quinta-feira, 27 de março de 2008

Philippa Foot, "Eutanásia" (Parte IX)

«Podemos ver então que a distinção entre activo e passivo tem uma importância primordial no campo da eutanásia. Também parece estar claro por que é que o outro argumento de James Rachels, de que é frequentemente “mais humano” matar do que deixar morrer, não mostra que a distinção entre eutanásia activa e passiva é moralmente irrelevante. Neste sentido, pode ser “mais humano” privar alguém da propriedade que lhe causa dano, ou recusar pagar o que é devido ao debochado devasso de Hume; mas se afirmamos isto, temos que admitir que um acto que é “mais humano” do que a sua alternativa pode ser censurável porque infringe determinados direitos.
Até agora dissemos muito pouco sobre o direito a serviços enquanto oposto ao direito de não-interferência, embora não tenha sido definido que ambos devessem estar sob a égide do “direito à vida”. E o que dizer sobre o direito de proteger a vida a determinados tipos de pessoas como guarda-costas, bombeiros, ou médicos? Ao contrário das pessoas em geral, estes não se enquadrarão dentro dos seus direitos se simplesmente se recusarem a interferir e a não preservarem as vidas humanas. A reivindicação de direitos do sujeito é dupla no caso destas pessoas, e a eutanásia passiva bem como activa, não se aplica aqui se for contra a sua vontade. Isto não quer dizer que este indivíduo tenha direito a todo e qualquer serviço necessário para lhe prolongar a vida; os direitos das outras pessoas determinam limites sobre o que pode ser exigido, quer porque têm o direito de não ter interferências nas suas vidas quer porque possuem o mesmo direito na reclamação desses serviços. Além disso, é necessário averiguar em cada caso, quais os termos da relação ou acordo implícito. Os bombeiros e os guarda-costas têm presumivelmente o dever simples de preservar a vida, dentro dos limites de justiça em relação aos outros e de razoabilidade em relação a si próprios. No que respeita aos médicos, pode ser diferente, uma vez que o seu dever está ligado não só a preservação da vida, mas também ao alívio do sofrimento. Não está claro quais são exactamente os deveres de um médico para com os seus pacientes, se a vida pode ser prolongada às custas de sofrimento e se este só pode ser aliviado através de métodos que encurtam a vida. George Fletcher defende que aquilo a que um médico está obrigado, depende efectivamente do que é feito, pois é isto que qualquer paciente espera razoavelmente que aconteça
[1]. Se determinados procedimentos fazem parte da prática médica regular, parece lógico que os pacientes os possam exigir, apesar de, ao fazê-lo, isso possa ir contra os seus interesses. Mais uma vez, não se trata do que é “mais humano”. É inegável que o direito de um paciente à vida, estabelece limites a actos permissíveis de eutanásia. Se essa pessoa não quer morrer, ninguém tem o direito de praticar eutanásia activa com ela, e a eutanásia passiva pode também estar fora de questão, uma vez que tem direito a serviços médicos ou outros.
Talvez muito poucos neguem o que até aqui foi dito sobre a inaceitabilidade dos actos de eutanásia simplesmente porque, até aqui, só falámos de casos de pessoas que desejam viver, e sobre os seus direitos, enquanto que aqueles que defendem a eutanásia geralmente pensam ou em casos de pessoas cujo desejo expresso é morrer ou sobre aqueles cujos desejos não podem ser reconhecidos ou porque não se pode propriamente dizer que tenham desejos ou porque, por uma ou outra razão, não nos é possível determinar quais são efectivamente os seus desejos. A questão que nos cabe aqui levantar agora é se neste último caso a eutanásia é diferente daquela que discutimos até aqui. Teríamos o direito de matar alguém para o seu próprio bem se não tivéssemos qualquer ideia segura de que essa pessoa desejava viver? E o que dizer dos deveres dos médicos em prolongarem a vida em circunstâncias semelhantes? Este é um problema difícil. Por um lado, parece ridículo supor que o direito de uma pessoa à vida é algo que pressupõe deveres apenas quando deu a indicação que deseja viver; tal como alguém que pede alguma coisa emprestada, tem efectivamente o dever de a restituir somente se a pessoa que a emprestou indicar que a quer de volta. Por outro lado, podemos argumentar que há algo de ilógico no que respeita a ideia de que um direito foi violado se alguém é incapaz de dizer o quer ou não for privado de algo que lhe faz mais mal do que bem. Todavia, comparado com o contexto da propriedade diríamos que um direito teria sido violado. Apenas quando alguém anteriormente nos tivesse dito que em tais circunstâncias não desejaria reaver o objecto, poderíamos assumir que o seu direito tinha sido renunciado. Talvez se fossemos capazes de fazer juízos seguros sobre o que qualquer um pode aspirar nestas circunstâncias, ou sobre o que desejaria à partida caso tivesse ponderado sobre o assunto, poderíamos considerar o direito à vida como “latente”, a necessitar ser asseverado caso os deveres comuns permanecessem. Porém não podemos realizar esta presunção; simplesmente não sabemos o que a maioria das pessoas desejaria que fizéssemos, ou teria desejado, a não ser que no-lo digam. Este é certamente o caso no que diz respeito às medidas activas para pôr termo à vida. Possivelmente é diferente, ou tornar-se-á diferente, no que respeita à preservação da vida, tal é o sentimento geral contra o uso de procedimentos sofisticados em pacientes terminais, e tão receado por pessoas idosas ou doentes terminais. Mais uma vez a distinção entre eutanásia activa e passiva assume protagonismo, mas desta feita porque a reacção das pessoas a ambas é tão diferente. Na ausência de provas concretas, é apenas possível presumir que, além de certas circunstâncias, alguém possa não desejar ser mantido vivo; não é certamente possível assumir que essa pessoa deseja ser morta.
