segunda-feira, 31 de março de 2008

Philippa Foot, "Eutanásia" (Parte X)

«Nada mais nos resta acrescentar sobre a relação da caridade com a eutanásia involuntária passiva, que não é regulada pelo direito à vida, tal como o é a eutanásia involuntária activa. O que pode, no entanto, esclarecer a caridade sobre a eutanásia voluntária passiva e activa? Quando analisámos a questão da justiça, sugerimos que alguém, se na posse plena das suas faculdades mentais, poderia exprimir de forma serena o seu desejo no sentido de outras pessoas lhe permitirem tirar a própria vida ou o ajudassem morrer, sendo que caso contrário essa ideia estaria fora de questão. Foi, no entanto, referido que este facto não determinaria a questão da aceitabilidade moral, o que devemos agora analisar. Será que a caridade não pode defender princípios divergentes da justiça? De facto, pode. O facto de alguém desejar morrer parece sugerir que a sua vida é miserável, e apesar da sua recusa em viver o poder privar das coisas que poderia ter usufruído, o seu desejo de morrer pode, nestas circunstâncias, ser oposto ao seu próprio bem, tal como o seria se se tratasse de suicídio. Talvez possamos ter esperança que o seu estado de espírito melhore. Talvez esteja errado ao pensar que a sua doença é incurável. Talvez queira morrer pelo bem de alguém para quem julga ser um fardo, e nós não estamos preparados para aceitar o seu sacrifício, seja por nós próprios ou por outros. Em casos como este, e provavelmente há muitos, não seria em prol do seu próprio bem que desejamos ou permitimos que morra, e, consequentemente, a eutanásia, tal como aqui é definida, não seria uma opção. Com isto não pretendemos negar que existam casos de eutanásia voluntária activa e passiva, contra as quais nem a caridade ou a justiça poderiam opor-se.
Acabamos de considerar a legitimidade moral da eutanásia voluntária, involuntária, activa e passiva. E chegámos à conclusão que a eutanásia involuntária activa (em termos gerais, matar alguém contra o seu desejo ou sem o seu consentimento) nunca é justificada; isto é, a morte de uma pessoa para o seu próprio bem nunca justifica o acto a não ser que o seu consentimento tenha sido expresso. Os direitos de uma pessoa serão violados com tal acto, e, por isso, é contrário à ideia de justiça. Todavia, todas as outras possibilidades, eutanásia involuntária passiva, eutanásia voluntária activa e eutanásia voluntária activa, são por vezes compatíveis com a ideia de justiça e caridade. Porém, não nos podemos esquecer das condições de peso que acompanharam a definição de eutanásia proposta neste ensaio; entendemos um acto de eutanásia como aquele que é empreendido para o bem daquele que vai morrer.
Vejamos como a nossa tese se aplica às práticas correntes. São estas boas ou más? E que mudanças devem ser operadas, pensando agora não só na questão da moralidade de determinados actos de eutanásia, mas também nas consequências indirectas em se adoptarem práticas diversas, nos abusos que daí podem decorrer e nas mudanças que podem resultar caso a eutanásia seja reconhecida como parte das práticas sociais.
A primeira ideia que nos surge é que é errado interrogarmo-nos se deveríamos introduzir a prática da eutanásia, como se fosse algo que não existe de facto. Por exemplo, sempre que o diagnóstico médico é mau, especialmente em casos onde o processo de degeneração desenrola uma série de emergências médicas, é comum que os médicos recomendem o não prolongamento da vida. Se estes médicos não estão seguramente a agir dentro dos seus direitos legais, isto é algo que pode surgir como uma surpresa não só para eles como para o público em geral. Também é óbvio que a eutanásia é sobretudo aplicada quando se trata de pessoas de idade. Se alguém atingiu uma idade avançada e tem pouco tempo de vida ao mesmo tempo que é atacado por uma doença que torna a sua vida miserável, os médicos nem sempre avançam com a profilaxia de prolongamento da vida. Talvez os pacientes com poucas posses ainda sejam alvo de menor consideração do que os mais abastados, sendo, frequentemente, deixados a morrer em paz; mas este não é, em todo o caso, uma prática médica bem conhecida, que se traduz numa forma de eutanásia.
Sem dúvida que o caso de crianças com problemas mentais ou físicos será apresentado como outro exemplo de prática de eutanásia tal como já acontece, uma vez que permitimos que tais crianças morram. É certo que permitimos de forma deliberada que morram; crianças com malformações graves ao nível da espinha bífida, nem sempre são operadas, mesmo sabendo que sem essa operação morrerão; e mesmo no caso de crianças afectadas pelo Síndrome de Down que sofrem de obstrução intestinal, a simples operação que tornaria possível alimentá-las não é feita
[1]. Quer isto se trate de eutanásia tal como a entendemos ou apenas como os Nazis a entendiam é outra questão. Devemos colocar a questão essencial, “É para o bem da própria criança que os médicos e os pais optam pela sua morte?” Em alguns casos, a resposta pode muito bem ser que sim, e, o que é mais importante, pode ser também verdade que o tipo de vida que constitui um bem, não seja possível ou provável para aquela criança, e que para ela não esteja reservado pouco mais além de sofrimento e frustração[2]. Porém, tem que haver o pressuposto de que o diagnóstico médico é terrível, como deve ser para algumas crianças que sofrem de espinha bífida. No que respeita a crianças com o Síndrome de Down, as coisas são bem diferentes. A maioria destas consegue ter uma vida razoavelmente agradável durante bastante tempo, permanecendo crianças toda a sua vida, mas capazes de estabelecer relações afectivas, envolverem-se em actividades lúdicas e levar a cabo tarefas simples. O que acontece, de facto, é que os médicos que fazem recomendações contrárias à preservação da vida no caso de crianças deficientes, não estão a pensar nelas, mas nos pais e na família ou no “fardo social” que elas constituem caso sobrevivam. Então não é para o seu próprio bem, mas para evitar o incómodo de terceiros que é permitido