sábado, 31 de maio de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte VI)

«5. A analogia com os estados
Esta teoria ajuda a resolver um paradoxo frequentemente identificado no interior da teoria liberal. Como acabei de destacar, a maioria dos teóricos liberais aceita claramente que o mundo é, e continuará a ser, composto por estados separados, supondo-se que cada um possui o direito a determinar quem pode entrar nas suas fronteiras e adquirir a cidadania. Creio que esta suposição só se pode justificar com base no mesmo tipo de valores que fundamentam os direitos de grupo para as minorias nacionais em cada estado. Creio que o ponto de vista liberal ortodoxo sobre os direitos dos estados a determinar quem possui a cidadania radica sobre o mesmo princípio que justifica os direitos de grupo no interior dos estados e que, por isso, a aceitação dos primeiros conduz logicamente à aceitação dos segundos.

Vale a pena explorar este aspecto com maior profundidade. A existência de estados e do direito dos governos a controlar a entrada através das suas fronteiras, coloca uma profundo paradoxo aos liberais. A maioria dos teóricos liberais defende as suas teorias em termos de “igual respeito pelas pessoas” e “iguais direitos dos indivíduos”. Isto sugere que as “pessoas” ou “indivíduos” possuem o mesmo direito a entrar num estado, participar na sua vida política e compartilhar dos seus recursos.

Contudo, esses direitos estão efectivamente reservados aos cidadãos, e nem todos se podem converter em cidadãos, ainda que desejem jurar lealdade aos princípios liberais. Pelo contrário, existem milhões de pessoas que querem adquirir a cidadania em diversas democracias liberais, mas que vêem a sua pretensão recusada. Mesmo os países mais abertos em termos de imigração só aceitam uma pequena parcela das pessoas que estariam dispostas a entrar se existissem fronteiras genuinamente abertas. Com efeito, é negada a entrada a potenciais imigrantes, sendo impedidos na fronteira por guardas armados. Nega-se a estas pessoas os direitos a entrar e a participar no estado porque não nasceram no grupo correcto. Por isso, a cidadania é inerentemente uma noção específica do grupo. A menos que alguém esteja disposto a aceitar um governo mundial único ou fronteiras completamente abertas (são poucos os teóricos liberais que apoiaram uma coisa ou outra), a distribuição dos direitos e benefícios em função da sua pertença a um grupo[1].

Isto gera uma profunda contradição na maioria das teorias liberais. Como sublinha Samuel Black, é frequente os teóricos liberais começarem a falar sobre a igualdade moral das “pessoas”, mas terminarem referindo-se aos “cidadãos” sem explicar ou mesmo advertir para esta mudança[2]. O que poderá justificar a restrição aos direitos de cidadania aos membros de um grupo particular, em vez de os conceder a todas as pessoas que os desejem? Alguns críticos denunciaram a incapacidade dos liberais para justificar esta restrição e salientaram que a lógica do liberalismo exige fronteiras abertas, excepto, talvez, certas restrições temporais em nome da ordem pública[3]. Seguramente que isto será correcto se nos agarrarmos à ideia de que o liberalismo deveria ser indiferente relativamente à pertença cultural das pessoas e da identidade nacional. Uma política de fronteiras abertas aumentaria de forma dramática a mobilidade e as oportunidades dos indivíduos, e se o liberalismo exige tratar as pessoas apenas “como indivíduos” sem consideração pela sua pertença a um grupo, a política das fronteiras abertas é claramente preferível de um ponto de vista liberal.

Todavia, acredito que alguns limites à imigração são justificáveis se reconhecermos que os estados liberais existem não só para proteger direitos e oportunidade iguais para todos os indivíduos, mas também para proteger a pertença cultural das pessoas. Os liberais assumem implicitamente que as pessoas são membros de culturas societárias, que essas culturas proporcionam o contexto para a escolha individual e que uma das funções da existência de estados separados é a de reconhecer o facto das pessoas pertencerem a culturas separadas. Não obstante, logo que este pressuposto tenha sido explicitado, fica claro que nos estados multinacionais a pertença cultural de algumas pessoas só pode ser reconhecida e protegida através do apoio aos direitos de grupo no interior do Estado.

Os teóricos liberais limitam invariavelmente a cidadania aos membros de um grupo concreto e não a todas as pessoas que a desejam. A razão deste facto, quer dizer, o reconhecimento e a protecção da nossa pertença a diversas culturas, é também uma razão para permitir os direitos de grupo no interior de um estrado multinacional. Podem existir outras razões para restringir a cidadania a um grupo particular que não se refiram à importância dos grupos culturais. É difícil dizer que razões podem ser essas, já que poucos liberais discutem actualmente o trânsito da “igualdade das pessoas” para a “igualdade dos cidadãos”, mas creio que será justo dizer o seguinte: se os teóricos liberais aceitarem que o princípio de cidadania pode restringir-se aos membros de um grupo particular, então o ónus da prova recairá sobre eles, cabendo-lhes explicar por que razão não se comprometem também com a aceitação dos direitos de grupo dentro do Estado[4]. De igual modo que, como liberais, se acreditam em estados separados com uma cidadania restringida, então o ónus da prova recairá igualmente sobre os oponentes dos direitos de grupo e sobre os seus defensores.»

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[1] Daí que o conhecido contraste entre as formas “coassociativas” e “universal” de incorporar os indivíduos no Estado seja equívoco. Existe uma distinção entre os modelos de cidadania que incorporam os cidadãos sobre uma base uniforme ou mediante a pertença a algum grupo. Mas a cidadania uniforme não é uma cidadania universal. Nenhum país admite uma cidadania universal.
[2] Samuel Black, “Individualism at na impasse”, Canadian Journal of Philosophy, 21/3, 1994, pp. 347-77.
[3] Sobre os liberais defensores das fronteiras abertas, que se consideram críticos da concepção ortodoxa liberal, veja-se Joseph Carens, “Aliens and Citizens: the case for open borders”, Review of Politics, 49/3, 1987, pp. 251-73; Timothy King, “Inmigration from Developing Countries: Some Philosophical Issues”, Ethics, 93/3, 1983, pp. 525-36; Veit Bader, “Citizenship and Exclusion. Radical Democracy, Community and Justice”, Political Theory, 23, 1995.
[4] Devo insistir no facto de que a minha defesa da legitimidade das fronteiras parcialmente fechadas não pretende defender o direito dos grupos nacionais a manter mais do que constitui a sua justa participação nos recursos. Pelo contrário, defende que um país renuncia ao seu direito a restringir a imigração se tiver sido incapaz de assumir a sua obrigação de compartilhar a sua riqueza com os países mais pobres do mundo. Veja-se Bader, Citizenship and Exclusion; Bruce Ackerman, Social Justice and the Liberal State, New Haven, Yale University Press, 1980, pp. 256-57.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Será a eutanásia moral? Esta é a RESPOSTA do Ricardo e do João:

«A questão “será a eutanásia moral?” coloca-nos perante a questão de saber se a eutanásia é certa ou errada, aceitável ou inaceitável, permissível ou impermissível.

A eutanásia aparece no dicionário como a “teoria segunda a qual seria lícito abreviar a vida de um doente incurável para pôr fim aos seus sofrimentos”, mas a sua definição não é unanimemente aceite por todas as pessoas. Podemos considerar três tipos de eutanásia: a eutanásia voluntária, a eutanásia involuntária e a eutanásia não voluntária, que pode ser efectuada de um modo activo ou passivo. Diz-se que a eutanásia é voluntária quando realizada a pedido da pessoa que deseja morrer, sendo muitas vezes confundida com o suicídio assistido. Todavia há situações em que a pessoa é capaz de consentir a sua morte, mas não o faz, pelo que o acto de eliminar o sofrimento insuportável que esta sente, é considerado eutanásia involuntária. Por último, no caso da eutanásia não voluntária, a pessoa não consegue distinguir a diferença entre a vida e a morte, como é o caso dos bebés com doenças incuráveis ou deficiências graves e pessoas que foram vítimas de graves acidentes ou que estejam já numa idade avançada, perdendo assim determinadas faculdades intelectuais.

