«Hobbes pode facilmente recorrer à experiência quotidiana para provar a sua tese central sobre a conduta humana, que é, em poucas palavras, que todos somos egoístas e estamos dispostos a usar os outros em nosso próprio benefício. Pergunta-se o que existe de céptico na sua posição: Qual é a opinião que este homem tem do seu próximo quando está armado? Quando tranca as suas portas? Que opinião tem dos seus criados e dos seus filhos quando fecha a cadeados os seus cofres? Por outras palavras, o que fazemos diariamente demonstra que não acreditamos nos outros, mas que pensamos que todos perseguem o seu interesse pessoal, inclusivamente à custa de outrem. No discurso quotidiano existem muitas frases feitas como “primeiro eu e depois eu”, ou “a caridade bem entendida começa em nós mesmos”, que sugerem que a tese de Hobbes de que o primeiro e principal somos nós mesmos coincide com a maior parte da sabedoria popular.
Hobbes acredita que “num estado de natureza”, em que os homens são mais ou menos iguais e não estão limitados pelas leis de uma sociedade determinada, estes devem tentar sobreviver da melhor forma. A própria sobrevivência é prioritária e os seus desejos naturais não podem considerar-se bons nem maus em si mesmos. A moral é, assim, irrelevante. A “condição natural da humanidade” é aquela em que cada indivíduo choca com todos os outros, pois todos tentam alcançar a segurança. Hobbes utiliza duas analogias bastante gráficas. Na primeira fala da “guerra” de “todos contra todos”, não se referindo necessariamente a confrontos reais, as à luta permanente que se desencadearia se os homens não vivessem em segurança e tivessem que depender por completo dos seus próprios recursos. Não existiria então nenhuma das vantagens que oferece a sociedade: nem a indústria, nem a agricultura, nem a navegação, nem o conhecimento científico. Haveria um medo contínuo e a ameaça de morte violenta. A listagem das misérias que corresponde ao estado natural termina com a sua frase “a vida do homem” seria “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”.
Segundo Hobbes, é indiferente que as suas conjecturas acerca de uma natureza humana livre de constrangimentos sociais possam não ser historicamente exactas – embora coloque o exemplo concreto de “os selvagens de bastantes lugares da América”, que segundo ele não possuíam nenhuma classe de governo. O que quer mostrar é que não pode haver sociedade sem governo e sem as sanções da lei. Haveria apenas indivíduos antagónicos entre si. Trata-se do equivalente secular ao estado de pecado original, condição da qual temos que sair. Não obstante, Hobbes não sugere em nenhum momento que o impulso de auto-protecção e de defesa do interesse pessoal seja mau. Nunca condena o egoísmo nem a indiferença para com os outros. Assim são os homens, diz, e todas as formas de organização social devem ter isso em conta. A razão para estabelecermos relações sociais deve ser precisamente que fazê-lo convém aos nossos próprios interesses. A teoria política de Hobbes tem a sua base mais firme na procura sistemática do benefício pessoal e racional.
A segunda imagem de Hobbes é a que compara a vida humana a uma corrida, em que temos que supor que não há outro objectivo nem outro prémio a não ser o de conseguir chegar em primeiro lugar. A competição – o desejo de superar o outro – é parte da trama das nossas vidas: ou queremos alcançar algo à custa dos outros, ou queremos defender aquilo que já conquistamos. Também procuramos a glória e a honra para nós mesmos. Nessa corrida pode haver muita crueldade – “ver cair o outro produz grande alegria” – embora Hobbes reconheça que também possa haver compaixão e auxílio aos outros. Pode até ser que, por caridade, alguém afaste da corrida um rival. No entanto, o mais importante é o individualismo agressivo, alimentado pelo medo de que os outros nos privem do que queremos. Hobbes fala de um direito natural, que não é um direito à justiça, pelo contrário, cada homem “tem direito a tudo, incluindo dispor do corpo de outrem”. O nosso direito natural básico é o de usar o mais possível as nossas capacidades para sobreviver. Nasce assim, na filosofia, uma concepção dos direitos totalmente distinta das que colocam no outro lado da balança os deveres e as obrigações. Se cada pessoa exigisse que se reconhecessem os seus interesses, mas não estivesse disposta a considerar os dos outros, a sociedade teria forçosamente uma base instável. Nenhuma sociedade pode existir nessas condições, e Hobbes tem que aceitar que se desenvolva um sentido do dever ainda que não natural.
