcançado nesse processo será medido pelo consentimento dos cidadãos em relação a pessoas e programas, quantificado pelo número de votos obtidos em eleições. Ao votar, os eleitores expressam as suas preferências. As decisões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que as escolhas orientadas para o êxito dos participantes do mercado. Esses votos tornam possível a procura de posições de poder, que os partidos políticos disputam entre si adoptando uma atitude semelhante de orientação para o êxito. O input de votos e o output de poder correspondem ao mesmo modelo de acção estratégica: “Ao contrário da deliberação, a interacção estratégica tem por fim a coordenação e não tanto a cooperação. Em última análise, o que se exige das pessoas é que levem em conta apenas o seu interesse próprio. O seu meio é a negociação, não a argumentação. Os seus instrumentos de persuasão não são reivindicações ou razões, mas ofertas condicionadas de serviços e abstenção. Seja formalmente incorporado num voto ou num contrato ou simplesmente materializado de um modo informal nas condutas sociais, um resultado estratégico não representa um juízo colectivo da razão, mas uma soma vectorial num campo de forças”.
Segundo a concepção republicana, a formação da opinião e vontade políticas no espaço público e no parlamento não obedece às estruturas dos processos de mercado, mas tem as suas estruturas específicas. São elas as estruturas de uma comunicação pública orientada para o entendimento. O paradigma da política no sentido da prática de uma autodeterminação por parte de cidadãos do Estado, não é o do mercado, mas o do diálogo. Segundo essa visão, há uma diferença estrutural entre o poder comunicativo, que advém da comunicação política na forma de opiniões maioritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder administrativo próprio do aparelho do estado. Também os partidos que lutam pelo acesso a posições de poder no Estado têm de se adequar ao estilo específico dos discursos políticos: A deliberação… refere-se a uma certa atitude relativamente à cooperação social, especificamente a que está aberta à persuasão por meio de razões relativas às pretensões dos outros e às nossas. A via deliberativa corresponde a uma troca de perspectivas de boa fé – incluindo os relatos dos participantes relativamente às suas concepções particulares dos respectivos interesses vitais – em que um voto, qualquer voto, representa um conjunto de juízos”. Precisamente por isso, o confronto sustentado de opiniões no terreno da política tem uma força legitimadora, não apenas no sentido de uma autorização para ocupar posições de poder, mas também no sentido de que o exercício continuado do discurso político possui uma força vinculatória sobre o modo de exercício do poder político. O poder administrativo só pode ser aplicado com base em políticas e no limite das leis que nascem do processo democrático.»
A polémica que tem por objecto o conceito clássico de personalidade jurídica como portadora de direitos subjectivos encerra, no fundo, uma controvérsia sobre o próprio conceito de direito. Enquanto que para a concepção liberal o sentido de uma ordem jurídica está no facto de que essa ordem permite decidir em cada caso particular que direitos cabem aos indivíduos, esses direitos subjectivos, de acordo com a concepção republicana, devem-se a uma ordem jurídica objectiva que, ao mesmo tempo, possibilite e garanta a integridade de uma convivência equitativa, autónoma e fundada no respeito mútuo. No primeiro caso, a ordem jurídica constrói-se a partir dos direitos subjectivos; no segundo, concede-se o primado ao conteúdo objectivo desses mesmos direitos. É verdade que esses conceitos dicotómicos não dão conta do conteúdo intersubjectivo dos direitos que exigem o respeito recíproco de direitos e deveres mediante relações de reconhecimento de carácter simétrico. Na verdade, é o projecto republicano que vai ao encontro de um conceito de direito que outorga à integridade do indivíduo e às suas liberdades subjectivas o mesmo peso que é atribuído à integridade da comunidade cujos indivíduos podem reconhecer-se uns aos outros como seus membros e enquanto indivíduos. Pois a concepção republicana vincula a legitimidade da lei ao procedimento democrático da sua génese, estabelecendo assim uma conexão interna entre a prática da autodeterminação do povo e o império impessoal da lei. "Para os republicanos os direitos não passam, em última análise, de determinações da vontade política prevalecente, enquanto que, para os liberais, certos direitos estão sempre fundados numa 'lei superior’ da razão ou revelação transpolítica. (…) De um ponto de vista republicano, o objectivo de uma comunidade, o bem comum, consiste substancialmente no sucesso do seu empenho político para definir, estabelecer, efectivar e sustentar o conjunto de direitos (ou menos tendenciosamente, leis) melhor ajustados às condições e costumes dessa comunidade, ao passo que, de um ponto de vista contrastantemente liberal, os direitos baseados na lei superior fornecem as estruturas transcendentais e os limites ao poder necessários para que a busca pluralista de interesses diferentes e conflituantes possa decorrer da forma tão satisfatória quanto seja possível".