Existe uma doutrina tradicional defendida pela maioria dos médicos, segundo a qual é admissível a suspensão dos tratamentos extraordinários dos quais a sobrevivência de um determinado paciente está dependente, deixando-o morrer (eutanásia passiva), sendo, no entanto, profundamente errado agir de modo a provocar directamente a sua morte, matando-o (eutanásia activa). Esta doutrina considera, assim, bastante relevante a distinção entre eutanásia passiva e eutanásia activa. Mas será que esta distinção é, em termos morais, relevante para a discussão ética do problema da eutanásia? E mais: será que essa distinção existe realmente? O que leva muitas pessoas a verem a eutanásia activa como algo, em si mesmo, pior do que eutanásia passiva, baseia-se no facto de considerarem que o acto de matar é moralmente pior do que o de deixar morrer. Mas será mesmo? Segundo alguns defensores da eutanásia, não. Tanto na eutanásia activa como na eutanásia passiva, os agentes têm o mesmo objectivo, a mesma intenção – a morte do paciente. Tendo ambas a mesma razão de ser, são vistas como um meio de acabar como o sofrimento deste. Assim, a diferença entre estes dois processos está na causa da morte: enquanto que na administração de uma injecção letal, a morte do paciente se deve à acção directa do médico, ao suspender-se o seu tratamento, a morte do paciente é causada pela doença. No âmbito da distinção entre eutanásia activa e eutanásia passiva, a causa de morte não é, no entanto, relevante, do ponto de vista moral, uma vez que ser causa da morte de alguém é mau por a morte ser também algo intrinsecamente mau. Mas esta está, no entanto, presente em ambos os métodos, pelo que acreditamos que não existe qualquer diferença moral relevante entre matar e deixar morrer.

Assistir cruelmente à morte de alguém é, assim, tão ou mais repreensível do que matar. Mas, reflectindo bem, o que será a cessação do tratamento, nestas circunstâncias, senão “o acto intencional de pôr termo à vida de um ser humano, praticado por outro?” (James Rachels, 1997: p. 4). Mais, a eutanásia activa, por aplicação de uma injecção letal, é moralmente preferível à eutanásia passiva. É um processo relativamente rápido e que não causa dor, contrariamente à eutanásia passiva em que se assiste barbaramente à morte dolorosa e lenta do paciente. Aliás, se foi o nosso sentimento de piedade que nos levou a decidir acabar com o sofrimento do paciente, estaríamos a ir contra o nosso impulso humanitário ao sujeitá-lo a uma morte lenta e cruel.

Há, no entanto, quem considere inútil o debate acerca da moralidade ou imoralidade de deixar morrer alguém, ou seja, de praticar a eutanásia passiva, uma vez que esta está presente em muitos hospitais e clínicas, nos quais todos os dias “suspendem-se as infusões intravenosas que prolongam a vida, cancelam-se as cirurgias propostas e retiram-se os medicamentos” (Joseph Fletcher, 1997: p. 24-25).

Uma outra questão que pode ser levantada está relacionada com as distinções entre cessação intencional e não intencional da vida e entre meios ordinários e extraordinários, essenciais nesta discussão moral. “Os meios extraordinários de manutenção da vida são todos aqueles remédios, tratamentos e operações que não podem ser obtidos sem despesas, dores excessivas e outros incómodos, ou que, se usados, não apresentariam uma esperança razoável de benefícios” (Thomas Sullivan, 1977: p. 9). Pelo contrário, os meios ordinários de manutenção da vida são todos aqueles medicamentos, tratamentos e operações que não causam despesa, sofrimento e outros incómodos ao paciente e que lhe apresentam uma esperança razoável de benefícios. De acordo com a doutrina tradicional, é permissível a “ cessação do emprego de meios extraordinários para prolongar a vida do corpo” (James Rachels, 1997: p.1). Segundo alguns autores, como Thomas Sullivan, o erro reside, então, no facto da doutrina tradicional excluir os meios ordinários (como os próprios cuidados mínimos a dar a um recém-nascido), colocando-os na mesma categoria moral que, por exemplo, os homicídios.

Por outro lado e agora relacionado com problemas conceptuais, podemos considerar os conceitos de tratamento extraordinário e tratamento ordinário como sendo relativos, uma vez que a ciência, nomeadamente a medicina, tem evoluído e continua a evoluir tão rapidamente, que tratamentos anteriormente considerados como cuidados extraordinários, são agora meros cuidados ordinários, para além de que um dado tratamento pode ser ordinário para certas pessoas e extraordinário para outras. Se tomarmos como um exemplo duas pessoas, uma idosa (frágil e débil, cuja morte é praticamente inevitável) e outra adulta (mais vigorosa e robusta) que sofrem da mesma doença e que são sujeitas ao mesmo tratamento, facilmente percebemos que neste último caso se trata de um cuidado ordinário, pois é de esperar que apresente uma esperança razoável de benefícios muito superior à da pessoa idosa, cujo tratamento é portanto extraordinário.

O desenvolvimento da medicina, implica, de facto, um aumento da capacidade de controlo em relação à vida e à morte. Mas como poderá alguém aprovar o aborto, o acto de acabar com a vida no seu início, pelo facto do feto poder vir a ter uma má qualidade de vida (devido a malformações, por exemplo) e recusar o acto de acabar com o sofrimento de alguém cuja qualidade de vida está inevitavelmente afectada? O prolongamento da vida nem sempre traz benefícios para a pessoa. A vida de algumas pessoas torna-se um autêntico fardo, sendo impossível superar os desagrados das suas vidas, ansiando que a morte lhes bata à porta, caso a sua vida fosse prolongada durante mais alguns anos, a única diferença seria a de vir a ter um sofrimento maior e mais prolongado. Como refere Ph. Foot, “parece ser correcto dizer que a vida não é uma bênção para aqueles que se encontram permanentemente na última situação” (Ph. Foot, 2001: p. 8).

A distinção entre cessão intencional e não intencional é também um aspecto bastante importante. Há quem considere inadmissível pôr fim à vida de alguém intencionalmente, quer seja por eutanásia activa quer seja por eutanásia passiva. Contudo, a suspensão dos tratamentos que estão a ser prestados a uma pessoa, cujas esperanças de beneficiar deles são muito reduzidas e que só lhe está a causar dor e sofrimento, não pode, segundo alguns autores, ser considerada eutanásia, pois não tem como intenção primeira matar o paciente, mas sim, entre outras coisas, poupar-lhe algum sofrimento. Esta posição pode, no entanto, ser refutada por quem considera que a intenção não é relevante para avaliar a moralidade de um determinado acto, mas apenas o carácter de quem o pratica.

Há um outro ponto de vista que afirma que aquilo que nos permite definir verdadeiramente como ser humanos é a nossa capacidade racional, daí que não seja moral e eticamente apenas relevante estar vivo ou morto, mas saber se possuímos ou não essa faculdade, o que não acontece, por exemplo, com alguém que esteja em estado de coma profundo. É, então, muito importante esclarecer-se qual o princípio que consideramos ser mais importante: o de que a sobrevivência biológica é de facto aquilo que interessa primeiramente ou o de que é a qualidade de vida que ocupa esse lugar. O primeiro princípio é, como era de esperar, defendido principalmente por quem sem opõem à eutanásia.

Como defendem alguns autores, como Everett Koop e Gerald Coleman, a nossa opinião relativamente ao problema da eutanásia, depende em muito do significado que atribuímos à vida, se a consideramos ou não merecida de ser vivida em função da nossa crença ou não em Deus. Se acreditarmos, por exemplo, na santidade da vida, acreditamos que a vida ou a morte de uma pessoa não pode ser decidida pelo Homem; acreditamos também que o sofrimento vivido pelo paciente não é uma justificação ética e moral para a prática da eutanásia, uma vez que aquilo que consideramos ser bom ou mau não deve ser avaliado unicamente com base na “quantidade” de dor ou prazer produzidos. Como refere G. Coleman, “a tradição cristã defende que o sofrimento pode dar origem a um grande bem se for aliado ao sofrimento de Jesus” (Gerald Coleman, 1997: p. 37). Esta posição advoga que a vida de cada pessoa é sagrada e digna de ser vivida e deverá ser respeitada porque é feita à imagem e semelhança de Deus; porque nós somos “propriedade de Deus”, pelo que nos foi concedido o direito de controlarmos e decidirmos o que fazemos nesta vida (através do livre-arbítrio), mas nada mais para além disso, como, por exemplo, acabar com ela.

O problema que estamos a abordar, aparentemente sem resolução, está então intimamente relacionado com questões teológicas, mas insere-se também no âmbito dos direitos. De facto, se eu quiser pôr termo à minha vida, com que direito poderá alguém impedir-me? Há quem considere que a eutanásia poderia surgir como uma forma de interesse ou ganho pessoal, dando origem a actos imorais, que desprezam completamente o significado da vida.

