segunda-feira, 24 de março de 2008

Philippa Foot, "Eutanásia" (Parte VIII)

«Terão as pessoas direito àquilo que necessitam para que a sua sobrevivência seja garantida, além dos direitos que lhes são conferidos através de contratos especiais nos quais se encontra garantida a participação de outras pessoas no sentido de assegurarem essas necessidades? Terão as pessoas dos países subdesenvolvidos, em que a fome é um fenómeno generalizado, direito à alimentação que tão claramente necessitam? Ao discutir esta questão, Joel Feinberg sugere que estas pessoas deveriam poder fazer uma “reivindicação”, distinguindo-a de uma “reivindicação válida”, da qual decorre a reivindicação por direito.

Penso que os escritores de manifesto, que parecem associar necessidades básicas ao que descrevem como “direitos humanos”, deveriam ser descritos como aqueles que exercem pressão moral sobre a comunidade mundial para que todas as necessidades básicas humanas sejam consideradas como reivindicação (no sentido comum de prima facie) hoje em dia assumidos como merecedores de séria consideração, embora, em muitos casos, não possam ser analisadas como reivindicações válidas plausíveis, isto é, como fundamento para qualquer outro dever das pessoas. Esta maneira de ver as coisas evita a anomalia, hoje tal como acontecia nas sociedades pré-industriais, de se atribuírem a todos os seres humanos “direitos sociais e económicos sob forma de férias periódicas remuneradas.
[1]

