«É raro em filosofia chegar a consenso acerca de qualquer questão substantiva, mas durante algum tempo existiu um consenso quase completo sobre o que se designa "análise tradicional do conhecimento como crença verdadeira justificada". De acordo com essa análise:
S sabe que p se e só se:
1) p é verdadeira,
2) S acredita que p; e
3) S está justificado em acreditar que p.
No período imediato que antecedeu a publicação do famoso artigo de Gettier (1963) "É o Conhecimento Crença Verdadeira Justificada?", esta análise era defendida por virtualmente todos os epistemológos. Mas Gettier publicou o seu artigo e alterou, praticamente sozinho, o curso da epistemologia. Conseguiu isso apresentando dois contra-exemplos claros e inegáveis à análise da crença verdadeira justificada. Resumindo o exemplo do Capítulo 1, considere-se Smith que acredita falsamente mas com boas razões que Jones tem um Ford. Smith não faz ideia do paradeiro de Brown, mas escolhe arbitrariamente Barcelona e, do facto putativo de que Jones tem um Ford, infere que Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona. Acontece que por acaso Brown está em Barcelona, pelo que esta disjunção é verdadeira. Além do mais, tal como Smith tem boas razões para acreditar que Jones é dono de um Ford, está justificado em acreditar nesta disjunção. Mas já que os dados de que dispõe não pertencem à proposição verdadeira da disjunção, não podemos dizer que Smith sabe que Jones é dono de um Ford ou Brown está em Barcelona.
Ao ensaio de Gettier seguiu-se uma avalanche de artigos que procuravam responder aos contra-exemplos adicionando uma quarta condição à análise tradicional do conhecimento. A primeira tentativa para resolver o problema de Gettier virou-se para a consideração de que, nos exemplos de Gettier, o agente epistémico alcança uma crença verdadeira justificada raciocinando a partir de uma crença falsa. Isso sugeriu a adição de uma quarta condição parecida com o seguinte:
As razões para S acreditar p não podem incluir qualquer crença falsa.
Contudo, rapidamente se percebeu que se podia construir outros contra-exemplos em que não havia conhecimento apesar de o agente epistémico não o inferir de crenças falsas. Alvin Goldman (1976) construiu o seguinte exemplo: suponha que está a viajar pelo campo e que vê o que pensa ser um estábulo; vê isso de forma clara a curta distância, e tem o aspecto que deve ter um estábulo, e assim sucessivamente; além disso, é um estábulo. Tem então a crença verdadeira justificada de que é um estábulo. Mas as pessoas desse local, para parecerem mais ricas do que realmente são, construíram fachadas de estábulos bem realistas que não se podem distinguir facilmente do que realmente são quando vistas da auto-estrada. Há mais fachadas de estábulos do que estábulos reais. Nestas circunstâncias, não é possível concordar que, apesar de ter uma crença verdadeira justificada, sabe que o que está a ver é um estábulo. Além disso, a crença de que está a ver um estábulo não foi, de forma alguma, inferida da crença na ausência de fachadas de estábulos. Provavelmente, a possibilidade de existirem fachadas de estábulos é algo que nunca lhe ocorreu, e muito menos algo que desempenhou qualquer papel no seu raciocínio.
Podemos construir um exemplo perceptivo ainda mais simples. Suponha que S vê uma bola que lhe parece encarnada, com base no facto de ajuizar correctamente que é encarnada. Mas sem o conhecimento de S, a bola está iluminada por luzes encarnadas e pareceria encarnada mesmo que o não fosse. Então S não sabe que a bola é encarnada, apesar de ter uma crença verdadeira justificada para esse efeito. Além disso, a sua razão para acreditar que a bola é encarnada não envolve a sua crença de que a bola não está a ser iluminada por luzes encarnadas. A iluminação por luzes encarnadas está relacionada com o seu raciocínio apenas porque o derrota, e não porque é um passo do raciocínio. Estes exemplos, e outros relacionados, indicam que a crença verdadeira justificada falha como conhecimento por causa do valor de verdade das proposições não desempenhar um papel directo no raciocínio que subjaz a essa crença. Esta observação conduziu a um número de análises "anulabilistas" do conhecimento. A mais simples consistirá em adicionar uma quarta condição requerida desde que não surjam verdadeiras condições de anulabilidade. Pode ser alcançada da forma seguinte:
Não há uma proposição verdadeira Q tal que se Q fosse adicionada às crenças de S, este não estaria justificado em acreditar p.