Um outro argumento utilizado por quem se opõe à prática, e podemos mesmo considerar à ideia de eutanásia, baseia-se na concepção de natureza humana. Gay-Williams diz que “todos os seres humanos têm uma inclinação natural para continuarem a viver” (Gay Williams, 1997: p. 32) e a eutanásia constitui, deste ponto de vista, um atentado contra esta tendência natural, sendo algo que nos descaracteriza completamente enquanto seres humanos. Para além disso, a medicina é uma ciência falível, na medida em que é possível serem feitos diagnósticos errados ou pensarmos que as nossas esperanças de sobrevivência são praticamente nulas quando na realidade o não são, para além de que podem surgir novas técnicas que nos permitam salvar, podendo praticar-se a eutanásia desnecessariamente. Enfim, a eutanásia pode fazer com que desistamos muito facilmente da vontade de viver, indo contra os nossos interesses pessoais.

Segundo Peter Singer, matar um recém-nascido deficiente não é moralmente o mesmo que matar uma pessoa, sendo muitas das vezes algo que não se pode considerar como um mal. Consideremos a seguinte experiência mental: “Suponhamos que é diagnosticada hemofilia a um bebé recém-nascido. Os pais assustados com a perspectiva de terem de criar um filho nestas condições, não anseiam pela sua sobrevivência.” Poderia ser defendido que a vida da criança até podia vir a valer a pena, pelo que não devia ser morta, senão estaríamos a privá-la do direito a experienciar uma vida minimamente valorizável. No entanto, não podemos deixar de ter em conta que as perspectivas de vida de um hemofílico são claramente inferiores quando comparadas com as perspectivas de vida das pessoas normais. Assim, poderíamos supor que o casal poderia matar o filho deficiente caso tivessem um segundo que fosse saudável, de modo a reparar a perda da primeira vida, até porque esta hipótese traria mais felicidade ao casal. No caso de pessoas que ou por acidente ou idade avançada já não possuem a capacidade de escolher entre a vida ou a morte, a eutanásia é igualmente justificável, uma vez que estas pessoas se assemelham a recém-nascidos deficientes, nos aspectos relevantes para o caso, logo a eutanásia não voluntária é moralmente justificável.

No que diz respeito à eutanásia involuntária, pode-se dizer que admite semelhanças com alguns aspectos da eutanásia voluntária, embora difira no não consentimento da pessoa. Desse modo, teria de ser outra pessoa a consentir a morte da outrem, o que não parece muito plausível, uma vez que “não parece que tenhamos alguma vez justificação para ter tanta confiança nos nossos juízos sobre se a vida de outra pessoa, para essa pessoa, vale ou não a pena ser vivida” (Peter Singer, 2002: p. 221). Assim, este tipo de eutanásia não parece justificável.

Para quem tem a capacidade de consentir a sua morte e ao mesmo tempo o desejo de morrer, a situação é muitas vezes difícil de resolver. Se uma pessoa pedir a outra para lhe tirar a vida, a pessoa que mata está a correr o risco de vir a ser acusada de homicídio, mesmo que a morte traga benefícios para quem implora ser morto. Apesar de parecer ser preferível matar aqueles que são meramente conscientes do que aqueles que são plenamente conscientes, existem fortes razões para preferir a eutanásia voluntária, pois apesar de uma pessoa autoconsciente desejar viver o maior período de tempo possível, a situação inverte-se quando por algum motivo de saúde a sua vida fica gravemente condicionada, tendo agora como seu maior desejo uma morte serena e não dolorosa.

O desejo da pessoa é um elemento de grande força moral, pelo que deve ser honrado e tido em conta. Caso a pessoa possua determinadas convicções religiosas e deseje viver em sofrimento, devemos respeitar a sua decisão e não matá-la mesmo que matá-la fosse uma decisão razoável e, por outro lado, se uma pessoa sofrer de uma doença terminal ou outra coisa que lhe retire quase todas as esperanças de sobreviver, esta tem o direito de exercer a sua autonomia, desde que tudo faça para prejudicar o menos possível os outros e se encontre mentalmente e racionalmente capaz, tendo a liberdade de poder escolher entre a vida e a morte.

Considerados todos os argumentos e conclusões tiradas relativas ao problema da eutanásia, tanto a favor como contra, a nossa resposta à questão “Será a decisão do Juiz do Tribunal Superior moralmente justificável?” é não. De facto, a decisão do Juiz não é moralmente justificável, porque resulta num acto de tentar salvar uma vida cujo futuro lhe reserva inevitavelmente sofrimento e infelicidade. Mesmo que a cirurgia viesse a ser bem sucedida e o bebé sobrevivesse, associadas às malformações poderiam advir outras deficiências, e a sua qualidade de vida seria com certeza pouco digna de um ser humano, tornando-se num pesado fardo, difícil de ser vivida. A decisão mais ética seria, neste caso, a eutanásia activa pois é aquela que menos prolonga o sofrimento, proporcionando uma morte”suave”, rápida e sem dor. Assim, apesar da intenção do juiz ser a melhor para o bebé, do ponto de vista utilitarista, ou seja, das consequências, é uma decisão “desumana“, visto que traria ao “Bebé Houle” uma vida miserável, não merecida de ser vivida.»


Bibliografia

Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora
Coleman, Gerald D. “Suicídio Assistido: uma perspectiva ética” in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 123-132
Fletcher, Joseph, “Santidade da vida por oposição a qualidade de vida” in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 101-113
Foot, Philippa, “Euthanasia” in Olen, J.; Barry, V. (ed.s)(2001). Applying Ethics: a text with readings. Wadsworth: U.S.A, pp. 240-55 (Traduzido por Vítor João Oliveira)
Gay-Williams, J. “O carácter errado da eutanásia” in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 115-121
Koop, C. Everett, “O direito de morrer: os dilemas morais” in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 83-100
Rachels, James, “Eutanásia activa e passiva” in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 53-61
Rachels, James, “Mais distinções irrelevantes” in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand editora, pp. 73-82
Brandt, Richard, “A moral principle about killing”, in S. Satris (org.) (2000). Taking Sides: Clashing views on controversial Moral Issues. 7th Ed.. Connecticut: dushkin/McGraw Hill, pp. 298-304 (Traduzido por Vítor João Oliveira)
Shewmon, D. Alan “Eutanásia voluntária activa: uma caixa de pandora desnecessária” in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand editora, pp. 155-169
Singer, Peter “Tirar a vida: os seres humanos” in Singer Peter (2002). Ética Prática. Lisboa: Gradiva, pp. 195-238
Sullivan, Thomas D., “Eutanásia activa e passiva: uma distinção irrelevante? in Baird, Robert M., Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 63-71
Young, Ernlé W. D. “Assistência ao suicídio: uma perspectiva ética” in Baird, Robert M., Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 133-148

Será a eutanásia moral? Eis a RESPOSTA do Rúben e do Daniel:

Situação a tratar

A 24 de Fevereiro, o filho do casal H. T. Houle morreu, no Centro Médico do Maine, na sequência de uma operação cirúrgica de emergência ordenada pelo tribunal. A criança nascera a 9 de Fevereiro, horrivelmente deformada. Tinha malformações em todo o lado esquerdo: não tinha olho esquerdo; faltava-lhe praticamente a orelha esquerda; tinha a mão esquerda deformada; algumas das suas vértebras não estavam fundidas. Além disso, sofria de uma fístula traqueo-esofágica e não podia ser alimentada pela boca. O ar escapava-se-lhe para o estômago em vez de seguir para os pulmões. Como referiu o Dr. André Hellegers…,”Não é preciso grande imaginação para pensar que haveria mais deformações internas…”.
Com o passar dos dias o estado da criança piorou. Surgiu uma pneumonia. Os seus reflexos tornaram-se mais fracos e, devido á circulação deficiente, surgiram suspeitas de lesões cerebrais graves. A fístula traqueo-esofágica, a ameaça imediata á sua sobrevivência, pode ser corrigida com relativa facilidade mediante cirurgia. Mas, tendo em atenção as complicações e deformidades associadas, os pais recusaram-se a dar autorização para a intervenção cirúrgica do “Bebé Houle”. Vários médicos do Centro Médico do Maine tinham uma opinião diferente e apresentaram o caso em tribunal. O Juiz do Tribunal Superior do Maine, David G. Roberts, ordenou que se realizasse a cirurgia. Foi este o teor da sua decisão: “No momento do nascimento com vida, existe um ser humano que tem o direito á mais ampla protecção legal. O mais fundamental de todos os direitos de que goza qualquer ser humano é o direito á própria vida”.

Será a decisão do Juiz do Tribunal Superior moralmente aceitável? Porquê?

Antes de nos pronunciarmos sobre esta questão, iremos esclarecer alguns conceitos importantes para a melhor compreensão de toda esta temática.
Será a decisão do Juiz justa? Será que a lei pode contrariar a vontade dos pais de deixar o seu filho partir ou será que a decisão de uma instituição pública deve prevalecer?