que morram. Quando exposto desta maneira, parece inaceitável: pelo menos não aceitamos facilmente o princípio que os adultos que precisam de cuidados especiais sejam considerados um fardo quando decidimos mantê-los vivos. Devemos insistir, porém, no facto de que se é permitido que as crianças que sofrem do Síndrome de Down morram, isto não constitui um caso de eutanásia a não ser à luz do que era entendido por Hitler. E para as nossas crianças, uma vez que temos escrúpulos em as gasear, nem mesmo o modo como as deixamos morrer é “doce e fácil”; quando a obstipação intestinal de uma destas crianças não é tratada, ela simplesmente morre à fome. Talvez alguns tomem estes casos como argumento para tornarem a eutanásia activa, estando neste caso na companhia de um oficial das S.S. estacionado em Warhgenau, que enviou um memorando a Eichmann dizendo que “no Inverno seguinte não havia hipótese de alimentar os Judeus” e deixando ao seu critério a proposta de se “não seria uma solução mais humana matar os Judeus incapazes de trabalhar através de um método rápido.”[3] Se dizemos ser incapazes de cuidar das nossas crianças com deficiência, não estamos muito longe da verdade do oficial das S.S. que dizia que os Judeus não podiam ser alimentados.
Apesar de tudo, se é legítimo permitir que crianças deformadas morram, uma vez que terão uma vida miserável, e não tomarmos medidas para prolongarmos um pouco a vida de um recém-nascido, a qual não pode ir além de alguns meses de cuidados intensivos, há um problema sério no que respeita à eutanásia activa por oposição à passiva. Existem casos bem conhecidos em que uma equipa médica infelizmente viu morrer uma criança à fome e de desidratação por não se sentir capaz de lhe aplicar uma injecção letal. De acordo com os princípios analisados anteriormente, não teriam o direito de o fazer, uma vez que a criança não pode exprimir o pedido nesse sentido. A única solução possível – assumindo que a eutanásia voluntária activa fosse legalizada – seria a de nomear tutores que actuariam nos interesses da criança. Sob outro ponto de vista, esta situação não seria tão perigosa, mas actualmente, quando as pessoas assumem tão facilmente que a vida de uma criança deficiente não tem valor, repugnar-nos-ia aceitá-lo.
Finalmente, ainda nos cabe uma palavra sobre as crianças com deficiência mental profunda. Para estas também seria melhor dizermos que a morte seria melhor. Mas nem mesmo a deficiência mental coloca automaticamente uma criança no caminho de um possível acto de eutanásia. Se o nível de consciência for baixo, não podemos dizer que têm uma boa vida, o mesmo se aplica nos casos daqueles que sofrem de senilidade extrema. Ainda assim, se não estão em processo de sofrimento, o facto de alguém desejar a sua morte não constitui um acto de eutanásia. Talvez a caridade não exija que medidas efectivas sejam tomadas para manter estas pessoas vivas, mas a questão da eutanásia não entra aqui, nem em casos em que alguém como Karen Ann Quinlan esteja num estado de coma permanente. Muito poderia ser dito sobre este último caso. Poderíamos mesmo sugerir que no caso de não-consciência esta “vida” não é aquela a que se refere o “direito à vida”. Mas não é nossa função analisá-lo aqui.
O que devemos considerar, ainda que de forma breve, é a possibilidade da eutanásia genuína, e não aquela contrária aos princípios da justiça e caridade, dever ser legalizada sobre uma vasta área de casos. Pois sujeitamo-nos ao problema sério dos abusos. Muitas pessoas desejam ardentemente ver-se livres dos seus familiares idosos e mesmo dos seus companheiros enfermos. Haverá alguma maneira de garantir que não assumam como eutanásia aquilo que é de facto para o seu próprio benefício? E seria possível prevenir a ocorrência de actos, que seriam genuinamente actos de eutanásia, mas considerados moralmente inaceitáveis porque violam os direitos do paciente que desejava viver?
Talvez o mais longe que nos fosse permitido ir seria o de encorajar os pacientes a fazer acordos com os seus médicos, fazendo-lhe saber se desejam prolongar a própria vida no caso de doenças terminais dolorosas ou de incapacidade. Um documento como o “Living Will” (Testamento da Vida) parece ser bastante razoável, e, ao dar a conhecer o desejo expresso do paciente, deveria dar também garantia de imunidade legal ao médico, atendendo às possíveis acções judiciais dos familiares
[4]. A legalização da eutanásia é de todo um assunto completamente diferente deste. Além da particular repugnância que os médicos sentem em aplicar a injecção letal, é de importância primordial manter uma barreira psicológica contra a ideia de matar um outro ser humano. Por outro lado são os casos de eutanásia activa que são mais propensos ao abuso. Hitler não teria morto 255.000 pessoas no seu programa de “eutanásia”, se tivesse que ter esperado que necessitassem de um tratamento que lhes salvasse a vida. Existem, no entanto, outras objecções à eutanásia activa, mesmo à eutanásia activa voluntária. Em primeiro lugar, seria difícil definir procedimentos que protegessem as pessoas contra os abusos de persuasão em relação a darem o seu consentimento. E em segundo lugar, a possibilidade de eutanásia voluntária activa poderia introduzir alterações terríveis nas relações sociais. Como as coisas estão neste momento, as pessoas, em geral, esperam ser cuidadas quando adoecem ou ficam velhas. Esta é uma das coisas boas que possuímos, mas que podemos perder, sendo que a nossa vida pioraria sem este bem. Podemos esperar que alguém que possa vir a necessitar de muitos cuidados chame um médico e exija a sua própria morte. Algo de semelhante poderia constituir um bem no caso de uma comunidade gravemente afectada pela pobreza, onde as crianças sofressem bastante com a falta de alimento; mas nas sociedades ricas como a nossa, seria certamente um desastre espiritual. Tais possibilidades deveriam fazer-nos pensar e ser cautelosos quando defendemos a eutanásia, mesmo em circunstâncias em que um princípio moral aplicado a um caso isolado não o torne uma regra.»