No último parágrafo iniciámos a discussão sobre a eutanásia voluntária, que agora temos que continuar. Sobre os casos de pessoas em que não há dúvida que desejam morrer há que dizer que ou, nesta situação, essa pessoa já nos tinha informado sobre esse desejo com antecedência, e não há evidências de alteração da sua vontade, ou nos diz no momento, estando em posse das suas faculdades mentais sem pressão. Poderíamos, neste caso, dizer que as objecções avançadas anteriormente contra actos de eutanásia, os quais relembramos, e que eram fundadas na questão dos direitos, tinham desaparecido. Não parece que estejamos a atentar contra o direito à vida de alguém ao matá-lo com a sua permissão e efectivamente na sequência do seu pedido. Por que não poderia alguém renunciar ao seu direito à vida, ou como seria mais provável que acontecesse, anular alguns dos deveres de não-interferência vinculados ao seu direito? (É bem mais provável que indique como, quando quem deseja que lhe tire a vida, do que apenas refira que qualquer pessoa o possa fazer quando e como queira.) Da mesma forma, uma pessoa pode autorizar e pedir a destruição da sua propriedade. O que importa é que dê a permissão crucial, sendo que isto é suficiente para anular o dever que geralmente lhe vem associado. Se alguém nos autoriza a destruir-lhe a propriedade, deixa de ser válida a premissa de que não temos o direito de o fazer, e não vejo por que terá que ser diferente quando se trata da vida de uma pessoa. Poderia ser feita uma objecção no sentido de que apenas Deus tem o direito de tirar a vida, mas, neste ensaio, os argumentos religiosos, enquanto opostos aos morais, serão deixados de lado. Religião aparte, se a morte é permitida a alguém que deseja morrer ou esse alguém é morto, parece não haver espaço para a questão da violação de direitos. Porém, não é o mesmo que dizer que não existe qualquer objecção moral. Mesmo no caso da propriedade, que é no fundo um contexto de menor importância, poderemos estar errados ao destruir aquilo a que temos direito. Pois, além do valor que essa propriedade possa ter para outras pessoas, é também valiosa para aquele que a quer ver destruída, e, neste caso, a caridade pode exigir que actuemos onde a justiça não actuou.
Revejamos agora as conclusões desta parte do argumento sobre a eutanásia e o direito à vida. Foi aqui exposto que a este respeito surgem algumas restrições à prática de eutanásia moralmente aceitável. A eutanásia involuntária activa é regulada pela parte do direito à vida que implica o dever de não-interferência, apesar da eutanásia involuntária passiva não ser regulada, excepto em situações em que o direito à preservação da vida tenha sido criado por algum acordo especial entre o médico e o seu paciente, e as implicações desse contrato nem sempre estão claras. A eutanásia voluntária é outro assunto distinto: tal como foi sugerido no parágrafo anterior, nenhum direito é violado se a morte for permitida a alguém na sequência de um pedido expresso.
Cabe-nos agora dizer algo de bem diferente acerca da outra objecção geralmente feita contra o causar a morte de alguém, sendo que é contra o princípio da caridade ou benevolência. A caridade é a virtude que nos liga ao bem dos outros, e porque a vida constitui geralmente um bem, a caridade exige, por norma, que a vida seja salva ou prolongada. Uma vez que definimos a eutanásia como um acto que promove a morte de outra pessoa para o seu próprio bem, a caridade ser-lhe-á favorável neste caso. Isto não quer dizer que a caridade permite um acto que a justiça recrimina, mas se um acto de eutanásia não for contrário à ideia de justiça, ou seja, se não violar direitos, a caridade estará potencialmente mais inclinada para a aceitar.
Uma vez mais a distinção entre eutanásia voluntária e involuntária deve ser discutida. Estaríamos no caminho da caridade ao procurarmos a morte de alguém, apesar deste querer viver, ou pelo menos, se não nos tivesse informado que desejaria morrer? Tem sido defendido que em tais circunstâncias a eutanásia activa violaria o direito à vida, mas não no caso da eutanásia passiva, a não ser que o sujeito possuísse algum direito especial relativo aos serviços de preservação da vida conferidos por aquele que o autoriza a morrer. O que determinaria a caridade nestas circunstâncias? Obviamente que quando alguém quer viver, presumimos que será beneficiado se a sua vida for prolongada, e se assim é, a questão da eutanásia não se coloca. Mas também é possível que essa pessoa desejasse viver mesmo em circunstâncias onde a sua morte fosse bem melhor para ela: talvez não tenha consciência da terrível situação em que se encontra, ou talvez tenha medo de morrer. Deste modo, apesar da nossa natural resistência em aceitarmos a vontade de alguém em matéria de vida ou morte, poderíamos de forma legítima recusarmo-nos a prolongar a vida, mesmo de alguém que nos tenha pedido que a prolongássemos, do mesmo modo que recusaríamos dar uma droga a um soldado ferido, à partida condenado. E, neste caso, torna-se ainda mais evidente que a caridade nem sempre determina que a vida de alguém seja prolongada, quando os desejos de alguém são conhecidos, seja de forma real ou hipotética.»


[1] G. Fletcher, “Legal Aspects of the Decision of not Prolong Life”, Journal of the American Medical Association 203, nº 1 (1 de Janeiro de 1968): 119-22. Reimpresso em Gorowitz.

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