O Departamento de Ciências Humanas da ESOB vai promover, no dia 29 de Maio, o debate "Será a eutanásia moral?". Para defender o SIM, estará presente o Prof. Dr Pedro Galvão e, para defender o NÃO, estará presente o Prof. Dr Daniel Serrão(1), que faz hoje 80 anos. A ESOB não ficou indiferente a este facto e já lhe enviou os votos de feliz aniversário, até porque, como diz um artigo do Público de ontem, "celebrar oitenta anos é sempre uma festa, e quando essa vida é extraordinária a festa parece ainda maior. Daniel Serrão pertence àquela casta lúcida e privilegiada de homens que mantêm uma actividade intelectual fecunda, uma condição física invejável e um espírito aberto raro, raríssimo. Homens como ele, há poucos".
O Qualia junta-se à festa e publica a seguir a entrevista que o Prof. Dr Daniel Serrão dá hoje ao Jornal de Notícias.
"Daniel Serrão faz hoje 80 anos. Que juntam numa só muitas vidas diferentes. A do jovem amante de poesia, a do estudante cego, a do professor dedicado, a do especialista em anatomia patológica. E a mais conhecida, na defesa da ética. Membro dos Comités de Bioética do Conselho da Europa e da Unesco, da Academia Pontifícia para a Vida e do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, lutou contra a legalização do aborto. E defende a clara separação entre ética e religião. Ah! E detesta publicidade…
A energia transbordante não o deixa respeitar as regras. É ele quem começa a entrevista. “Sabe que até me dava satisfação as pessoas não saberem as coisas que fiz? Nunca gostei de publicidade. O que é importante amanhã (hoje) é o anúncio da criação do primeiro doutoramento em Bioética em Portugal. Não é eu fazer 80 anos”. Daniel Serrão falou connosco ontem, entre telefonemas a desvalorizar a homenagem que a Universidade Católica lhe preparou. “O doutoramento tem professores de grande categoria, excluindo eu. É um curso de três anos, sério, difícil. Sou um dos professores”. E deixa-nos, finalmente, a hipótese de colocarmos uma pergunta.
A energia transbordante não o deixa respeitar as regras. É ele quem começa a entrevista. “Sabe que até me dava satisfação as pessoas não saberem as coisas que fiz? Nunca gostei de publicidade. O que é importante amanhã (hoje) é o anúncio da criação do primeiro doutoramento em Bioética em Portugal. Não é eu fazer 80 anos”. Daniel Serrão falou connosco ontem, entre telefonemas a desvalorizar a homenagem que a Universidade Católica lhe preparou. “O doutoramento tem professores de grande categoria, excluindo eu. É um curso de três anos, sério, difícil. Sou um dos professores”. E deixa-nos, finalmente, a hipótese de colocarmos uma pergunta.
JN - Há dez anos, disse que os 70 anos eram a idade da morte civil em Portugal. Aos 80 anos, vai dar aulas. Não morreu civilmente…
Daniel Serrão - Não! Não morri! Bem quiseram matar-me, mas não. E, olhe, vou publicar um livro sobre essa tentativa. Chama-se “Um saneamento político exemplar – 33 anos depois”. Espero que saia mesmo no dia 23 de Junho, em que faz 33 anos que fui demitido (por não se submeter, palavras do próprio, a “interesses mesquinhos e conluios meramente políticos). Fui reintegrado ao fim de um ano e pago por aqueles meses em casa. Olhe, alguma publicidade que saiu como meu nome foi precisamente no JN. Escreveram que milhares de alunos me tinham obrigado a demitir. Tiveram que publicar um desmentido. Foram 722 pessoas e eram estudantes, professores e funcionários…
Também escreveu que “cada homem é feito de muitas vidas, umas melhores, outras piores”.
Acho que já tive muitas também. A primeira vai até ao fim da adolescência, 16-17 anos, estava em Aveiro, cidade pequena, a tirar o curso do liceu. Já na altura era conhecido. Tinha o meu nome no quadro de honra – agora, não há, qualquer indivíduo é bom. Foi uma vida simples, numa família modesta. Não tinha dinheiro para livros. Mas em frente ao liceu havia a biblioteca municipal. No Inverno estava aberta à noite, das nove às onze. Eu era o único leitor! O guarda dava-me o livro e adormecia e às onze certas, os morcegos da torre saíam em alarido. O homem acordava e eu tinha que sair. No Verão lia no sossego dos patos, no parque.