Na tradição republicana, o direito de voto interpretado como liberdade positiva, converte-se em paradigma dos direitos em geral, não apenas pelo facto desse direito ser condição indispensável da autodeterminação política, mas também porque nele se torna explícito em que medida a inclusão numa comunidade de portadores de direitos iguais está associada à capacidade dos indivíduos de realizar contribuições autónomas e de assumir posições próprias. Essa estrutura que se pode identificar com base na interpretação dos direitos à comunicação e à participação política distribui-se entre todos os direitos ao longo do processo legislativo que os constitui. Também a atribuição de poder no âmbito do direito privado, para que se persigam fins privados e livremente escolhidos, obriga concomitantemente que se respeitem os limites da acção estratégica acordados segundo o interesse de todos.
(c) Processo político
As diferentes concepções do papel do cidadão e do direito exprimem um desacordo muito mais profundo sobre a natureza do processo político. Segundo a concepção liberal, a política é essencialmente uma luta por posições que asseguram a capacidade de dispor de poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião políticas na esfera pública e no parlamento é determinado pela concorrência entre actores colectivos, que agem estrategicamente com o objectivo de conservar ou adquirir posições de poder. O êxito alcançado nesse processo será medido pelo consentimento dos cidadãos em relação a pessoas e programas, quantificado pelo número de votos obtidos em eleições. Ao votar, os eleitores expressam as suas preferências. As decisões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que as escolhas orientadas para o êxito dos participantes do mercado. Esses votos tornam possível a procura de posições de poder, que os partidos políticos disputam entre si adoptando uma atitude semelhante de orientação para o êxito. O input de votos e o output de poder correspondem ao mesmo modelo de acção estratégica: “Ao contrário da deliberação, a interacção estratégica tem por fim a coordenação e não tanto a cooperação. Em última análise, o que se exige das pessoas é que levem em conta apenas o seu interesse próprio. O seu meio é a negociação, não a argumentação. Os seus instrumentos de persuasão não são reivindicações ou razões, mas ofertas condicionadas de serviços e abstenção. Seja formalmente incorporado num voto ou num contrato ou simplesmente materializado de um modo informal nas condutas sociais, um resultado estratégico não representa um juízo colectivo da razão, mas uma soma vectorial num campo de forças”.
Segundo a concepção republicana, a formação da opinião e vontade políticas no espaço público e no parlamento não obedece às estruturas dos processos de mercado, mas tem as suas estruturas específicas. São elas as estruturas de uma comunicação pública orientada para o entendimento. O paradigma da política no sentido da prática de uma autodeterminação por parte de cidadãos do Estado, não é o do mercado, mas o do diálogo. Segundo essa visão, há uma diferença estrutural entre o poder comunicativo, que advém da comunicação política na forma de opiniões maioritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder administrativo próprio do aparelho do estado. Também os partidos que lutam pelo acesso a posições de poder no Estado têm de se adequar ao estilo específico dos discursos políticos: A deliberação… refere-se a uma certa atitude relativamente à cooperação social, especificamente a que está aberta à persuasão por meio de razões relativas às pretensões dos outros e às nossas. A via deliberativa corresponde a uma troca de perspectivas de boa fé – incluindo os relatos dos participantes relativamente às suas concepções particulares dos respectivos interesses vitais – em que um voto, qualquer voto, representa um conjunto de juízos”. Precisamente por isso, o confronto sustentado de opiniões no terreno da política tem uma força legitimadora, não apenas no sentido de uma autorização para ocupar posições de poder, mas também no sentido de que o exercício continuado do discurso político possui uma força vinculatória sobre o modo de exercício do poder político. O poder administrativo só pode ser aplicado com base em políticas e no limite das leis que nascem do processo democrático.»
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