Para respondermos a estas questões temos de introduzir o tema principal implícito desta discussão: será a eutanásia moralmente justificável?

A Eutanásia

A palavra eutanásia vem do grego e significa morte sem dor, morte feliz (eu – bem, + thanatos – morte).

As actuais discussões acerca do direito de morrer são criadas principalmente por uma diferente interpretação do termo “eutanásia”.

A eutanásia é definida pela ESA (Euthanasia Society of America) como sendo o acto de pôr termo à vida humana de forma indolor, com a finalidade de por fim a um grande sofrimento físico. Com o tempo, o significado da palavra tem vindo a ser alterado, chegando a eutanásia a ser conhecida, nos dias de hoje, como “homicídio por compaixão”

A justificação para a eutanásia reside no facto de o paciente se encontrar numa terrível agonia e, dado que morrerá de qualquer modo, seria inaceitável prolongar desnecessariamente o seu sofrimento.

Posição Tradicional:

Em relação à posição tradicional o professor Sullivan considera como pontos mais importantes:

“…em primeiro lugar, que nunca deveríamos pôr fim intencionalmente á vida de um paciente, quer por acção quer por omissão, e, em segundo, que só podemos cancelar ou omitir o tratamento a um paciente, sabendo que isso irá ter como resultado a morte, se o meio de tratamento utilizado for extraordinário” (James Rachels, 1997: p. 12).

Tal como refere Ramsey, “os meios ordinários de manutenção da vida são todos os medicamentos, tratamentos e operações que apresentam uma esperança razoável de benefícios para o paciente e que podem ser obtidos e utilizados sem despesa e dor excessivas e outros incómodos” (Cit. por James Rachels, 1997: p. 14). Enquanto que “os meios extraordinários de manutenção da vida são todos aqueles remédios, tratamentos e operações que não podem ser obtidos sem despesas, dores excessivas e outros incómodos, ou que, se usados não apresentariam uma esperança razoável de benefícios” (James Rachels, 1997: p. 15).

Mas estas definições não são satisfatórias porque não explicitam a partir de que ponto se poderá considerar algo excessivo. Por exemplo, se um transplante de um rim custar 10,000€, seria excessivo ou não? Talvez se fosse utilizado para transplantar um rim ao Sr. António com 89 anos de idade, que sofre de insuficiência renal e que também tem diabetes, isso seria provavelmente considerado excessivo, portanto, um meio extraordinário; mas suponhamos a mesma operação, mas agora para uma pessoa de 20 anos, na qual a esperança de benefícios seja maior, pois a esperança média de vida é muito maior que a idade que ele tem, então neste ultimo caso o meio utilizado considera-se ordinário.

Com este exemplo não é apenas o carácter excessivo que queremos demonstrar que se altera de caso para caso, mas também que o que é excessivo depende do se seria bom para a vida caso fosse prolongada.

Outro ponto fraco desta perspectiva reside na intenção. Considere-se o seguinte exemplo: um pai educa o seu filho na esperança de que no futuro o seu filho venha a ser um homem respeitado e consciente da vida tal como ela é; e suponha-se outro pai que educa o seu filho porque considera que esse é o seu dever como pai mesmo que não tenha quaisquer expectativas quanto ao seu filho vir tornar-se um bom homem no futuro. Tanto neste caso como em qualquer outro caso em que um médico decida abreviar a vida de um paciente numa terrível agonia e no caso das suas mortes serem inevitáveis, seriam consideradas boas acções independentemente da intenção da pessoa. Com este exemplo tentamos provar que a intenção de alguém não pode ser utilizada para avaliar a acção, mas apenas para avaliar o carácter dessa pessoa. Uma acção é justa ou não dependendo de razões objectivas, tais como o dever e lei, que estão por detrás do acto em si.

O juramento de Hipócrates

Começou por ser feito pelos médicos há cerca de 400 anos a.C.. Contudo, o juramento inicial tem vindo a ser alterado com o passar dos anos, pois muitas partes desse juramento tornaram-se obsoletas devido a diferenças culturais e ,portanto ,foram removidas ou alteradas.

Um dos princípios centrais deste juramento, que podia ser a razão da confiança pública nos médicos, é que profissionalmente estão do lado da vida: a vida deveria ser preservada do mesmo modo que deveria aliviar-se o sofrimento, pelo que as habilidades de um médico nunca deveriam ser usadas para baixar os padrões de saúde do paciente ou para lhe abreviar a morte.

No caso dos seres humanos que se encontram em estado vegetativo, e que perderam as suas capacidades cerebrais, nomeadamente, a ratio (a capacidade humana de raciocínio), os indivíduos já não são considerados seres humanos verdadeiramente vivos. Lembramos as palavras de um cirurgião famoso que dizia que quando o cérebro desaparece é inútil manter mais alguma coisa em funcionamento (o que determina a ocorrência da morte não é a perda da função do cérebro, mas a perda da função cerebral – a “mente”).

Mas se os médicos podem pôr de lado o princípio da vida para interromper a vida ainda por nascer in útero também podem pôr de lado esse mesmo princípio para aprovarem o acto positivo de pôr fim á vida sub-humana in extremis. Ou seja, é ridículo conceber a aprovação ética para uma e não conceber essa mesma aprovação para a outra. Uma das consequências deste facto é expressa por C. Everett Koop da seguinte maneira:

“O paciente já não poderá olhar para o seu médico como o seu advogado em termos de prolongamento da vida – porque quando, na mente desse médico, a vida do paciente estiver a esvair-se, a pessoa doente não tem garantias de que o clínico se aproximará dela no seu papel de preservador da vida; poderá estar a aproximar-se como carrasco” (C. Everett Koop, 1997: p.23).

Diferenciação entre eutanásia activa e eutanásia passiva

A Eutanásia Passiva é considerada mais aceitável do que a activa, quando induzida pelo médico, porque o médico tem como obrigação, numa situação em que não é possível qualquer meio para a cura, ou seja, quando a morte é inevitável, cuidar do seu paciente dando-lhe conforto, de modo a permitir que a Natureza siga o seu curso normal, suspendendo essas medidas inúteis de manutenção de vida.

Mas se nos limitarmos a suspender o tratamento, o paciente pode demorar mais tempo a morrer e, assim, poderá sofrer mais do que numa situação em que fosse aplicada uma acção mais directa, dando-lhe uma injecção letal (Eutanásia Activa).

Se a diferença entre a acção e a omissão, ou por outras palavras, a diferença entre matar e deixar morrer fosse em si mesma uma questão moralmente relevante, deveríamos dizer que a eutanásia passiva era menos repreensível do que a eutanásia activa. Mas isso não é verdade. O resultado final é o mesmo, só os meios são muito diferentes. Na eutanásia passiva, o sofrimento do paciente em questão é prolongado desnecessariamente, enquanto que na eutanásia activa isso não se verifica pois é aplicada uma acção directa e letal. Ainda assim algo de errado se passa: a eutanásia activa é condenada não só por ser ilegal, mas também por ser contrário a tudo aquilo que a profissão médica defende, tal como já referimos anteriormente.

Tal como refere Peter Singer, "as consequências quer de um acto quer de uma omissão serão muitas vezes, em todos os aspectos significativos, indistinguíveis. Por exemplo, omitir a administração de antibióticos a uma criança com pneumonia pode ter consequências não menos fatais que dar a essa criança uma injecção letal” (Peter Singer, 2002: p. 227).

Diferenciação da eutanásia de acordo com a vontade do paciente

Eutanásia voluntária

A eutanásia voluntária é efectuada a pedido da pessoa que tem como desejo a morte. A forma mais habitual é a utilização de uma dose excessiva de um fármaco que é deixada perto da mão do paciente. Outra forma deste tipo de eutanásia é a escolha, quer muito tempo antes quer no momento, de alguém (não obrigatoriamente um médico), para, na incapacidade do paciente, lhe administrar o fármaco.

Eutanásia não voluntária
O ser humano não é capaz de compreender a escolha entre a vida e a morte porque está incapacitado o fazer (não possui a ratio na altura ou a longo prazo) ou porque não formula nenhum pedido. Como refere Peter Singer, “aqueles que são incapazes de dar consentimento incluiriam bebés com doenças incuráveis ou graves deficiências e pessoas que, devido a acidente, doença ou idade avançada, perderam permanentemente a capacidade de compreender as questões em causa, sem terem previamente pedido nem rejeitado a eutanásia efectuada nessas circunstâncias” (Peter Singer, 2002: pp. 199 - 200).

