sexta-feira, 7 de março de 2008

Jürgen Habermas, «“Estado” e “Nação”»

«Segundo a compreensão moderna, “Estado” é um conceito definido juridicamente: do ponto de vista objectivo, refere-se a um poder estatal soberano, tanto interna quanto externamente; quanto ao espaço, refere-se a uma área claramente delimitada, o território do Estado; e socialmente refere-se ao conjunto dos que o integram, o povo do Estado. O domínio estatal constitui-se nas formas do direito positivo, e o povo de um Estado é portador da ordem jurídica limitada à região de validade do terrirório desse mesmo Estado. No uso político da linguagem, os conceitos "nação" e "povo" têm a mesma extensão. Para além da fixação jurídica, no entanto, "nação" também tem o significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por uma língua, cultura e história em comum. Um povo transforma-se em "nação" nesse sentido histórico apenas sob a forma concreta de uma forma de vida em especial. Os dois componentes, que estão incluídos em conceitos como "Estado nacional" ou "nação de cidadãos de um mesmo Estado", remetem para dois processos que de modo algum decorreram paralelamente na história - da formação de Estados (1), por um lado, e de nações (2), por outro.
(1) Em grande parte, o êxito histórico do Estado nacional pode ser esclarecido em decorrência dos méritos do aparato estatal moderno como tal. É evidente que o Estado territorial com monopólio de poder e administração diferenciada, autónoma e financiada por impostos pode cumprir melhor os imperativos funcionais da modernização social, cultural e sobretudo económica do que as formações políticas de origem mais remota. Neste contexto, basta lembrar as caracterizações de tipos ideais elaboradas por Marx e Max Weber.
(a) O poder executivo do Estado apartado do rei e burocraticamente configurado constituía-se de uma organização de postos especializados segundo áreas do conhecimento, ocupados por funcionários públicos juridicamente treinados e pode apoiar-se sobre o poder enquartelado do exército, polícia e poder carcerário existentes. Para monopolizar esses recursos do uso legítimo do poder, foi preciso impor a "paz nacional". Só é soberano o Estado que pode manter a calma e a ordem no interior e defender efectivamente as suas fronteiras externas. Internamente, tem de se poder impor a outros poderes concorrentes e firmar-se internacionalmente como concorrente em igualdade de direitos. O status de um sujeito no direito internacional baseia-se no reconhecimento internacional como membro "igual" e "independente" no sistema de Estados; e para isso ele precisa de uma posição de poder suficientemente forte. A soberania interna pressupõe a capacidade de imposição da ordem jurídica estatal; a soberania externa, a capacidade de auto-afirmação com vista à concorrência "anárquica" pelo poder entre os Estados.
(b) Ainda mais importante para o processo de modernização é a separação do Estado da "sociedade civil", ou seja, a especificação funcional do aparato estatal. O Estado moderno é a um só tempo Estado directivo e fiscal, o que significa que se restringe essencialmente a tarefas administrativas. Abandona as tarefas produtivas que até então vinham a ser cumpridas no âmbito do domínio político para uma economia de mercado distinta do Estado. Nesse sentido ocupa-se das "condições gerais de produção", ou seja, do arcabouço jurídico e da infra-estrutura necessários ao trânsito capitalista de mercadorias e à organização do trabalho social correspondente. As exigências financeiras do Estado são supridas por uma captação de impostos gerida de forma privada. As vantagens dessa especialização funcional é paga pelo sistema administrativo com a sua dependência da capacidade produtiva de uma economia orientada pelos mercados. Pois embora os mercados possam ser instituídos e supervisionados politicamente, eles seguem uma lógica própria que escapa ao controlo estatal.
A diferenciação entre o Estado e a economia reflecte-se na diferenciação entre o direito público e privado. À medida que o Estado moderno se serve do direito positivo como de um meio de organização da sua dominação, vincula-se a um instrumento que - com os conceitos da lei, do direito subjectivo (que se deduz a partir daí) e da pessoa jurídica (como detentora de direitos) - confere validade a um princípio novo, explicitado por Hobbes: numa ordem do direito positivo eximida da moral (apenas sob um certo sentido, é claro) permite-se aos cidadãos tudo aquilo que não é proibido. Embora o próprio poder estatal já esteja domesticado na sua condição de Estado de direito, e a coroa já esteja "sob a lei", o Estado não pode servir-se do instrumento do direito sem organizar os trâmites na esfera da sociedade civil (distinta dele mesmo), e isso de tal forma que as pessoas em particular possam chegar ao gozo de liberdades subjetivas - distribuídas de forma desigual, num primeiro momento. Com a separação entre os direitos privado e público, o cidadão individual no papel do "súbdito" - tal como ainda se expressou Kant - é quem ganha uma área crucial de autonomia privada