Notas
Gostaria de agradecer a Derek Parfit e aos editores de Philosophy & Public Affairs os seus comentários construtivos.

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[1] Sei isto por um Pediatra de um Centro Médico bastante conhecido nos E.U.A.. Foi confirmado por A. Shaw e I. Shaw, “Dilemma of Informed Consent in Children”, The New England Journal of Medicine 289, nº 17 (25 de Outubro, 1975): 885-90. Reimpresso em Gorovitz.
[2] Deve ser relembrado, no entanto, que muita da miséria social de crianças com espinha bífida podia ser evitada. O Professor R. B. Zachary tem razão quanto a este ponto. Ver, por exemplo, “Ethical and Social Aspects of Spina Bifida”, The Lancet, 3 de Agosto, 1968. Reimpresso em Gorovitz.
[3] Citado por H. Arendt, Eichmann in Jerusalém (Londres, 1963), p. 90.
[4] Detalhes deste documento podem ser encontrados in J. A. Behnke and Sissela Bok, eds., The Dilemmas od Euthanasia New York, 1975), in A. B. Downing, ed., Euthanasia and Rights to Life: The caso for Voluntary Euthanasia (Lonres, 1969).


Foot, Philippa, “Euthanasia” in Olen, J.; Barry, V. (eds)(2001). Applying Ethics: a text with readings. U.S.A Wadsworth, pp. 240-55 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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