Mas Keither Lehrer e Thomas Paxson (1969) apresentaram o seguinte contra-exemplo a esta proposta simples:
Suponha que vejo um homem numa biblioteca a roubar um livro e a escondê-lo debaixo do casaco. Uma vez que tenho a certeza de que esse homem é Tom Grabit, pois vi-o muitas vezes quando assistia às minhas aulas, afirmo que foi Tom Grabit que roubou o livro. Contudo, suponha também que a Sra. Grabit, mãe de Tom, afirmou que, no dia em questão, Tom não estava na biblioteca, que estava mesmo a centenas de milhar de quilómetros de distância, e que quem estava na biblioteca era John Grabit, o irmão gémeo de Tom. Além disso, imagine que desconheço em absoluto o que disse a Sra. Grabit e que, considerando a presente definição de anulabilidade, o conteúdo da sua declaração anula qualquer justificação que eu possa ter para acreditar que Tom Grabit roubou o livro [...]
O que se disse antes pode ser aceite até acabarmos a história e ficarmos a saber que a Sra. Grabit é uma mentirosa compulsiva e patológica, que Tom Grabit é uma ficção da sua mente doente, e que, tal como eu acreditava, Tom Grabit roubou o livro. Quando se acrescenta isto, deve ser óbvio que eu sabia que Tom Grabit roubou o livro. (p. 228)
Uma proposta natural para lidar com o exemplo de Grabit é que, além de haver uma verdadeira condição de anulabilidade, há um anulador da condição de anulabilidade, o que restaura o conhecimento. Por exemplo, no exemplo de Grabit é verdade que a Sra. Grabit declarou não ser o Tom que estava na livraria, mas o seu irmão gémeo John (uma condição de anulabilidade), mas também é verdade que a Sra. Grabit é uma mentirosa compulsiva e patológica e que John Grabit é uma ficção da sua mente demente (um anulador da condição de anulabilidade). Contudo, é difícil construir um princípio preciso para lidar correctamente com estes exemplos apelando a verdadeiras condições de anulabilidade e verdadeiros anuladores da condição de anulabilidade. Corrigir a proposta anterior da seguinte maneira não funciona:
Se há uma proposição verdadeira Q tal que se Q fosse adicionada às crenças de S, este já não estaria justificado em acreditar p, então também há uma proposição verdadeira R tal que se Q e R fossem ambas adicionadas às crenças de S, este estaria justificado em acreditar p.
As dificuldades mais simples apresentadas a esta proposta é que ao adicionar R podemos acrescentar novas razões para acreditar em p em vez de restaurar as razões antigas. Não é trivial ver como formular uma quarta condição que incorpore anuladores de condições de anulabilidade. Penso que essa quarta condição fornecerá, em última análise, a solução para o problema de Gettier, mas nenhum tipo de solução deste tipo foi ainda explorado na bibliografia.»
S sabe que p se e só se:
1) p é verdadeira,
2) S acredita que p; e
3) S está justificado em acreditar que p.
No período imediato que antecedeu a publicação do famoso artigo de Gettier (1963) "É o Conhecimento Crença Verdadeira Justificada?", esta análise era defendida por virtualmente todos os epistemológos. Mas Gettier publicou o seu artigo e alterou, praticamente sozinho, o curso da epistemologia. Conseguiu isso apresentando dois contra-exemplos claros e inegáveis à análise da crença verdadeira justificada. Resumindo o exemplo do Capítulo 1, considere-se Smith que acredita falsamente mas com boas razões que Jones tem um Ford. Smith não faz ideia do paradeiro de Brown, mas escolhe arbitrariamente Barcelona e, do facto putativo de que Jones tem um Ford, infere que Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona. Acontece que por acaso Brown está em Barcelona, pelo que esta disjunção é verdadeira. Além do mais, tal como Smith tem boas razões para acreditar que Jones é dono de um Ford, está justificado em acreditar nesta disjunção. Mas já que os dados de que dispõe não pertencem à proposição verdadeira da disjunção, não podemos dizer que Smith sabe que Jones é dono de um Ford ou Brown está em Barcelona.
Ao ensaio de Gettier seguiu-se uma avalanche de artigos que procuravam responder aos contra-exemplos adicionando uma quarta condição à análise tradicional do conhecimento. A primeira tentativa para resolver o problema de Gettier virou-se para a consideração de que, nos exemplos de Gettier, o agente epistémico alcança uma crença verdadeira justificada raciocinando a partir de uma crença falsa. Isso sugeriu a adição de uma quarta condição parecida com o seguinte:
As razões para S acreditar p não podem incluir qualquer crença falsa.
Contudo, rapidamente se percebeu que se podia construir outros contra-exemplos em que não havia conhecimento apesar de o agente epistémico não o inferir de crenças falsas. Alvin Goldman (1976) construiu o seguinte exemplo: suponha que está a viajar pelo campo e que vê o que pensa ser um estábulo; vê isso de forma clara a curta distância, e tem o aspecto que deve ter um estábulo, e assim sucessivamente; além disso, é um estábulo. Tem então a crença verdadeira justificada de que é um estábulo. Mas as pessoas desse local, para parecerem mais ricas do que realmente são, construíram fachadas de estábulos bem realistas que não se podem distinguir facilmente do que realmente são quando vistas da auto-estrada. Há mais fachadas de estábulos do que estábulos reais. Nestas circunstâncias, não é possível concordar que, apesar de ter uma crença verdadeira justificada, sabe que o que está a ver é um estábulo. Além disso, a crença de que está a ver um estábulo não foi, de forma alguma, inferida da crença na ausência de fachadas de estábulos. Provavelmente, a possibilidade de existirem fachadas de estábulos é algo que nunca lhe ocorreu, e muito menos algo que desempenhou qualquer papel no seu raciocínio.