Eutanásia involuntária
Na eutanásia involuntária, a pessoa que se mata é capaz de consentir a sua própria morte, mas não o faz, quer por não lhe terem perguntado, quer porque embora lhe tenham perguntado, ainda assim prefere continuar a viver. Neste caso, matar alguém que não consentiu ser morto apenas se pode chamar de eutanásia quando o motivo para a morte é o desejo de evitar o sofrimento insuportável da pessoa que é morta.

A justificação da eutanásia não voluntária em crianças

Uma das características da eutanásia não voluntária reside no facto de o paciente em questão não formular qualquer pedido ou não possuir a capacidade de raciocínio. Esta situação ocorre nos casos de bebés com graves deficiências (tal como o bebé Houle) ou dos seres humanos mais velhos que sofrem de deficiências mentais profundas que lhes retiraram essa mesma capacidade.

Para Singer, “a diferença entre provocar a morte a bebés deficientes e a bebés normais não reside em qualquer direito à vida que os últimos teriam e os primeiros não, mas em outras considerações acerca do acto de provocar a morte” (Peter Singer, 2002: p. 202). Mas a que tipo de considerações se refere Peter Singer? Como se verifica na maioria dos casos, considerações como a vontade dos pais. Esta vontade varia conforme o estado do bebé em questão, mas também em função do desejo dos pais terem um filho.

Nos dias de hoje, normalmente, os pais planeiam o nascimento do filho para que a partir do nascimento lhe proporcionarem o melhor inicio de vida de acordo com as suas possibilidades quer físicas quer psicológicas, criando afectos que ligam, desde a nascença, o filho aos pais. Mas quando a criança nasce com uma deficiência grave que o impeça de viver uma vida útil e feliz, e ameace não só a felicidade dos pais, mas também a de filhos que possam vir a ter, a situação é bastante diferente:

“Os pais podem lamentar, com bons motivos, que uma tal criança tenha nascido. Nessa eventualidade o efeito que a morte da criança terá nos pais pode constituir uma razão a favor, e não contra a sua morte provocada” (Peter Singer, 2002: p. 203).

Argumentos a favor da eutanásia:

Uma das maiores armas que os apoiantes da eutanásia possuem reside no facto de os mesmos argumentos que apoiam o aborto (actualmente aceite pela lei portuguesa) poderem ser também utilizados para apoiar a eutanásia.

Os indivíduos autónomos têm autoridade moral sobre as suas vidas inclusive para o suicídio, incluindo a assistência de quem pode assistir a esse “tirar a vida” sem dor e com eficiência.

Nenhuma pessoa deve ser coagida a suportar a sobrecarga de dor e de sofrimento: quem as ajudar estará a agir eticamente por compaixão e a respeitar a sua autonomia, já que estará a reconhecer os desgostos do outro, a experenciar a sua dor.

A possibilidade de se recorrer à eutanásia traz conforto aos doentes mesmo sem necessidade de ser praticada. Aliás constitui uma característica essencial de um direito: podemos, se quisermos, a ele renunciar.

Considerações finais

Quanto á eutanásia e geral acreditamos que, em casos raros, existam pacientes a quem foram diagnosticadas doenças incuráveis, por médicos competentes, e que mesmo assim sobreviveram e gozaram anos de boa saúde. Mas em nada este número pode ser comparado com a quantidade de dor e aflição que sofreram e sofrerão os pacientes que se encontram em fase terminal, no caso da eutanásia não ser legalizada. Além disso, com a actual lei estão a ser desperdiçados meios para manter vivos determinados indivíduos cujas consequências são é apenas prolongamento da sua dor e o desperdício de meios que doutra forma poderiam ser usados para casos mais úteis, isto é, para casos em que o seu uso tivesse mais benefícios.

Quanto ao bebé Houle em particular, consideramos insensato e imoral que o Juiz do Tribunal Superior não apoie a vontade dos pais de por em prática a eutanásia passiva e não voluntária porque a vida desse bebé, e, consequentemente, a vida dos seus pais, independentemente do sucesso ou insucesso da operação, seria acompanhada de sofrimento e angústia em muito superior às consequências da sua morte.

Bibliografia

Baird, Robert M; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora
Coleman, Gerald D. "Suicídio Assistido: uma perspectiva ética" in Baird, Robert M; Rosanbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 123-132
Fletcher, Joseph, "Santidade da vida por oposição a qualidade de vida" in Baird, Robert M; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 101-113
Koop, C. Everett, "O direito de morrer: os dilemas morais" in Baird, Robert M; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia as, questões morais Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 83-100
Rachels, James, "Eutanásia activa e passiva" in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais Vendas. Novas: Bertrand Editora, pp. 53-61
Rachels, James, "Mais distinções irrelevantes" in Baird, Robert M.; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp.73-82
Singer, Peter. " Tirar a vida: os seres humanos" in Singer, Peter (2002). Ética Prática. Lisboa: Gradiva, pp. 195-238
Sullivan, Thomas D., "Eutanásia activa e passiva: uma distinção irrelevante?” in Baird, Robert M; Rosenbaum, Stuart E. (1997). Eutanásia: as questões morais. Vendas Novas: Bertrand Editora, pp. 63-71

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte V)

«4. Princípios liberais e direitos de grupo

Até agora limitei-me a descrever as práticas históricas das democracias liberais relativamente aos grupos etnoculturais. Virtualmente todas as democracias ocidentais têm seguido o mesmo padrão: o grupo nacional maioritário procurou estender a sua língua e cultura através do território do estado. Os grupos minoritários aceitaram normalmente a integração nessa cultura comum, embora em geral as minorias nacionais lhe tenham resistido e tenham lutado para manter o seu estatuto como sociedade separada, autónoma e culturalmente distinta. Mas como encaixa este padrão histórico nos princípios democráticos liberais? Como se relacionam estas práticas com os compromissos fundacionais do liberalismo relativamente aos direitos e às liberdades individuais? Terá sido incorrecto por parte das culturas maioritárias o comprometimento com este tipo de projectos de construção nacional? Como poderão responder os estados liberais às exigências de auto-governo apresentadas pelas minorias?

Creio que o projecto histórico de construção nacional impulsionado pelo grupo maioritário em cada estado era compatível com os direitos liberais. Como defenderei mais adiante, os princípios liberais, em princípio, encontram o seu desenvolvimento mais idóneo no seio de unidades nacionais coesas, pelo que incentivar a integração numa cultura comum foi uma maneira legítima de promover valores liberais importantes. Contudo, pelas mesmas razões, os liberais deveriam igualmente reconhecer a realidade e legitimidade dos nacionalismos minoritários. Qualquer estado que contenha uma minoria nacional considerável deve aceitar a sua condição de estado multinacional. A existência de minorias nacionais deveria assim ser reconhecida e apoiada por acordos constitucionais e pelo debate político quotidiano.

Esta ideia não é nova. Pelo contrário, inúmeros teóricos liberais têm defendido que os princípios de liberdade individual, justiça social e democracia política, só podem ser alcançados no interior de unidades nacionais. Por exemplo, uma convicção compartilhada pelo liberalismo do século XIX foi que os direitos nacionais de auto-governo constituíam um complemento essencial dos direitos individuais, já que “a causa da liberdade tem a sua base e afirma as suas raízes na autonomia do grupo nacional”[1]. A promoção da autonomia nacional “oferece a realização de uma ‘área de liberdade’ ou, dito de outro modo, de uma sociedade livre para o homem livre”[2].

De modo semelhante, John Stuart Mill defendeu que as instituições livres são “quase impossíveis” se os cidadãos não compartilham de uma língua e de uma identidade nacional comum:

Entre gentes sem sentimento de companheirismo, especialmente se lêem e falam línguas distintas, a unidade de opinião pública necessária para o funcionamento das instituições representativas não pode existir […]. Em geral, é uma condição necessária para as instituições livres que as demarcações dos governos coincidam basicamente com as dos nacionalistas.[3]

Para liberais como Mill, a democracia é o governo “do povo”, mas o auto-governo só será possível se “o povo” é “um povo” (uma nação). Os membros de uma democracia devem compartilhar um sentimento de lealdade política, e a nacionalidade comum era considerada uma pré-condição dessa lealdade. Assim, T. H. Green defendeu que a democracia liberal só é possível se o povo se sente unido ao Estado por “vínculos derivados de um habitáculo comum e das suas associações, das recordações, tradições e costumes compartilhados e da forma comum de sentir e pensar que encarna uma língua comum e, mais ainda, uma literatura comum”
[4]. Por conseguinte, muitos liberais sentiram que uma cultura comum era essencial para a liberdade individual e para a democracia. Não acreditavam que todas as nações deviam formar estados independentes, mas mantiveram que os grupos nacionais devem exercer algum grau de autonomia política no interior de um estado multinacional.