[1].
(2) Hoje vivemos todos em sociedades nacionais que devem a sua unidade a uma organização desse tipo. Tais Estados já existiam muito antes de haver "nações" em sentido moderno. Somente a partir das revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar Estado nacional. Antes de me dedicar ao que há de específico nessa vinculação, gostaria de lembrar, sob a forma de uma pequena incursão na história dos conceitos, o aparecimento da formação da consciência moderna que permite interpretar povo como "nação", num sentido diverso do exclusivamente jurídico.
Segundo o uso linguístico clássico dos romanos, "natio", assim como "gens", é um conceito que surge por oposição a "civitas”. As nações são, em primeiro lugar, comunidades de ascendência comum, que se integram geograficamente por vizinhança e assentamento, culturalmente por uma língua, hábitos e tradição em comum, mas que ainda não se encontram reunidas no âmbito de uma forma de organização estatal ou política. Essa raiz mantém-se vigente por toda a parte, durante a Idade Média e o início da Era Moderna, quando "natio" e "língua" se equivalem. Assim, por exemplo, os estudantes das universidades medievais eram subdivididos em "nationes", de acordo com sua origem enquanto conterrâneos. Com o crescimento da mobilidade geográfica, o conceito serviu em geral para as diferenciações internas das ordens de cavalaria, universidades, mosteiros, concílios, ligas comerciais etc. Portanto, a origem nacional, que era atribuída por outros, esteve associada desde o início com a delimitação negativa entre o própno e o estrangeiro
[2].
É num outro contexto que a expressão "nação" vem a assumir um significado contrário e de carácter apolítico. Da associação de feudatários do Império Alemão haviam-se desenvolvido estados de classe; eles baseavam-se em contratos em que o rei ou imperador, que dependia de impostos e protecção militar, concedia privilégios à nobreza, à Igreja e às cidades, ou seja, concedia-lhes uma participação limitada no exercício do domínio político. E essas classes dominantes, reunidas em "parlamentos" ou "câmaras", representavam o "país" ou mesmo a "nação" diante da corte. Como "nação", a aristocracia assumia uma existência política que ainda era negada ao povo enquanto conjunto de súbditos. Isso explica o sentido revolucionário de formulações como "King in Parliament” e tanto mais a identificação do "terceiro estado" com a "nação".
A transformação da "nação aristocrática" em "nação popular", que avança a partir de fins do século XVIII, pressupõe uma mudança de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicialmente na burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e ocasionar progressivamente uma mobilização das massas. A consciência nacional popular cristaliza-se em "comunidades imaginárias" (Anderson) engendradas nas diferentes histórias nacionais, as quais se tornaram o cerne da consolidação de uma nova auto-identificação colectiva: "Assim surgiram as nações nas últimas décadas do século XVIII e ao longo do século XIX (...): construídas por um grupo bem delimitado de eruditos, jornalistas e poetas - nações populares na ideia, mas ainda longe de sê-lo na realidade"
[3]. Na mesma medida em que essa ideia se difundiu, também ficou claro, no entanto, que o conceito político de nação popular, modificado a partir do conceito de nação aristocrática, havia emprestado do conceito de "nação" como designação de ascendência e procedência (mais antigo e anterior à política) também a força que o movia à formação de estereótipos. A auto-estilização positiva da própria nação transformava-se agora num eficiente mecanismo de defesa contra tudo o que fosse estrangeiro, mecanismo de desvalorização de outras nações e de exclusão de minorias nacionais, étnicas e religiosas - em especial dos judeus. Na Europa, o nacionalismo vinculou-se de forma muito consequente ao anti-semitismo.»

[1] No seu artigo “Über den Gemeinspruch”, Kant distingue claramente “a igualdade (do indivíduo) com cada outro enquanto súbdito” da “liberdade do ser humano” e da “autonomia do cidadão”, Werke (Weischedel), vol., VI, p. 145.
[2] “O modelo de nações entrou na história europeia sob a natureza de conceitos opostos assimétricos”. H. Münkler, “Die Nation als Modell politischer Ordnung”, Staatswissenschaft und Staatspraxis, ano 5, cad. 3 (1994): p. 381.
[3] H. Schulze, Staat und Nation in der Europäischen Geschite, München, 1994, p. 189.


Habermas, J. (2002). Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Oxford: Polity Press, pp. 123-7 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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