quarta-feira, 26 de março de 2008

Harry Frankfurt, "A Igualdade como Ideal Moral" (Parte II)

«II
Existem várias maneiras de tentar estabelecer a tese de que a igualdade económica é importante. Às vezes diz-se com insistência que a preponderância das relações fraternais entre os membros de uma sociedade é uma meta desejável e que a igualdade é indispensável para a alcançar
[1]. Ou talvez se possa defender que as desigualdades na distribuição dos benefícios económicos devem evitar-se porque conduzem invariavelmente a discrepâncias não desejadas de outros tipos; por exemplo, na condição social, na influência política ou na capacidade das pessoas fazerem uso efectivo das suas diferentes oportunidades e direitos. Em ambos os argumentos, defende-se a igualdade económica por causa da sua suposta relevância para criar ou preservar certas condições não económicas. Estas considerações podem proporcionar razões convincentes para recomendar a igualdade como um bem social desejável, ou até para preferir o igualitarismo como política em vez das alternativas àquela. Todavia, ambos os argumentos interpretam a igualdade como valiosa, de forma derivada, em virtude das suas relações contingentes com outras coisas. Em nenhum dos dois argumentos se atribui à igualdade um valor moral inequivocamente intrínseco.
Um argumento de um tipo bastante diferente para a igualdade económica, que se aproxima mais da interpretação que o valor da igualdade é independente das contingências, baseia-se no princípio da utilidade marginal decrescente. Segundo este argumento, a igualdade é desejável porque uma distribuição igualitária dos bens económicos maximiza a sua utilidade agregada
[2]. O argumento pressupõe o seguinte: (a) para cada indivíduo, a utilidade do dinheiro decresce invariavelmente de forma marginal, e (b) relativamente ao dinheiro, ou a outras coisas que o dinheiro pode comprar, as funções de utilidade de todos os indivíduos são as mesmas[3]. Por outras palavras, a utilidade proporcionada por uma enésima unidade de dinheiro – ou derivada dela – é a mesma para todos, e é menor que a utilidade que (n-1) unidades de dinheiro têm para qualquer um. A menos que (b) fosse verdade, um homem rico poderia obter uma maior utilidade que um homem pobre de uma unidade de dinheiro adicional. Neste caso, uma distribuição igualitária dos bens económicos não maximizaria a utilidade agregada embora (a) fosse verdade. Contudo, dado (a) e (b), segue-se que um dólar marginal sempre traz menos utilidade a uma pessoa rica do que a outra que é menos rica. E isto implica que a utilidade total deve aumentar quando a desigualdade se reduz a entregar uma unidade de dinheiro a alguém mais pobre que a pessoa que lho entrega.
Todavia, tanto (a) como (b) são de facto falsos. Suponhamos que se reconhece, para bem do argumento, que a maximização da utilidade agregada é, por direito próprio, uma meta social moralmente relevante. Ainda assim, não pode inferir-se de forma legítima que uma distribuição igualitária do dinheiro deva, portanto, ter uma relevância moral similar. Isso deve-se a que, em virtude da falsidade de (a) e de (b), o argumento que vincula a igualdade económica à maximização da utilidade agregada é pouco sólido.
No que diz respeito a (b), é evidente que as funções de utilidade para o dinheiro de diferentes indivíduos não se parecem em absoluto. Algumas pessoas sofrem de debilidades ou deficiências físicas, mentais ou emocionais, que limitam a satisfação que podem obter. Mais ainda, até deixando de lado os efeitos das deficiências específicas, algumas pessoas simplesmente usufruem mais de umas coisas do que de outras. Todos sabemos que existem, em qualquer nível de um dado gasto, grandes diferenças nas quantidades de utilidade que obtêm as pessoas que gastam dinheiro.
No que diz respeito a (a), existem boas razões para não esperar uma diminuição coerente da utilidade marginal do dinheiro. Com efeito, o facto de que as utilidades marginais de certos bens tendem a diminuir não é um princípio racional. É uma generalização psicológica, que se explica mediante considerações como, por exemplo, que as pessoas tendem bastantes vezes, depois de um certo tempo, a sentir-se satisfeitas com o que têm estado a consumir e que os sentidos perdem a sua frescura depois de estimulação repetida
[4]. Todos sabemos que as experiências de diversos tipos se tornam cada vez mais rotineiras e ingratas à medida que se repetem.
Contudo, é questionável se isto proporciona algum motivo para esperar uma diminuição da utilidade marginal do dinheiro, quer dizer, de qualquer coisa que funcione como instrumento genérico de troca. Embora a utilidade de tudo o que de possa comprar com dinheiro sofra inevitavelmente uma diminuição marginal, a utilidade do próprio dinheiro exibiria, de qualquer forma, um padrão diferente. É bem possível que o dinheiro estivesse isento do fenómeno da implacável diminuição marginal devido à sua ilimitada versatilidade. Como o explicam Blum e Kalven:

Quando se […] analisa a questão de saber se o dinheiro possui uma utilidade decrescente é […] importante deixar de lado todas as analogias relativamente à observação de que os bens particulares têm uma utilidade decrescente para os seus utilizadores. Não há necessidade de entrar aqui no debate sobre o facto de saber se é útil ou necessário em teoria económica supor que os bens possuem uma utilidade decrescente. O dinheiro é infinitamente versátil. E ainda que todas as coisas que se compram com dinheiro estejam sujeitas a uma lei de utilidades decrescentes, daí não se segue que o próprio dinheiro esteja.