Terá Hobbes razão quando parte do pressuposto de que só nos interessa o nosso benefício pessoal? Na realidade, não está claro até que ponto queria acentuar realmente esse egoísmo. Uma versão extrema é o egoísmo psicológico, segundo o qual um indivíduo só pode querer o seu próprio bem. Quer dizer, se te ajudo é porque quero o meu bem-estar, não o teu. Provavelmente desejo a satisfação que resulta de ser generoso. É uma tese lógica que pode degenerar na ideia desinteressante de que quero apenas o que quero. Mesmo assim, se quero o teu bem, o resultado de que esse é o meu desejo, não equivale a ser egoísta. Continua a ser o teu bem o que desejo, não o meu. A questão é saber se Hobbes aceita ou não que eu possa estar interessado no teu bem. Admite, como temos visto, que uma pessoa pode ajudar outra na corrida da vida, e que até no estado de natureza os homens podem ser generosos. Mas fica por demonstrar se não estarão apenas a perseguir os seus interesses pessoais, pois a sua motivação poderia ser egoísta.
Hobbes descreve a caridade dizendo que “nada pode convencer mais a um homem do poder que tem do que sentir-se capaz não apenas de cumprir os seus desejos, mas também de ajudar os outros a cumprir os seus”. De igual modo, a compaixão é “a imaginação ou ficção, ao ver as calamidades alheias, de que vamos sofrer também nós no futuro”. É óbvio o carácter egocêntrico desta atitude: o interesse pelos outros é um subproduto do interesse por nós mesmos. Quer dizer, eu realmente não me preocupo contigo a não ser que a tua situação difícil desencadeie em mim uma reacção de simpatia que tem a sua origem na minha preocupação comigo mesmo. De igual modo, ajudar-te provoca em mim uma sensação bastante agradável de poder. O problema lógico, no entanto, radica no facto de Hobbes poder realmente afirmar que os interesses dos outros me são completamente indiferentes, mesmo que sejam meios para outra coisa qualquer. O Bispo Butler, um filósofo moral célebre do século XVIII, ataca Hobbes neste ponto, defendendo que a mera apetência pelo poder não permite discernir entre objectos. Não quer o poder só por si, mas para o utilizar de algum modo concreto. Para exercer poder sobre ti, deve algo na tua circunstância que eu queria mudar. Se, por exemplo, quero aliviar a tua dor porque assim me sinto superior, pode ser que isto seja basicamente egoísta, mas o que eu quero é aliviar-te e não apenas sentir-me superior. Pode pensar-se até que Hobbes pudesse estar de acordo com Butler. Depois de tudo, a sua definição de compaixão não equivale simplesmente ao medo de alguma calamidade futura. Supõe que ao vermos a desgraça alheia imaginamos que algo semelhante nos pode acontecer. A simpatia está unida ao conhecimento do que seria sofrer isso mesmo na nossa própria carne. Embora haja aqui uma grande dose de egoísmo, não se infere que o objecto da minha emoção seja a minha calamidade imaginada e não a calamidade real de outrem. É possível que a minha preocupação com os outros seja imperfeita, mas em parte continuará a ser uma preocupação com os outros e não apenas comigo. Hobbes reconhece que pode existir “afecto natural” dos pais para com os filhos, e que podemos sentir afecto por outras pessoas próximas de nós. É mais céptico relativamente à ajuda que prestamos a estranhos e sugere que o fim dessas acções é “comprar amizade” ou, possivelmente, mediante o medo, “comprar a paz”. Ainda assim fica a sugestão de que a indiferença para com os outros não é total e que pelo menos podemo-nos preocupar com algumas pessoas. Provavelmente não se pode acusar Hobbes de defender um egoísmo psicológico total, mas a sua maneira de se concentrar no indivíduo à margem das restrições da sociedade leva-o a colocar o interesse pessoal em primeiro lugar. É como se a preocupação com os outros, embora possível, nunca pudesse ser sincera, uma vez que estaria sempre ligada aos nossos interesses pessoais básicos. Hobbes acredita que a sociedade humana deve construir-se a partir deste feito. Como o nosso impulso mais forte é o da sobrevivência individual, a sociedade deve justificar-se sobre a base do que convém à nossa segurança.»
