quinta-feira, 27 de março de 2008

Robert Nozick, "Facto e Valor" (Parte III)

«Um princípio fundamental de moralidade apresentar-se-ia do seguinte modo

P: Devemos seguir princípios com característica F.

Poderá formar um pressuposto se P ele próprio incluir F. Ou talvez o princípio seja

P: Devemos ter comportamentos com característica F, onde o princípio P seguinte seja ele próprio uma acção com característica F.

O princípio de consentimento por unanimidade numa situação de escolha pode ser analisado na perspectiva do princípio fundamental da moralidade que tem a capacidade de pressuposição.

U: Seja qual for o princípio com que todos concordem unanimemente (ou com o qual concordariam) tendo em conta condições C (o véu da ignorância, conhecimento absoluto, ou o que quer que seja) ele deve ser seguido.

Se de acordo com essas condições C, todos concordassem com o princípio U, resulta (e pode ser deduzido) deste facto juntamente com o princípio U, que este deve ser seguido. Convém notar que um princípio não resulta ele próprio num facto trivial, ou que um princípio de processo é ele próprio o resultado desse mesmo processo. O princípio de que seja o que for que qualquer maioria num grupo de pessoas concorde deve ser seguido poderia ele próprio ser rejeitado por uma maioria naquele mesmo grupo de pessoas, quer eles optem por legislação que limite a vontade da maioria quer por um ditador que esteja acima de qualquer controle.
Outro exemplo que pode ser analisado na perspectiva do princípio fundamental da moralidade diz respeito ao acto de cooperação em situações relacionadas com prisioneiros, assim designado após o exemplo usado por A . W. Tucker quando os determinou pela primeira vez. A polícia apresenta duas alternativas a dois suspeitos capturados: se um deles confessar e o outro não, o primeiro terá uma sentença de 2 anos enquanto o último de 12; se nenhum confessar, serão ambos condenados a 4 anos de prisão; se ambos confessarem, serão ambos sentenciados a 10 anos. Cada prisioneiro tem o seguinte raciocínio: “Vale mais confessar seja o que for que o outro decidir: supondo que ele confesse, se eu não confessar apanho 12 anos enquanto que se eu confessar apanho 10, o que é melhor. Logo analisando todos os casos é bem melhor confessar.” Uma vez que ambos desenvolvem o mesmo tipo de raciocínio, ambos confessam, e logo ambos são sentenciados a 10 anos de prisão; enquanto que se nenhum tivesse confessado, apenas passariam 4 anos na prisão. Por esta lógica seria bem melhor se nenhum tivesse confessado. Embora tivessem consciência deste facto na altura de decidir o que fazer, apesar de tudo, cada um percebeu que estaria em melhores circunstâncias confessando fosse o que fosse o que o outro decidisse, e por isso ambos confessaram.
Uma acção que oferece melhores condições a alguém, resultado daquilo que outro possa eventualmente fazer, tal como qualquer outra acção que lhe é dirigida é designada pelos teóricos como uma acção dominante (fraca); enquanto que uma acção sobre a qual um certo tipo de comportamento é determinante é considerada acção dominada. Tudo parece indicar que quando uma acção dominante tem lugar numa situação de relação interpessoal deveria ser desempenhada por alguém racional. Porém a situação de dilema dos prisioneiros é de tal forma estruturada que ambos são mais prejudicados se adoptarem uma acção dominante do que se ambos tivessem desempenhado a dominada.
A discussão à volta deste contexto (alargada a mais de duas pessoas) e suas ramificações constituem neste momento uma vasta literatura. Muitos tentaram explicar como determinadas instituições funcionam de modo a evitar ou transformar estas situações de dilema de prisioneiros. Ainda assim, por vezes estas situações aparecem, e os autores verificam que, em muitos casos, é exigido aos participantes que desempenhem a acção dominante cooperativa, ou vêem esta acção como algo que eles devem fazer. (Refiro-me a “muitas” situações de dilema de prisioneiros - e não a “todas”, uma vez que nem sempre é adequado ou correcto desempenhar este tipo de acções em que se recorre à cooperação de testemunhas de entre os criminosos. Deste modo seja qual for o princípio moral mais adequado necessita de ser circunscrito a algumas subclasses S de situações de dilema de prisioneiros.)
Neste sentido poderíamos considerar o princípio PD: Numa situação de dilema de prisioneiros generalizada de tipo S, um indivíduo deve desempenhar uma acção dominada de cooperação. PD é um princípio ético que se aplica a escolhas em situações estruturadas específicas, onde o seu motor de comando difere dos princípios racionais de interesse pessoal. Nesta linha de ideias, temos um princípio moral proposto, mas não pressuposição.
