«A moralidade que habitualmente partilhamos requer então que não ignoremos nem as consequências nem os títulos, nem os resultados futuros das nossas acções nem os acontecimentos relevantes do passado. Encoraja as pessoas a ajudar os necessitados, especialmente quando se trata de um amigo, de alguém geograficamente próximo ou quando os custos não são significativos. Mas também dá importância aos direitos e ao mérito, pelo que não estamos habitualmente obrigados a auxiliar estrangeiros. […]
Mas, a menos que sejamos relativistas morais, o simples facto dos títulos não serem uma parte importante do nosso código moral não justifica em si só um tal papel. Singer (…) pode talvez mais justamente ser visto como um reformista moral que defende a rejeição das regras que justificam uma distribuição de acordo com os direitos e o mérito. Seguramente que o facto de, no passado, o nosso código moral condenar o suicídio e a miscigenação cultural e perdoar a escravatura, não nos deve convencer que um código moral mais esclarecido, um que quiséssemos aceitar, assumiria tais posições. As regras que definem comportamentos aceitáveis estão continuamente a mudar, e devemos aceitar que a mudança se verifique quando estão em causa regras inferiores. Mas porque não devemos considerar os títulos como exemplos de regras inferiores de que é melhor livrarmo-nos? O que poderá justificar a nossa prática de avaliação das acções tendo em conta os direitos e o mérito em vez apenas das suas consequências? Podemos responder dizendo que em jogo estão valores mais fundamentais do que os direitos e o mérito, nomeadamente a equidade, a justiça e o respeito. Não recompensar aqueles que mereceram boas classificações ou promoções é errado porque é iníquo; ignorar as culpas passadas mostra incapacidade de assegurar a justiça; e desrespeitar os direitos à vida, à privacidade ou à liberdade religiosa sugere ausência de respeito pelas outras pessoas.
Alguns podem ser persuadidos por aquelas observações, sentindo que os títulos assentam hoje em alicerces razoavelmente firmes. Mas um defensor da igualdade pode questionar porque deve considerar-se a equidade, a justiça e o respeito pelas pessoas. Mas, uma vez que não é óbvio que a eliminação do sofrimento seja mais importante do que a equidade, o respeito e a justiça, parece que voltamos a alcançar um novo impasse. […]
A lição a tirar daqui é geral: só é racional aceitar um código moral que seja prático, que funcione efectivamente. Isto significa, entre outras coisas, que deve ser capaz de ser apoiado por quase todas as pessoas.
Mas o código deve ser prático noutros aspectos. (…) [É] errado ignorar as possibilidades do altruísmo, mas é igualmente importante que um código não assuma que as pessoas são mais egoístas do que o que de facto são. Não é racional os seres humanos aceitarem regras que só funcionem para os anjos. Depois, um código não pode pressupor que somos mais objectivos do que o que de facto somos; temos tendência para racionalizar quando os nossos próprios interesses estão em jogo, pelo que uma pessoal racional terá sempre isso em mente aquando da escolha de um código moral. Finalmente, não é racional apoiar um código moral que pressupõe que possuímos um conhecimento perfeito. Enganamo-nos com frequência sobre as consequências do que fazemos e um código que funcione deve ter isso em atenção. […]
Parece-me então que um código moral razoável deve implicar que as pessoas ajudem os outros quando isso não representar para elas qualquer custo substancial, isto é, quando o que sacrifiquem não implique a redução significativa da quantidade da sua felicidade ou da sua família. Uma vez que as poupanças das pessoas são quase tão importantes para elas como o seu segundo rim, os títulos prevalecerão sobre as necessidades dos outros. Mas se o que estiver em causa for trivial, for normalmente equivalente a sujarmos as nossas roupas, então um código moral ideal não pode permitir que os direitos prevaleçam sobre a eliminação do mal maior. Apesar do nosso código ser pouco claro e permitir, por vezes, atitudes esquizofrénicas, parece-me que estes juízos não são diversos das nossas atitudes morais comuns. Temos tendência para culpar as pessoas pelo facto de gastarem dinheiro em trivialidades em vez de o dar para auxílio dos mais necessitados, mas não é expectável que as pessoas façam grandes sacrifícios por aqueles que vivem em países distantes. Um código moral ideal pode afinal não ser assim tão diferente do nosso.»