Uma vida de livros.
Muitos dos poemas que li nessa altura ainda hoje sei de cor.
Não tem nas estantes do escritório nenhum desses livros…
(Levanta-se e regressa com dois volumes amarelecidos pelos anos. Fernando Pessoa e Álvaro de Campos, edição de 1952, oferta do irmão). Entrei numa livraria – isto passa-se em 1949 –, vi um livro e abri ao acaso. Descobri um poeta que não conhecia e depois engalinhei que o soneto que estava a ler estava errado, os dois tercetos não correspondiam, não fazia sentido. Estavam trocados com o soneto seguinte. Mas o importante foi isto. “Narrei-me à sombra e não me achei sentido/ hoje sei-me o deserto onde Deus teve/ outrora a sua capital de olvido” (Passos da Cruz X). Era a descoberta de que há outra forma de usar as palavras. A capacidade de nos vermos a nós próprios como o outro… (Atende o telefone, brinca com as fotos com o papa João Paulo II que tem no seu site na Internet – “Os dois a envelhecer, só que ele já morreu e eu não. Faço 80 anos amanhã. Ouvi dizer que me iam fazer uma homenagem”)
Aí mudou para outra vida?
Passei para uma vida de bisonho estudante de medicina. Lembro-me que fiquei furioso com um 15 e fui tirar satisfações com o professor. Não fazia mais nada senão estudar, vivia em quartos manhosos. Era uma vida obscena, não namorava raparigas, não ia ao cinema. Formei-me com perto de 19 valores. Acabada esta vida, inicio a de docente. Para me abrir e começar a deitar cá para fora, para os outros, aquilo que aprendi. Até ser professor catedrático, o que acontece em 1970.
E até ser exemplarmente saneado…
Ainda houve um episódio de vida intermédia, entre a vida de professor e o início como director de serviço no hospital. Fui capitão miliciano médico em Angola. Entrei na ‘vida militar’, que é uma forma especial de viver, de relações humanas. Passei a ter de fazer a continência a quanto major passasse, nem que fosse burro como um soco. Depois veio a direcção de serviço, em que a missão era fazer dos outros os melhores. Algum do respeito que as pessoas têm por mim vem daí, mesmo na altura do despedimento. Fiquei humilhado! Eu que dei tudo por esta porcaria desta Nação. Aquele Governo de antes era legitimado. E no fim dão-me um par de coices? Nunca mais! Os governos, todos, hoje, não me interessam. Não valem o dinheiro que nos custam! Comecei a dar à faculdade o tempo que me sobrava da actividade privada.
Outra vida?
Sim. Lia muita ciência. Quando fechei o laboratório (de anatomia patológica), há cinco anos, sobrou-me aparentemente o tempo todo. E passei a ler bioética, antropologia, filosofia. Foi outra vida. Muito activa.
Uma vida ligada a Deus, à Igreja, a Roma, é outra?
Não. Eu tenho fé, que é ela própria um acontecimento da intimidade de cada um e não tem explicação. Depois a Igreja Católica constitui uma formalização burocrático-administrativa dessa fé na qual estou incluído por viver aqui, em Portugal. Hoje tenho fé, amanhã não sei, não depende da nossa vontade.
Teve sempre?
Até agora tem funcionado. Actualmente, a maior parte das formulações burocrático-administrativas da fé servem, o que não quer dizer que não haja posturas da Igreja formal que são desagradáveis.
Por exemplo?
Quando vou à missa e o padre lê textos incompreensíveis para 99% das pessoas. Entendiam no tempo em que foram escritos. Hoje não fazem sentido na cabeça de ninguém. Deveria haver um grande esforço no sentido de actualizar o ritual litúrgico… (atende mais um telefonema. “As homenagens devem ser prestadas às pessoas depois de elas morreram, porque em vida servem para alimentar narcisismos bacocos”)
Ao cabo de tantas vidas, diria que a sociedade hoje está melhor ou pior do que antes? Sempre melhor. Não há sociedade que não tenha simultaneamente capacidades e riscos. A nossa obrigação é minimizar os riscos e potenciar as capacidades.