Consideremos agora a escolha entre princípios morais que incluem PD e princípios racionais de interesse pessoal RSI. Supondo que se todos seguem princípios morais que incluem PD, todos estão bem melhor do que se seguissem princípios de tipo RSI. (Os princípios morais também podem incluir directivas no sentido de se seguirem interesses pessoais excepto se estes entrarem em conflito com PD ou com outro princípio moral qualquer.) Todavia cada pessoa está bem melhor seguindo RSI, seja qual for a opção dos outros. Se os outros procurarem o mesmo, ela terá tendência a promover muito mais os seus próprios interesses seguindo o princípio RSI do que a moralidade com PD; por outro lado se os outros adoptam PD, este indivíduo satisfará melhor os seus interesses seguindo RSI mais do que moralidade com PD. Desta forma, RSI tem um papel dominante nos princípios da moralidade, M. Perante esta conjuntura, a escolha que todos enfrentam entre moralidade com PD e RSI está ela própria estruturada como uma situação generalizada de dilema de prisioneiros (o que considero ser um requisito de tipo S).
O princípio da moralidade PD refere que nesta situação de escolha, tal como noutras estruturadas de forma semelhante, devemos decidirmo-nos por uma opção de cooperação dominada, nomeadamente, quando seguimos uma moralidade que inclui PD. Não fizemos derivar PD de PD de forma trivial pela via de cálculo de proposição, antes derivamo-lo de ele próprio como um exemplo através da teoria da quantificação (e considerações adicionais). PD pressupõe ele próprio. Supondo que PD é um princípio de moralidade profundo, a razão por que devemos segui-lo é a de que seguindo-o estamos envolvidos numa acção dominada em situação generalizada de dilema de prisioneiro (de tipo S). É correcto seguir PD não só porque fazendo-o estamos a seguir um princípio moral correcto, mas também porque PD se enquadra dentro de um princípio moral correcto. A profunda análise da razão por que devemos seguir PD, envolve o próprio PD.
Obviamente, isto não quer dizer que esta teoria prove que PD é correcto ou o justifique. Princípios morais incorrectos também têm a capacidade de formarem pressuposições, e podemos considerar que em situação de escolha prévia, a aplicação de RSI implica a escolha do próprio RSI. O qual também se pressupõe. Sempre que RSI e PD entrem em conflito, não podem ambos estar correctos; naturalmente, a pressuposição não é suficiente para determinar a sua correcção. Pelo contrário, a ideia é a de que atendendo ao facto de que um princípio moral é correcto e suficientemente profundo, ao pressupor-se tem capacidade explicativa. Se o universo da moralidade é, até um certo ponto, autónomo, e não assenta num facto moral bruto, podíamos esperar que existisse algum princípio moral fundamental que explicasse muitos outros princípios específicos ao mesmo tempo que era pressuposto.
Desde os tempos em que Glaucon desafiou Sócrates, os filósofos morais tentaram provar que é do nosso inteiro interesse pessoal agir moralmente. Para que esta tentativa fosse bem sucedida deveria mostrar, dentro da matriz de escolha, quais as opções que seguem a moralidade PD, quais as que seguem RSI, as que estão relacionadas com os caprichos de momento, e outras tais, sendo que se alguém fizesse uma escolha aplicando RSI, seria levado a seguir o princípio da moralidade. Mais do que (além de) ser capaz de derivar de outros conceitos, o RSI serve para pressupor a moralidade. (Ao contrário, Mandeville defende que a moralidade pressupõe o RSI.) Se ao seguir a moralidade entrássemos em conflito com os nossos interesses pessoais, haveria uma certa incoerência e instabilidade ao nível do RSI – começando com RSI, seríamos levados a rejeitá-lo. RSI desvalorizar-se-ia. Não está claro até que ponto a moralidade poderia ser apoiada no caso da linha de pensamento que lhe conferiu esse estatuto ser depois rejeitada como sendo inadequada. Embora RSI, enquanto opositor da moralidade, pudesse ser rejeitado uma vez que se desvaloriza, poderia ocorrer a possibilidade (trazida à discussão por Mandeville) de que essa mesma desvalorização também acontecer com a moralidade. No entanto, as tentativas da filosofia tradicional em fazer derivar moralidade de RSI não colocavam a hipótese de substituir RSI por moralidade. Pelo contrário, a sua tarefa seguia a linha de Platão: demonstrar a harmonia entre a moralidade e RSI, demonstrar que seguindo (qualquer) uma delas, bem entendido, melhor servimos os propósitos da outra.»

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