John Arthur, “World Hunger and Moral Obligation. A case against Singer” in Boonin, David & Oddie, Graham (2005). What’s Wrong? Applied Ethicists and Their Critics. New York: Oxford University Press, pp. 544-7 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Mas, a menos que sejamos relativistas morais, o simples facto dos títulos não serem uma parte importante do nosso código moral não justifica em si só um tal papel. Singer (…) pode talvez mais justamente ser visto como um reformista moral que defende a rejeição das regras que justificam uma distribuição de acordo com os direitos e o mérito. Seguramente que o facto de, no passado, o nosso código moral condenar o suicídio e a miscigenação cultural e perdoar a escravatura, não nos deve convencer que um código moral mais esclarecido, um que quiséssemos aceitar, assumiria tais posições. As regras que definem comportamentos aceitáveis estão continuamente a mudar, e devemos aceitar que a mudança se verifique quando estão em causa regras inferiores. Mas porque não devemos considerar os títulos como exemplos de regras inferiores de que é melhor livrarmo-nos? O que poderá justificar a nossa prática de avaliação das acções tendo em conta os direitos e o mérito em vez apenas das suas consequências? Podemos responder dizendo que em jogo estão valores mais fundamentais do que os direitos e o mérito, nomeadamente a equidade, a justiça e o respeito. Não recompensar aqueles que mereceram boas classificações ou promoções é errado porque é iníquo; ignorar as culpas passadas mostra incapacidade de assegurar a justiça; e desrespeitar os direitos à vida, à privacidade ou à liberdade religiosa sugere ausência de respeito pelas outras pessoas.
Alguns podem ser persuadidos por aquelas observações, sentindo que os títulos assentam hoje em alicerces razoavelmente firmes. Mas um defensor da igualdade pode questionar porque deve considerar-se a equidade, a justiça e o respeito pelas pessoas. Mas, uma vez que não é óbvio que a eliminação do sofrimento seja mais importante do que a equidade, o respeito e a justiça, parece que voltamos a alcançar um novo impasse. […]
A lição a tirar daqui é geral: só é racional aceitar um código moral que seja prático, que funcione efectivamente. Isto significa, entre outras coisas, que deve ser capaz de ser apoiado por quase todas as pessoas.
Mas o código deve ser prático noutros aspectos. (…) [É] errado ignorar as possibilidades do altruísmo, mas é igualmente importante que um código não assuma que as pessoas são mais egoístas do que o que de facto são. Não é racional os seres humanos aceitarem regras que só funcionem para os anjos. Depois, um código não pode pressupor que somos mais objectivos do que o que de facto somos; temos tendência para racionalizar quando os nossos próprios interesses estão em jogo, pelo que uma pessoal racional terá sempre isso em mente aquando da escolha de um código moral. Finalmente, não é racional apoiar um código moral que pressupõe que possuímos um conhecimento perfeito. Enganamo-nos com frequência sobre as consequências do que fazemos e um código que funcione deve ter isso em atenção. […]
Parece-me então que um código moral razoável deve implicar que as pessoas ajudem os outros quando isso não representar para elas qualquer custo substancial, isto é, quando o que sacrifiquem não implique a redução significativa da quantidade da sua felicidade ou da sua família. Uma vez que as poupanças das pessoas são quase tão importantes para elas como o seu segundo rim, os títulos prevalecerão sobre as necessidades dos outros. Mas se o que estiver em causa for trivial, for normalmente equivalente a sujarmos as nossas roupas, então um código moral ideal não pode permitir que os direitos prevaleçam sobre a eliminação do mal maior. Apesar do nosso código ser pouco claro e permitir, por vezes, atitudes esquizofrénicas, parece-me que estes juízos não são diversos das nossas atitudes morais comuns. Temos tendência para culpar as pessoas pelo facto de gastarem dinheiro em trivialidades em vez de o dar para auxílio dos mais necessitados, mas não é expectável que as pessoas façam grandes sacrifícios por aqueles que vivem em países distantes. Um código moral ideal pode afinal não ser assim tão diferente do nosso.»
John Arthur, “World Hunger and Moral Obligation. A case against Singer” in Boonin, David & Oddie, Graham (2005). What’s Wrong? Applied Ethicists and Their Critics. New York: Oxford University Press, pp. 544-7 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Sem comentários:
Enviar um comentário