Trigg, Roger (2001). Concepciones de la Naturaleza Humana. Uma Introducción Histórica. Madrid: Alianza Editorial, pp. 84-92 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Hobbes acredita que “num estado de natureza”, em que os homens são mais ou menos iguais e não estão limitados pelas leis de uma sociedade determinada, estes devem tentar sobreviver da melhor forma. A própria sobrevivência é prioritária e os seus desejos naturais não podem considerar-se bons nem maus em si mesmos. A moral é, assim, irrelevante. A “condição natural da humanidade” é aquela em que cada indivíduo choca com todos os outros, pois todos tentam alcançar a segurança. Hobbes utiliza duas analogias bastante gráficas. Na primeira fala da “guerra” de “todos contra todos”, não se referindo necessariamente a confrontos reais, as à luta permanente que se desencadearia se os homens não vivessem em segurança e tivessem que depender por completo dos seus próprios recursos. Não existiria então nenhuma das vantagens que oferece a sociedade: nem a indústria, nem a agricultura, nem a navegação, nem o conhecimento científico. Haveria um medo contínuo e a ameaça de morte violenta. A listagem das misérias que corresponde ao estado natural termina com a sua frase “a vida do homem” seria “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”.
Segundo Hobbes, é indiferente que as suas conjecturas acerca de uma natureza humana livre de constrangimentos sociais possam não ser historicamente exactas – embora coloque o exemplo concreto de “os selvagens de bastantes lugares da América”, que segundo ele não possuíam nenhuma classe de governo. O que quer mostrar é que não pode haver sociedade sem governo e sem as sanções da lei. Haveria apenas indivíduos antagónicos entre si. Trata-se do equivalente secular ao estado de pecado original, condição da qual temos que sair. Não obstante, Hobbes não sugere em nenhum momento que o impulso de auto-protecção e de defesa do interesse pessoal seja mau. Nunca condena o egoísmo nem a indiferença para com os outros. Assim são os homens, diz, e todas as formas de organização social devem ter isso em conta. A razão para estabelecermos relações sociais deve ser precisamente que fazê-lo convém aos nossos próprios interesses. A teoria política de Hobbes tem a sua base mais firme na procura sistemática do benefício pessoal e racional.
A segunda imagem de Hobbes é a que compara a vida humana a uma corrida, em que temos que supor que não há outro objectivo nem outro prémio a não ser o de conseguir chegar em primeiro lugar. A competição – o desejo de superar o outro – é parte da trama das nossas vidas: ou queremos alcançar algo à custa dos outros, ou queremos defender aquilo que já conquistamos. Também procuramos a glória e a honra para nós mesmos. Nessa corrida pode haver muita crueldade – “ver cair o outro produz grande alegria” – embora Hobbes reconheça que também possa haver compaixão e auxílio aos outros. Pode até ser que, por caridade, alguém afaste da corrida um rival. No entanto, o mais importante é o individualismo agressivo, alimentado pelo medo de que os outros nos privem do que queremos. Hobbes fala de um direito natural, que não é um direito à justiça, pelo contrário, cada homem “tem direito a tudo, incluindo dispor do corpo de outrem”. O nosso direito natural básico é o de usar o mais possível as nossas capacidades para sobreviver. Nasce assim, na filosofia, uma concepção dos direitos totalmente distinta das que colocam no outro lado da balança os deveres e as obrigações. Se cada pessoa exigisse que se reconhecessem os seus interesses, mas não estivesse disposta a considerar os dos outros, a sociedade teria forçosamente uma base instável. Nenhuma sociedade pode existir nessas condições, e Hobbes tem que aceitar que se desenvolva um sentido do dever ainda que não natural.