Esta ideia parece razoável, embora nos apercebamos de que existem determinados direitos que não se encontram enquadrados em contratos, tais como os direitos que as crianças têm a apoio dos pais e estes ao apoio dos filhos quando atingem a velhice. Todavia, ambos os casos dependem de acordos sociais existentes.
Debrucemo-nos agora sobre o modo como o direito à vida afecta a questão da moralidade dos actos de eutanásia. Serão tais actos sempre ou só às vezes determinados pelo direito à vida? É certamente uma possibilidade; pois embora um acto de eutanásia seja, por definição, uma maneira de optar pela morte para o bem daquele que está para morrer, não há, como referimos anteriormente, uma ligação direita entre aquilo a que uma pessoa tem direito e aquilo que é feito para o seu próprio bem. Sem dúvida que as pessoas têm direito apenas àquilo que é, em geral, bom: não pensamos que as pessoas têm direito à poluição ou ao lixo. No entanto, uma pessoa pode ter direito a algo sem o qual ela própria estaria bem melhor; sempre que os direitos existem, o que conta é a vontade de cada um e não a avaliação que ela própria ou outra pessoa faz dos prejuízos ou benefícios. Deste modo os direitos resultantes do direito à vida (o dever comum de não-interferência e o dever imputado a certas pessoas para a prestação de um serviço) não são afectados pelo nível da qualidade ou esperança de vida de alguém. Apesar de ser verdade que determinada pessoa, como habitualmente dizemos, “esteja melhor morta”, desde que essa pessoa deseje viver não existe justificação para a matarmos ou permitirmos deliberadamente que morra. Todos nós temos o dever de não-interferência, e alguns de nós têm o dever de preservar a vida dos outros. Suponhamos, por exemplo, que um exército em retirada é forçado a deixar para trás soldados feridos ou esgotados, num local árido repleto de destroços e isolado pela neve, e onde a única perspectiva é a morte cruel à fome ou às mãos do inimigo. Nesta situação, a prática comum é a da bala piedosa. Pensemos, no entanto, que um destes soldados quer que o deixem vivo. Parece claro que os seus camaradas não têm o direito de o matar, embora fosse um caso completamente diferente analisar a possibilidade de lhe administrarem uma droga que prolongasse a vida. O direito à vida pode, por vezes, implicar o dever de serviço benéfico, mas não é esse aqui o caso. O que nos dá é o direito de sermos deixados em paz.
Curiosamente, chegámos à distinção habitualmente feita entre eutanásia “activa” e “passiva” através da consideração do direito à vida, geralmente tida como irrelevante para a questão moral
[2]. Uma vez que admitimos que o direito à vida constitui um fundamento distinto para objectar a alguns actos de eutanásia, e que este direito cria um dever de não-interferência mais abrangente do que os deveres de prestação de cuidados, não existe qualquer dúvida sobre a importância de distinguirmos entre eutanásia activa e passiva. Nos casos em que qualquer pessoa possa ter o dever de deixar uma outra em paz, podemos dizer que ninguém tem o dever de manter a sua vida, ou que só algumas pessoas o possuem.
Onde se encontram as fronteiras entre o conceito de eutanásia “activa” e “passiva”? De alguma forma as próprias palavras podem induzir-nos em erro, uma vez que sugerem a diferença entre acto e omissão, o que não é correcto. É claro que o acto de atingirmos alguém com uma arma se enquadra no que temos vindo a dizer sobre “interferência”, e o acto de não administrarmos uma droga pode ser incluído nos casos de recusa de tratamento ou auxílio. Todavia, o acto de desligarmos um respirador auxiliar devia ser considerado como semelhante ao de não o ligarmos; se os médicos tivessem decidido que a morte deveria ser permitida a um paciente, qualquer dos dois actos deveria seguir-se, e ambos deveriam ser considerados como eutanásia passiva e não activa, no caso de ela ser posta em questão. A ideia parece ser a de que a interferência durante o processo de tratamento não é a mesma quando se dá a incursão no curso da vida de uma pessoa, especialmente se as pessoas que têm o dever de assegurar a preservação e continuidade da vida são as mesmas que determinam a sua interrupção. Em casos como este, poderíamos falar do desligar da máquina como causa da morte da pessoa ou do hospital como responsável pela autorização dessa morte. Atendendo a todas estas considerações, é o acto de morte que é determinado sob a égide da não-interferência, mas não em todos os casos.
De forma geral, os médicos reconhecem esta distinção, e os fundamentos segundo os quais alguns filósofos a negaram são insustentáveis. Por exemplo, James Rachels acredita que a diferença entre activa e passiva é relevante em qualquer contexto, e deveria sê-lo sempre, e referiu um exemplo no qual não parece haver qualquer diferença entre as duas. Se alguém visse uma criança a afogar-se numa banheira seria igualmente errado deixá-la afogar-se ou empurrar a sua cabeça para debaixo de água
[3]. Se “não há diferença” significa que qualquer dos actos seria injusto, então é verdade. Não significa que matar é pior do que permitir a morte, mas que ambos são contrários a virtudes distintas, o que nos dá a possibilidade de em algumas circunstâncias um acto não ser permitido e o outro sê-lo. No contexto criado por Rachels, ambos são maus: forçar uma criança a afogar-se é contrário à ideia de justiça – algo que não temos o direito de fazer. Deixá-la afogar-se não é contrário à ideia de justiça, mas é um exemplo particularmente claro de falta de caridade. Neste caso não faz diferença alguma, pois as exigências da justiça e da caridade são coincidentes; porém no caso do exército em retirada já não coincidem: a caridade exigia naquele caso que o soldado ferido fosse morto, não fosse a justiça exigir que a sua vida fosse poupada[4]. Em casos como este faz toda a diferença saber se uma pessoa opta pela morte de outra assumindo uma acção positiva ou se permite que a outra morra. Se fizermos uma analogia com a questão da propriedade tornar-se-á mais claro. Se uma pessoa possui algo, ela tem direito a isso mesmo que daí resulte algum prejuízo, e não temos o direito de a privar das suas posses. Todavia, se essa coisa desaparecer ou for destruída, talvez nada nos exija que a recuperemos; não podemos privar uma pessoa do que é seu, mas podemos permitir que essa coisa desapareça ou seja destruída. Não queremos com isto dizer que quando nos recusamos a fazer a vontade de alguém estejamos a incorrer num acto pouco amigável ou baseado num juízo de valor arrogante. Apesar de tudo, estaríamos dentro dos nossos direitos, e poderia acontecer que nenhuma objecção moral fosse levantada à nossa recusa.
Importa realçar que os direitos de uma pessoa podem estar entre nós e a acção que desejamos levar a cabo para o bem dessa mesma pessoa. Podem ainda impedir a acção que gostaríamos de empreender para o bem dos outros, tal como quando estamos tentados a matar uma pessoa para o bem de muitas. É todavia interessante que os limites da interferência permitida, embora incertos, sejam mais rigorosos no primeiro caso do que no segundo. Talvez não existam casos em que seria correcto matar alguém contra a sua vontade, para o seu próprio bem, a não ser que esses casos pudessem também ser considerados como situações em que se permite que a pessoa morra, tal como no exemplo do respirador. Todavia, há circunstâncias, embora raras, em que se justificaria matar um homem para o bem de outros, e o acto de “matar” seria apenas a descrição do que estaria a ser feito. Vejamos: um veículo fora de controlo poderia ser afastado de um caminho onde poderia matar mais do que uma pessoa para um outro onde apenas uma pessoa morreria
[v]. Porém não seria permitido desviar o veículo em direcção a alguém com a intenção de o matar, contra a sua vontade, para o seu próprio bem. A analogia com o direito de propriedade esclarece este ponto. Não podemos destruir a propriedade de alguém contra a sua vontade alegando que essa pessoa estaria melhor sem esse bem; no entanto, há circunstâncias em que essa propriedade poderia ser destruída para o bem dos outros. Se a casa de uma pessoa está a ruir e pode matá-la, é da sua responsabilidade; pode, porém, ser destruída sem cometermos um acto de injustiça no caso de propagação de fogo.»

[1] Feinberg, “Human rights”, Moral Problems in Medicine, p. 465.
[2] Ver, por exemplo, J. Rachels, “Active and passive Euthanasia”, New England Journal of Medicine 292, nº 2 (9 de Janeiro, 1975): 78-80.
[3] Ibid.
[4
] Não se verifica, no entanto, um conflito entre justiça e caridade. Um homem não deixa de ser caridoso só porque pratica um acto de injustiça para o bem de alguém.
[5] Para a discussão destas questões, veja-se o meu artigo “O problema do aborto e a doutrina do duplo efeito, Oxford Review, nº 5 81967); reimpresso in Rachels, Moral Problems, e Gorowitz, Moral problems in Medicine.

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