Qual a conexão exacta entre os valores liberais e a autonomia nacional? O compromisso liberal com a autonomia nacional assenta em parte sobre considerações puramente funcionais. Supõe-se que uma identidade nacional comum promove o tipo de confiança necessária para a cooperação democrática e o tipo de solidariedade que as pessoas precisam para aceitar os fardos da justiça liberal. Daí que as unidades políticas com base nacional tenham tido uma maior probabilidade de se dotarem de governos estáveis e eficientes[5]. Mas também existe uma razão mais profunda: a crença que a participação numa cultura nacional dá sentido à liberdade individual. Deste ponto de vista, a liberdade implica a escolha entre opções, e a nossa cultura societária não só proporciona essas opções, como também as constrói significativamente para nós.

A conexão entre a escolha individual e a pertença cultural é importante, embora difícil de articular. A ideia básica é a seguinte: as pessoas tomam decisões entre as práticas sociais que as rodeiam de acordo com as suas crenças sobre o valor dessas práticas. Crer no valor de uma prática é, em primeiro lugar, uma questão de compreensão dos significados a ela vinculados pela nossa cultura. Salientei anteriormente que as culturas societárias implicam “um vocabulário compartilhado de tradição e convenção” que subjaz a toda uma série de práticas sociais e institucionais[6]. Portanto, compreender o significado de uma prática social requer a compreensão desse “vocabulário compartilhado”, quer dizer, a compreensão da língua e da história que constituem esse vocabulário. Que uma trama de acção possua ou não esse significado para nós depende do facto da nossa língua nos plasmar vividamente o sentido dessa actividade e do modo como o faz. A forma como a língua nos plasma vividamente essas actividades é configurada pela nossa história, pelas nossas “tradições e convenções”. Compreender essas narrativas culturais é uma pré-condição para realizar juízos inteligentes sobre a forma de conduzir as nossas vidas. Neste sentido, para citar Ronald Dworkin, a nossa cultura não só nos garante opções, mas também “garante as lentes através das quais identificamos as experiências como valiosas”[7].

O que se segue disto tudo? De acordo com Dworkin, devemos proteger a nossa cultura do “enfraquecimento ou da degradação cultural”. A sobrevivência de uma cultura não está garantida, e quando se vê ameaçada pelo enfraquecimento ou pela degradação, devemos reagir para a proteger. As culturas não são valiosas por si mesmas, mas porque as pessoas só podem ter acesso a uma gama de opções plenas de significado através do acesso a uma cultura societária. Dworkin conclui a sua discussão afirmando que “herdamos uma estrutura cultural e temos um certo dever, por pura justiça, de legar essa estrutura pelo menos tão rica quanto a encontramos”[8].

Nesta passagem e em algumas outras, Dworkin fala de “estruturas culturais”. Este é um termo potencialmente equívoco, uma vez que sugere uma imagem excessivamente formal e rígida daquilo que é um fenómeno bastante difuso e indeterminado. As culturas não têm um centro fixo nem margens precisas. Contudo, a sua tese central é, na minha opinião, bastante coerente. A disponibilidade de opções significativas depende do acesso a uma cultura societária e a compreensão da história e a língua dessa cultura, do seu “vocabulário compartilhado de tradição e convenção”[9].

Por esta razão, o compromisso fundacional liberal com a liberdade individual pode estender-se para dar lugar a um profundo compromisso liberal com a viabilidade duradoura e o florescimento das culturas societárias. Nestes estados multinacionais, isto implicará inevitavelmente certos direitos de grupo para as minorias nacionais (por exemplo, direitos linguísticos e de auto-governo). Estes direitos e poderes garantem que as minorias nacionais sejam capazes de manter e desenvolver as suas culturas societárias num futuro indefinido.

Esta imagem da relação existente entre a liberdade individual e a pertença a uma cultura nacional pode encontrar-se em vários autores liberais. Por exemplo, Avishai Margalit e Joseph Raz defendem que a pertença a uma cultura societária é crucial para o bem-estar das pessoas, já que a pertença cultural proporciona opções com significado, no sentido em que “a familiaridade com uma cultura determina as margens do imaginável”. Daí que se uma cultura decai ou é discriminada, “as opções e oportunidades abertas aos seus membros diminuem, tornando-se menos atraentes pelo que será menor a probabilidade de que seja continuada”[10]. Por esta razão, os grupos nacionais têm prima facie direito ao auto-governo, embora não necessariamente a um estado independente. Outros teóricos liberais contemporâneos formularam argumentos similares vinculando a liberdade individual à autonomia nacional[11].

Outros autores liberais adoptam explicitamente uma posição similar. Por exemplo, John Rawls afirma:

Normalmente, abandonar a própria cultura é um passo importante: implica abandonar a sociedade e a cultura em que fomos educados, a sociedade e a cultura cuja língua usamos na fala e no pensamento para nos expressarmos e nos entendermos a nós próprios, as nossas ambições, objectivos e valores, a sociedade e a cultura de cuja história, costumes e convenções dependemos para encontrar o nosso lugar no mundo social. Em grande medida, afirmamos a nossa sociedade e a nossa cultura e temos dela um conhecimento íntimo e indizível, mesmo quando a podemos questionar em boa parte ou até rejeitá-la. Portanto, a autoridade do governo não pode ser livremente aceite se pensarmos que os vínculos da sociedade e da cultura, da história e da posição social de origem começam desde cedo a configurar a nossa vida e são normalmente tão fortes que o direito à imigração (correctamente regulado) não é suficiente para provocar a aceitação livre da sua autoridade, politicamente falando, da mesma forma que a liberdade de consciência é suficiente para provocar a aceitação livre da autoridade eclesiástica.[12]

Devido a esses laços com a “língua que usamos na fala e no pensamento para nos expressarmos e nos entendermos a nós próprios”, os vínculos culturais “são normalmente demasiado fortes para serem abandonados, e isto não é um facto deplorável”. Por isso, com o fim de desenvolver uma teoria da justiça, deveríamos assumir que as “pessoas nascem e esperam dela que leve uma vida completa” no seio da mesma “sociedade e cultura”
[13].

Rawls apresenta isto como um argumento sobre a dificuldade para abandonar a própria comunidade política. Mas este argumento não repousa sobre o valor de vínculos especificamente políticos (por exemplo, os vínculos com o próprio governo e os concidadãos). Mas repousa isso sim sobre o valor dos vínculos culturais (por exemplo, dos vínculos com a própria língua e história) e os limites culturais não coincidem com os políticos. Por exemplo, alguém que trocasse a Alemanha de Leste pela Alemanha Ocidental em 1950 não estaria a abandonar os vínculos linguísticos e culturais enfatizados por Rawls, embora estivesse a cruzar fronteiras estatais. Contudo, um francófono que trocasse a cidade de Québec por Toronto ou um porto-riquenho que trocasse San Juan por Chicago estariam a quebrar esses vínculos, ainda que permanecessem no mesmo país.

Segundo Rawls, então, os vínculos pessoais com a cultura são, em geral, demasiado fortes para serem rescindidos, algo que não se deve lamentar[14]. Deveríamos operar com base na presunção de que as pessoas querem viver e trabalhar na sua própria cultura societária e que esta lhes proporcionará o contexto para exercerem a sua liberdade e escolha pessoal.

Em todos estes autores, o valor liberal básico da liberdade pessoal é visto em íntima relação com a pertença a uma cultura nacional. Dito de outro modo, o ideal liberal é uma sociedade de indivíduos livres e iguais. Mas qual será a “sociedade relevante”? Para a maioria das pessoas parece ser a sua nação. O tipo de liberdade e igualdade que mais valorizam e mais podem usar é a liberdade e a igualdade no interior da sua própria cultura societária, e estão dispostos a renunciar a uma maior liberdade e igualdade para assegurar a continuidade da existência da sua nação. Por exemplo, poucas pessoas apoiam um sistema de fronteiras abertas em que as pessoas podem cruzar livremente as fronteiras e fixar-se, trabalhar e votar em qualquer país que desejassem. Um tal sistema incrementaria drasticamente o âmbito em que as pessoas seriam tratadas como livres e iguais. Contudo, umas fronteiras abertas também tornariam mais provável que a própria comunidade nacional se visse superada pela afluência de membros de outras culturas e que as pessoas fossem incapazes de assegurar a sua sobrevivência como cultura nacional distinta. Por conseguinte, oferece-nos uma alternativa, por um lado, entre a maior mobilidade e um espaço mais amplo no qual as pessoas sejam livres e iguais e, por outro, uma mobilidade mais reduzida, embora com uma maior segurança de que as pessoas possam continuar a ser membros livres e iguais da sua própria cultura nacional. A maioria das pessoas nas democracias liberais apoia claramente a segunda opção. Preferem ser livres e iguais no interior da sua própria nação, mesmo que isso signifique menos liberdade para trabalhar e votar do que noutras partes, do que serem livres e iguais como cidadãos do mundo, se isto significa uma possibilidade menor de viver e trabalhar na sua própria língua e cultura.
A maioria dos teóricos da tradição liberal tem estado implicitamente de acordo com isto. Poucos teóricos importantes apoiaram a abertura de fronteiras ou consideraram-no seriamente. Em geral, aceitaram (de facto, deram frequentemente por adquirido) que o tipo de liberdade e de igualdade que mais importa às pessoas é a liberdade e a igualdade no interior da própria cultura societária. Como Rawls, assumem que “as pessoas nascem e esperam viver uma vida completa” no interior de uma mesma “sociedade e cultura” e que é isto que define o âmbito em que as pessoas devem ser livres e iguais[15].