Terá Hobbes razão quando parte do pressuposto de que só nos interessa o nosso benefício pessoal? Na realidade, não está claro até que ponto queria acentuar realmente esse egoísmo. Uma versão extrema é o egoísmo psicológico, segundo o qual um indivíduo só pode querer o seu próprio bem. Quer dizer, se te ajudo é porque quero o meu bem-estar, não o teu. Provavelmente desejo a satisfação que resulta de ser generoso. É uma tese lógica que pode degenerar na ideia desinteressante de que quero apenas o que quero. Mesmo assim, se quero o teu bem, o resultado de que esse é o meu desejo, não equivale a ser egoísta. Continua a ser o teu bem o que desejo, não o meu. A questão é saber se Hobbes aceita ou não que eu possa estar interessado no teu bem. Admite, como temos visto, que uma pessoa pode ajudar outra na corrida da vida, e que até no estado de natureza os homens podem ser generosos. Mas fica por demonstrar se não estarão apenas a perseguir os seus interesses pessoais, pois a sua motivação poderia ser egoísta.
Hobbes descreve a caridade dizendo que “nada pode convencer mais a um homem do poder que tem do que sentir-se capaz não apenas de cumprir os seus desejos, mas também de ajudar os outros a cumprir os seus”. De igual modo, a compaixão é “a imaginação ou ficção, ao ver as calamidades alheias, de que vamos sofrer também nós no futuro”. É óbvio o carácter egocêntrico desta atitude: o interesse pelos outros é um subproduto do interesse por nós mesmos. Quer dizer, eu realmente não me preocupo contigo a não ser que a tua situação difícil desencadeie em mim uma reacção de simpatia que tem a sua origem na minha preocupação comigo mesmo. De igual modo, ajudar-te provoca em mim uma sensação bastante agradável de poder. O problema lógico, no entanto, radica no facto de Hobbes poder realmente afirmar que os interesses dos outros me são completamente indiferentes, mesmo que sejam meios para outra coisa qualquer. O Bispo Butler, um filósofo moral célebre do século XVIII, ataca Hobbes neste ponto, defendendo que a mera apetência pelo poder não permite discernir entre objectos. Não quer o poder só por si, mas para o utilizar de algum modo concreto. Para exercer poder sobre ti, deve algo na tua circunstância que eu queria mudar. Se, por exemplo, quero aliviar a tua dor porque assim me sinto superior, pode ser que isto seja basicamente egoísta, mas o que eu quero é aliviar-te e não apenas sentir-me superior. Pode pensar-se até que Hobbes pudesse estar de acordo com Butler. Depois de tudo, a sua definição de compaixão não equivale simplesmente ao medo de alguma calamidade futura. Supõe que ao vermos a desgraça alheia imaginamos que algo semelhante nos pode acontecer. A simpatia está unida ao conhecimento do que seria sofrer isso mesmo na nossa própria carne. Embora haja aqui uma grande dose de egoísmo, não se infere que o objecto da minha emoção seja a minha calamidade imaginada e não a calamidade real de outrem. É possível que a minha preocupação com os outros seja imperfeita, mas em parte continuará a ser uma preocupação com os outros e não apenas comigo. Hobbes reconhece que pode existir “afecto natural” dos pais para com os filhos, e que podemos sentir afecto por outras pessoas próximas de nós. É mais céptico relativamente à ajuda que prestamos a estranhos e sugere que o fim dessas acções é “comprar amizade” ou, possivelmente, mediante o medo, “comprar a paz”. Ainda assim fica a sugestão de que a indiferença para com os outros não é total e que pelo menos podemo-nos preocupar com algumas pessoas. Provavelmente não se pode acusar Hobbes de defender um egoísmo psicológico total, mas a sua maneira de se concentrar no indivíduo à margem das restrições da sociedade leva-o a colocar o interesse pessoal em primeiro lugar. É como se a preocupação com os outros, embora possível, nunca pudesse ser sincera, uma vez que estaria sempre ligada aos nossos interesses pessoais básicos. Hobbes acredita que a sociedade humana deve construir-se a partir deste feito. Como o nosso impulso mais forte é o da sobrevivência individual, a sociedade deve justificar-se sobre a base do que convém à nossa segurança.»
Trigg, Roger (2001). Concepciones de la Naturaleza Humana. Uma Introducción Histórica. Madrid: Alianza Editorial, pp. 84-92 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Sem comentários:
Enviar um comentário