Ao cabo de tantas vidas, diria que a sociedade hoje está melhor ou pior do que antes? Sempre melhor. Não há sociedade que não tenha simultaneamente capacidades e riscos. A nossa obrigação é minimizar os riscos e potenciar as capacidades.
Mas hoje legalizou o aborto, caminha-se a passos largos para a permissão da eutanásia, pesquisa-se em embriões…
Aborto houve sempre. A única coisa que posso dizer é que hoje temos muitas condições para que o abortamento possa acabar. A contracepção hormonal tornou-o um absurdo.
Essa parte piorou, portanto…
Nesse aspecto, a sociedade piorou. Porque não há situações em que a mulher tenha legitimidade para dizer que não quer, depois de estar grávida. Tem que dizer antes. Se fica é porque quer ou está-se nas tintas. E se se está nas tintas, não merece consideração alguma da sociedade.
E a eutanásia?
Também houve sempre a ideia de que, a dada altura da vida, o melhor a fazer por uma pessoa é matá-la. Há aquela história popular do filho que leva o pai para o cimo do monte para morrer de fome. Dava-lhe uma manta para não ter frio. E o pai pediu ao filho para cortar a manta a meio. “Para dares ao teu filho quando ele te vier trazer cá”. Não estamos autorizados a fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam a nós. Não interessa discutir a eutanásia, interessa discutir os cuidados paliativos e perguntar à ministra da Saúde quando é que desenvolve os cuidados paliativos domiciliários. Porque as dores são tratáveis, a vida até à morte pode ser digna e feliz.
A evolução da genética não obriga a mudar o conceito de ética?
De um modo geral, a genética é benéfica. Só uma pequena parte do ser humano é condicionada pela informação genética. A diferença é que, quanto mais sabemos sobre o homem, mais aprofundada é a reflexão ética. Porque é a ética é descritiva, não deliberativa. Propõe soluções. Se fosse deliberativa, transformava-se em poder e ficaria condenada à morte. E hoje está em crise porque quer os políticos, quer as religiões querem apoderar-se dela.
As religiões?
Veja o que se passa com o islamismo. Passou a ser ética aquilo que entende que deve ser feito. Mas a nossa obrigação é ver qual a melhor solução ética para uma dada questão. Se não estiver de acordo com a religião, aí opta-se. A ética não pode ser confundida com religião.
O que nos leva a perguntar-lhe o que defende na Academia Pontifícia quando se aborda o preservativo…
É um absoluto falso problema. Aquilo que a Igreja tem dito é que o uso do preservativo para tornar uma relação sexual numa relação infértil é moralmente inaceitável. O que não tem nada a ver com a utilização numa relação sexual para obtenção de prazer sexual. A Igreja não se mete nas relações sexuais promíscuas que acontecem nas casas de prostituição. Primeiro nem são católicos. As normas morais da Igreja só se aplicam às pessoas que aceitam a fé católica.
Mas e se um dos cônjuges…
for seropositivo, é obrigado a usar o preservativo. Porque é para evitar a infecção do outro.
Não é essa a posição que transpira cá para fora.
Não é o que dizem os jornalistas, não. Nem o que diz o Expresso, que pôs um cartoon do papa com um preservativo no nariz. Se fosse muçulmano, já não havia Expresso.
Por falar em papas, já cotejou dois.
São diferentes. João Paulo II privilegiou a relação humana, o amor entre os seres humanos em geral como regra de convivência pacífica. Bento XVI tem uma concepção mais filosófica do que afectiva. É a pastoral da inteligência, depois da pastoral da emoção.
Melhor ou pior?
Utilíssimo para a Igreja nesta fase. Os que se deixam movimentar pela e emoção já foram movimentados. Agora vamos movimentar os intelectuais."
(1) Daniel Serrão, Professor Catedrático de Anatomia Patológica, espcialista em Ética da Vida e um dos "pais" da Bioética em Portugal.
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