A partir da suposição que uma pessoa tende a perder cada vez mais o interesse pelo que consome à medida que aumenta o seu consumo, não pode inferir-se simplesmente que também deve perder o interesse pelo próprio consumo ou pelo dinheiro que o torna possível. Isso deve-se talvez ao facto de estarem sempre ao seu alcance, por mais cansativo que possa ser o que se está a fazer, bens ainda não experimentados para comprar e novos prazeres para serem vividos.
De qualquer forma, há muitas coisas de que as pessoas não se cansam logo no início. Há certos bens que na realidade se tornam mais úteis depois de um consumo continuado. Esta é a situação que ocorre cada vez mais com o facto de que apreciar, usufruir ou beneficiar de outra maneira de algo depende de levar a cabo repetidas provas, por exemplo, quando um indivíduo obtém relativamente pouco prazer do produto ou da experiência em questão até que acaba por adquirir um gosto especial por eles, ou se tornou dependente deles, ou começou de alguma outra forma a relacionar-se com eles ou a responder-lhes de maneira mais proveitosa. Então a capacidade de obter prazer é menor nos primeiros tempos de consumo do que nos últimos. Nestes casos, a utilidade marginal não diminui, mas aumenta. Talvez seja verdade que uma pessoa acaba por perder completamente o interesse, sem excepção. Todavia, ainda que em cada curva de utilidade haja um ponto em que a curva inicia uma quebra firme e irreversível, daí não se pode inferir que a curva esteja em declive
[5]

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[1] Na Biblioteca Sterling Memorial da Universidade de Yale (8,5 milhões de volumes), há 1,159 entradas no catálogo sob o título liberdade e 326 sob o título igualdade. Não há qualquer entrada para fraternidade. Isto deve-se ao facto do catálogo se referir ao ideal social em questão como irmandade. Para este há quatro entradas! Por que será que a fraternidade (ou a irmandade) tem muito menos importância que a liberdade e a igualdade? Talvez a explicação seja que, em virtude do nosso compromisso fundamental com o individualismo, os ideais políticos relativamente àqueles de que nos sentimos mais profunda e activamente atraídos têm que ver com o que supomos que são os direitos dos indivíduos; e ninguém exige um direito à fraternidade. Também é possível que a liberdade e a igualdade recebam mais atenção em certos âmbitos porque, diferentemente da fraternidade, se considera que são susceptíveis de um tratamento mais ou menos formal. Em qualquer caso, é um facto que tem havido muito pouca investigação séria sobre o que é a fraternidade, o que ela implica, ou porque deveria ser considerada algo especialmente desejável.
[2] Th. Nagel, em Mortal Questions, aceita este argumento afirmando que estabelece a importância moral da igualdade económica. Pode encontrar-se outras formulações e análises do argumento em Kenneth Arrow, “A utilitarian approach to the concept of equality in public expenditures”, in Quarterly Journal of Economics, Nº 85, 1971; Walter Blum & Harry Kalven, The uneasy case for progressive taxation, Chicago, University of Chicago Press, 1966; Abba Lerner, The economics of control, New York, Macmillan, 1944; Paul Samuelson, Economics, New York, McGraw-Hill, 1973 e “A. P. Lerner at Sixty” in Robert C. Merton (ed.), Collected scientific papers of Paul A. Samuelson, Cambridge, Mass., MIT Press, 1972, Vol. III.
[3] Assim, diz Arrow (in “Utilitarian approach”, p. 409): “Na análise utilitarista da distribuição de rendimentos, a igualdade de rendimentos deriva de condições de maximização se se supõe, para além disso, que os indivíduos têm as mesmas funções de utilidade, cada qual com uma utilidade marginal decrescente”. E Samuelson (Economics, p. 164 in fine) oferece a seguinte formulação: “se cada dólar adicional traz cada vez menos satisfação a um homem, e se os ricos e os pobres são iguais na sua capacidade de sentir satisfação, supõe-se que um dólar cobrado a um milionário e entregue a uma pessoa com rendimento médio agrega à utilidade total mais do que o que lhe resta”.
[4] “Logo, segundo se vão acrescentando mais unidades ao consumo, a utilidade total vai aumentando mais rapidamente, pois a capacidade psicológica do sujeito para apreciar o aumento da quantidade de um bem torna-se cada vez mais aguda. O facto de os aumentos da utilidade total serem sucessivamente menores, é descrito pelos economistas da seguinte forma: ao aumentar a quantidade sucessiva de um bem, diminui a utilidade marginal do bem (o aumento da utilidade total acrescentado pela última unidade consumida)” (Samuelson, Economics, p. 431).
[5] W. Blum & H. Kalven, op. cit., pp. 57-8.

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