Podemos construir um exemplo perceptivo ainda mais simples. Suponha que S vê uma bola que lhe parece encarnada, com base no facto de ajuizar correctamente que é encarnada. Mas sem o conhecimento de S, a bola está iluminada por luzes encarnadas e pareceria encarnada mesmo que o não fosse. Então S não sabe que a bola é encarnada, apesar de ter uma crença verdadeira justificada para esse efeito. Além disso, a sua razão para acreditar que a bola é encarnada não envolve a sua crença de que a bola não está a ser iluminada por luzes encarnadas. A iluminação por luzes encarnadas está relacionada com o seu raciocínio apenas porque o derrota, e não porque é um passo do raciocínio. Estes exemplos, e outros relacionados, indicam que a crença verdadeira justificada falha como conhecimento por causa do valor de verdade das proposições não desempenhar um papel directo no raciocínio que subjaz a essa crença. Esta observação conduziu a um número de análises "anulabilistas" do conhecimento. A mais simples consistirá em adicionar uma quarta condição requerida desde que não surjam verdadeiras condições de anulabilidade. Pode ser alcançada da forma seguinte:
Não há uma proposição verdadeira Q tal que se Q fosse adicionada às crenças de S, este não estaria justificado em acreditar p.
Mas Keither Lehrer e Thomas Paxson (1969) apresentaram o seguinte contra-exemplo a esta proposta simples:
Suponha que vejo um homem numa biblioteca a roubar um livro e a escondê-lo debaixo do casaco. Uma vez que tenho a certeza de que esse homem é Tom Grabit, pois vi-o muitas vezes quando assistia às minhas aulas, afirmo que foi Tom Grabit que roubou o livro. Contudo, suponha também que a Sra. Grabit, mãe de Tom, afirmou que, no dia em questão, Tom não estava na biblioteca, que estava mesmo a centenas de milhar de quilómetros de distância, e que quem estava na biblioteca era John Grabit, o irmão gémeo de Tom. Além disso, imagine que desconheço em absoluto o que disse a Sra. Grabit e que, considerando a presente definição de anulabilidade, o conteúdo da sua declaração anula qualquer justificação que eu possa ter para acreditar que Tom Grabit roubou o livro [...]
O que se disse antes pode ser aceite até acabarmos a história e ficarmos a saber que a Sra. Grabit é uma mentirosa compulsiva e patológica, que Tom Grabit é uma ficção da sua mente doente, e que, tal como eu acreditava, Tom Grabit roubou o livro. Quando se acrescenta isto, deve ser óbvio que eu sabia que Tom Grabit roubou o livro. (p. 228)
Uma proposta natural para lidar com o exemplo de Grabit é que, além de haver uma verdadeira condição de anulabilidade, há um anulador da condição de anulabilidade, o que restaura o conhecimento. Por exemplo, no exemplo de Grabit é verdade que a Sra. Grabit declarou não ser o Tom que estava na livraria, mas o seu irmão gémeo John (uma condição de anulabilidade), mas também é verdade que a Sra. Grabit é uma mentirosa compulsiva e patológica e que John Grabit é uma ficção da sua mente demente (um anulador da condição de anulabilidade). Contudo, é difícil construir um princípio preciso para lidar correctamente com estes exemplos apelando a verdadeiras condições de anulabilidade e verdadeiros anuladores da condição de anulabilidade. Corrigir a proposta anterior da seguinte maneira não funciona:
Se há uma proposição verdadeira Q tal que se Q fosse adicionada às crenças de S, este já não estaria justificado em acreditar p, então também há uma proposição verdadeira R tal que se Q e R fossem ambas adicionadas às crenças de S, este estaria justificado em acreditar p.
As dificuldades mais simples apresentadas a esta proposta é que ao adicionar R podemos acrescentar novas razões para acreditar em p em vez de restaurar as razões antigas. Não é trivial ver como formular uma quarta condição que incorpore anuladores de condições de anulabilidade. Penso que essa quarta condição fornecerá, em última análise, a solução para o problema de Gettier, mas nenhum tipo de solução deste tipo foi ainda explorado na bibliografia.»
Pollock, John L., “Contemporary Theories of Knowledge” in Bernecker, Sven (2006). Epistemology. Selected texts with interactive commentary. Oxford: Blackwell Publishing, pp. 8-10 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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