Em resumo, os teóricos liberais aceitam em geral que as culturas ou nações são unidades básicas da teoria política liberal. Neste sentido, como salientou Yael Tamir, “a maioria dos liberais são nacionalistas liberais”, quer dizer, os objectivos liberais alcançam-se no seio e através de uma cultura societária ou nação liberalizada”[16]
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[1] Ernest Baker, National Character and the Factors in its formation, London, Methuen, 1948, p. 248; cfr. Joseph Manzini, The Duties of Man and other Essays, London, J. M., 1907, pp. 51-2, 176-77.
[2] R. F. A. Hoernlé, South African Native Policy and the Liberal Spirit, City of Cabo, Lovedale Press, 1939, p. 181.
[3] J. S. Mill, Considerations on Representative Government, in Utilitarism, Liberty and Representative Government, H. Acton (ed.); J. M. Dent, 1972, pp. 230 e 233.
[4] T. H. Green, Lectures on the Principles of Political Obligation, London, Longman´s, 1941. pp. 130-1.
[5] Para uma exploração e uma defesa detalhada desta afirmação, veja-se David Miller, On Nationality, Oxford, OUP, 1995.
[6] Dworkin, Matter of Principle, p. 231.
[7] Ibid., pp. 228.
[8] Ibid., pp. 230-3.
[9] Ibid., pp. 228 e 231.
[10] Margalit e Raz, National Self-Determination, p. 449.
[11] Por exemplo, Tamir, Liberal Nationalism. Elaborei e defendi esta posição em Multicultural Citizenship, cap. 5.
[12] John Rawls, Political Liberalism, New York, Columbia University Press, 1933, p. 222.
[13] Ibid., p. 277.
[14] Vale a pena recordar que, embora muitos imigrantes floresçam no seu novo país, existe um factor selectivo quanto a isso. Quer dizer, aqueles que decidem desenraizar-se são com maior probabilidade as pessoas que têm um vínculo psicológico mais frágil com a sua velha cultura e um maior desejo e determinação para triunfar em qualquer outro lado. Não podemos assumir a priori que representam a regra em termos de adaptabilidade cultural.
[15] Rawls, Political Liberalism, p. 27. É claro que se a existência nacional não estiver ameaçada, as pessoas favoreceram uma maior mobilidade, já que a capacidade para se mover e trabalhar noutras culturas é uma opção valiosa para algumas pessoas em determinadas circunstâncias.
[16] Tamir, Liberal Nationalism. Elaborei e defendi esta posição em Multicultural Citizenship, cap. 5.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Harry Frankfurt, "A Igualdade como Ideal Moral" (Parte VI)

«VII
O que significa, neste contexto, que uma pessoa tenha o suficiente? Uma coisa que poderá significar é que mais seria demasiado: uma quantidade maior faria com que a vida de uma pessoa fosse desagradável ou prejudicial, ou, de alguma outra forma, pouco gratificante. Muitas vezes, isto é o que pensam as pessoas quando dizem coisas como “Já tive o suficiente!” ou “Isto é suficiente!”. A ideia que transmitem expressões como estas é que se chegou a um limite, além do qual não é conveniente continuar. Por outro lado, a afirmação de que uma pessoa tem o suficiente também pode querer dizer apenas que se alcançou um certo requisito ou padrão, sem que isso implique algo mau. Com frequência é a isto que uma pessoa se refere quando diz algo como “Isto deveria ser suficiente”. Enunciados como este determinam que a quantidade indicada é suficiente ao mesmo tempo que deixam em aberto a possibilidade que uma quantidade superior também pode ser aceitável.

Na teoria da suficiência, o uso da noção de suficiente tem que ver com alcançar um padrão mais do que com chegar a um limite. Dizer que uma pessoa tem dinheiro suficiente significa dizer que está conformada ou que é razoável que esteja conformada com o facto de não ter mais dinheiro do aquele que tem. E, por sua vez, dizer isto é dizer algo como seguinte: a pessoa não considera (ou não o pode razoavelmente fazer) que qualquer coisa (se é que há algo) que seja insatisfatória ou angustiante na sua vida se deva ao facto de ter pouco dinheiro. Por outras palavras, se uma pessoa está conformada (ou deveria razoavelmente estar) com a quantidade de dinheiro que tem, então, na medida em que esteja infeliz com a sua vida ou tenha razões para estar, não supõe (ou razoavelmente não o deve fazer) que mais dinheiro permitir-lhe-ia – seja como condição suficiente, seja como condição necessária – ser (ou ter razão para o ser) significativamente menos infeliz com ela[1].

É essencial entender que ter dinheiro suficiente é diferente de ter apenas o suficiente para viver ou o suficiente para que a nossa vida seja marginalmente tolerável. As pessoas em geral não estão conformadas com o facto de viverem no limite. A questão central da teoria da suficiência não é que a única consideração moralmente relevante relativamente à distribuição do dinheiro é a questão de saber se as pessoas têm o suficiente para evitar a miséria económica. Uma pessoa da qual se poderia dizer, de forma natural e apropriada, que tem apenas o suficiente, na realidade não tem para o que quer que seja o suficiente, considerando o padrão invocado na teoria da suficiência.

Existem dois tipos distintos de circunstâncias em que a quantidade de dinheiro que uma pessoa tem é suficiente; quer dizer, em que mais dinheiro não a fará significativamente menos infeliz. Por um lado, pode ser que a pessoa não esteja angustiada nem insatisfeita com a sua vida. Por outro, pode ser que, apesar da pessoa ser infeliz com a sua vida, as dificuldades que causam a infelicidade não possam ser aliviadas com mais dinheiro. As circunstâncias deste segundo tipo imperam quando o problema com a vida da pessoa tem que ver com bens que não são de carácter económico, tais como o amor, a sensação de que a vida tem sentido, a satisfação com o próprio carácter, etc. Estes são bens que o dinheiro não pode comprar; mais ainda, são bens para os quais nenhuma das coisas que o dinheiro pode comprar poder sequer servir como um substituto adequado. Há vezes em que certamente os bens não económicos podem ser obtidos ou desfrutados apenas (ou com maior facilidade) por alguém que tem uma certa quantidade de dinheiro. Todavia, a pessoa que está angustiada com a sua vida e, por sua vez, conformada com a sua situação económica, pode já ter essa quantidade de dinheiro.

É possível que alguém que esteja conformado com a quantidade de dinheiro que tem também possa conformar-se com uma quantidade de dinheiro ainda maior. Dado que ter dinheiro suficiente não significa estar no limite além do qual mais dinheiro seria necessariamente indesejável, seria um erro supor que para uma pessoa que já tem dinheiro suficiente a utilidade marginal do dinheiro deva ser negativa ou zero. Ainda que, por hipótese, esta pessoa não esteja angustiada com a sua vida, uma vez que aquilo se poderia obter com mais dinheiro não lhe faz falta, continua a ser possível que desfrute do facto de ter algumas dessas coisas. Não o fariam menos infeliz, mas também não alterariam a sua vida nem de forma alguma o grau de conformidade com ela, mas poderiam dar-lhe prazer. Se fosse esse o caso, então a sua vida, neste aspecto, seria melhor com mais dinheiro do que sem ele. Portanto, a utilidade marginal do dinheiro continuaria a ser positiva para ela.

Dizer que uma pessoa está conformada com a quantidade de dinheiro que tem não implica, então, que não faria sentido ter mais. Assim, alguém com dinheiro suficiente poderia estar bastante disposto a aceitar maiores benefícios económicos. Com efeito, a partir da suposição de que uma pessoa está conformada com a quantidade de dinheiro que tem, não pode sequer deduzir-se que não preferiria ter mais. E é até possível que estivesse na realidade disposta a sacrificar certas coisas que valorizasse (por exemplo, parte do seu tempo livre) para obter mais dinheiro.

Agora, como poderá tudo isto ser compatível com a afirmação de que a pessoa está conformada com o que tem? O que impossibilita estar conformada com uma dada quantidade de dinheiro, se não o facto de preferir ter mais dinheiro, estar disposto a ter mais, estar satisfeito por o receber ou, até, aceitar fazer sacrifícios para ter mais? Impossibilita que a pessoa tenha um interesse activo em obter mais. Uma pessoa conformada considera que ter mais dinheiro não é essencial para estar satisfeita com a sua vida. O facto de estar conformada é coerente com o facto de reconhecer que as suas circunstâncias económicas poderiam melhorar e que a sua vida poderia, em consequência, ser melhor do que é. Todavia, esta possibilidade não é importante para ela. Simplesmente não está interessada em melhorar a sua situação, no que ao dinheiro diz respeito. A sua atenção e o seu interesse não estão vivamente comprometidos com os benefícios que estariam disponíveis para ela se tivesse mais dinheiro. Simplesmente não reage suficientemente à sua atracção. Não suscitam nela qualquer interesse particularmente ansioso ou inquietante, embora reconheça que desfrutaria de outros benefícios se os recebesse.

Em qualquer caso, suponhamos que o nível de satisfação que lhe permitem obter as suas circunstâncias económicas actuais é suficientemente alto para satisfazer as suas expectativas de vida. Isto não depende, na essência, de quanta utilidade ou satisfação provenha das suas diversas actividades e experiências. Mais ainda, depende decididamente da sua atitude relativamente à circunstância de receber tudo isto. As experiências satisfatórias que uma pessoa tem são uma coisa. Outra muito diferente é a questão de saber se está satisfeita com o facto da sua vida incluir apenas essas experiências. Se bem que seja possível que outras circunstâncias viáveis lhe pudessem proporcionar maior satisfação, pode ser que esteja completamente satisfeita com o grau de satisfação que actualmente desfruta. Embora saiba que em geral poderia obter uma maior satisfação, não experimenta a incomodidade ou a ambição que a inclinariam a procurá-la. Algumas pessoas sentem que as suas vidas são suficientemente boas, e não consideram importante a questão de saber se poderiam ser melhores do que realmente são.

O facto de uma pessoa não possuir um interesse activo relativamente à obtenção de algo não significa, por isso, que prefira não o ter. É este o motivo pelo qual a pessoa conformada pode, sem que haja qualquer incoerência nisso, aceitar ou receber de bom grado melhorias na sua situação, e a razão pela qual pode até estar disposta a realizar pequenos gastos para a melhorar. O facto de estar conformada apenas significa que a possibilidade de melhorar a sua situação não é importante para ela. Apenas implica, por outras palavras, que não está aborrecida com as suas circunstâncias, que não está ansiosa por melhorá-las nem determinada a fazê-lo, e que não desenvolve qualquer iniciativa relevante para isso.

Pode parecer que não exista uma base razoável para aceitar menos satisfação quando se poderia ter mais; que, portanto, a própria racionalidade implica a maximização e, em consequência, que uma pessoa que se negue a maximizar a quantidade de satisfação que há na sua vida não estará a agir racionalmente. Essa pessoa não pode, assim, oferecer como razão para recusar-se a procurar uma satisfação maior o facto dos custos da sua procura serem demasiado altos, e se fosse essa a sua razão, então, no fim de contas, estaria claramente a tratar de maximizar a sua satisfação. Contudo, que outra boa razão poderia ter para deixar passar uma oportunidade para obter mais satisfação? De facto, é possível que tenha uma razão muito boa para isso, a saber, o facto de estar satisfeita com a quantidade de satisfação que já tem. Estar satisfeito com o estado das coisas é, sem dúvida, uma razão excelente para não possuir interesse para o alterar. Portanto, uma pessoa que efectivamente esteja satisfeita com a sua vida tal como é, não pode ser criticada com base no facto de não possuir uma boa razão para recusar-se a melhorá-la.

Poderia até estar aberta à crítica baseada na ideia de que não deveria estar satisfeita, o que significaria que, de alguma maneira, seria pouco razoável ou impróprio, ou mesmo incorrecto que se sentisse satisfeita com menos satisfação do que aquela que poderia obter. Todavia, o que poderia justificar esta crítica? Por acaso existirá alguma razão decisiva para insistir que uma pessoa deveria ser tão difícil de satisfazer? Suponhamos que um homem ama de forma profunda e feliz uma mulher que é completamente respeitável. Em geral, não o criticamos por isso só porque pensamos que poderia ter conseguido melhor. Mais ainda, o facto de sentimos que seria inapropriado criticá-lo por essa razão não se deve necessariamente à crença de que tratar de procurar uma mulher mais desejável ou mais merecedora poderia acabar por dar mais trabalhado do que valeria a pena. Mais ainda, pode reflectir o nosso reconhecimento de que o desejo de sermos felizes, estar conformados ou satisfeitos com a vida, é o desejo de alcançar um grau de satisfação satisfatório e não equivale, em si mesmo, ao desejo de que a satisfação seja maior.

O facto de estar satisfeito com uma dada situação não equivale a preferi-la a todas as outras. Se uma pessoa enfrenta uma escolha entre o menos e o mais desejável, então seria inequivocamente irracional que preferisse o menos desejável. Contudo, uma pessoa pode estar satisfeita sem ter feito em absoluto estas comparações. Também seria necessariamente irracional ou pouco razoável que uma pessoa omitisse o recusasse fazer comparações entre a sua própria situação e as alternativas possíveis. Também se deve ao facto de que se alguém está satisfeito com o modo de ser das coisas, talvez não tenha motivo para considerar de que outra maneira poderiam ser[2].

O conformismo poderia ser uma função da monotonia ou da cobardia excessiva. O facto de uma pessoa estar livre tanto de ressentimento como de ambição pode dever-se ao facto de possuir um carácter servil ou que a sua vitalidade se encontre silenciada por uma espécie de lassidão negligente. É possível que alguém esteja conformado, por assim dizer, simplesmente por defeito. Não obstante, talvez uma pessoa que esteja conformada com recursos que proporcionam menos utilidades do que a que poderiam obter não seja nem irresponsável nem indolente, nem possua uma imaginação deficiente. Pelo contrário, a sua decisão de estar conformado com esses recursos – por outras palavras, de adoptar uma atitude de aceitação disposta relativamente ao facto de ter o que o que tem – pode basear-se numa avaliação conscienciosa, inteligente e profunda das circunstâncias da sua vida.

Não é imprescindível que essa avaliação inclua uma comparação extrínseca das circunstâncias da pessoa com as alternativas a que razoavelmente poderia aspirar, como deveria fazê-lo se o conformismo só fosse razoável quando baseado na avaliação de que se havia maximizado o desfruto de possíveis benefícios. Se alguém estiver menos interessado no facto das suas circunstâncias lhe permitirem viver o melhor possível do que no facto de lhe permitirem viver de forma satisfatória, poderia seguramente dedicar por completo a sua avaliação a uma apreciação intrínseca da sua vida. Então, talvez reconheça que as suas circunstâncias o conduzem a não sentir ressentimento nem pesar, nem ver-se atraído pela mudança e que, com base na compreensão de si mesmo e do que é importante para si, aprova a sua verdadeira disposição para estar conformado com o estado de coisas. Nesse caso, não está em causa a recusa da possibilidade de melhorar as suas circunstâncias porque acredita que, na verdade, nada há a ganhar com isso. Trata-se isso sim do facto desta possibilidade, por mais viável que possa ser, não despertar realmente a sua atenção activa nem suscitar qualquer interesse vívido[3]
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[1] Dentro dos limites da minha análise, não importa que ponto de vista se assuma relativamente à questão relevante sobre se o que conta é a atitude que uma pessoa na realidade tem ou a atitude que seria razoável ter. Para ser breve, deixarei de me referir a partir de agora a esta última alternativa.
[2] Pense-se no sábio adágio: “ Se não está roto, não o consertes”.
[3] As pessoas sabem adaptar os seus desejos às suas circunstâncias. Existe o perigo de que o mero aborrecimento ou o interesse em evitar a frustração e o conflito as conduza a conformar-se com demasiado pouco. Por certo, não se pode supor que a vida de alguém seja genuinamente satisfatória, ou que é razoável que a pessoa esteja satisfeita com ela apenas porque não se queixe. Por outro lado, também não se pode supor que quando uma pessoa tenha acomodado os seus desejos às suas circunstâncias, isso seja, em si mesmo, a prova de que algo saiu mal.