domingo, 4 de maio de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte I)

«Diversos teóricos têm apresentado e defendido recentemente uma concepção de democracia chamada democracia deliberativa. A sua tese é a de que um processo de tomada de decisão democrático deve ser fundamentado num processo substantivo de deliberação pública, no qual argumentos a favor e contra leis e políticas são apresentados em função da sua contribuição para o bem comum dos cidadãos e a justiça da sociedade política. Esta concepção deve ser entendida em contraste com a concepção pluralista dos grupos de interesses e a concepção elitista de democracia. Embora muitos tenham proclamado a sua adesão à ideia de que a deliberação pública deve desempenhar um papel maior numa sociedade democrática, poucos têm oferecido uma explicação clara da importância que a deliberação tem para a democracia. Este ensaio fornece uma explicação do valor e da importância que a deliberação pública tem na democracia. O seu objectivo principal é estabelecer que enquanto a deliberação pública per se possui um valor exclusivamente instrumental no aperfeiçoamento da qualidade das decisões na democracia, a igualdade no processo de deliberação pública possui um valor intrínseco fundado nas exigências de justiça. Na segunda parte deste ensaio, defenderei que a principal concepção oposta da importância da deliberação pública na democracia, a concepção justificatória elaborada por Joshua Cohen, fracassa na tentativa de fornecer uma explicação cogente sobre a importância da deliberação pública para a democracia.
Primeiro, apresento três tipos diferentes do valor que a deliberação pública pode ter no processo de tomada de decisão política. Segundo, descrevo três teses centrais sobre a importância da deliberação pública para os processos democráticos. Terceiro, defendo a afirmação de que a deliberação pública possui essencialmente um valor instrumental para o processo de tomada de decisão democrática: constitui uma contribuição importante para a capacidade das democracias produzirem resultados justos. Quarto, defenderei que a igualdade no processo de deliberação pública é intrinsecamente justa. Assim, embora a deliberação pública seja instrumentalmente valiosa, um processo justo de deliberação pública deve ser estruturado de um modo igualitário. Quinto, defenderei que a tentativa de Cohen explicar o valor da deliberação pública não pode ser sustentada e que os defensores da democracia deliberativa devem adoptar uma explicação mista do valor da deliberação pública.

Três tipos de valor da deliberação

A deliberação pública transforma, modifica e esclarece as crenças e as preferências dos cidadãos de uma sociedade política. Quando e por que será esse processo valioso? Há três tipos de valor que a deliberação pública deve ter. Em primeiro lugar, a deliberação pública pode ser valiosa por causa dos seus resultados. Esperam-se geralmente três tipos de resultados da democracia deliberativa. Um resultado será o de que a deliberação pública geralmente melhora a qualidade da legislação através do aperfeiçoamento da compreensão que os cidadãos têm sobre a sua sociedade e sobre os princípios morais que a devem regular. Sociedades que experimentam um grau considerável de discussão de boa-fé e de debate racional entre os tdos os cidadãos sobre os méritos de propostas alternativas tendem a ser mais justas ou a proteger melhor a liberdade. Aqui, a justiça das leis e das instituições sociais pode ser ampliada através do processo de discussão. Um segundo resultado é o de que as leis dessas sociedades podem tender a parecer frequetemente mais bem justificadas, do ponto de vista racional, aos olhos dos seus cidadãos do que naquelas sociedades em que aquelas não passaram por um processo intensivo de deliberação sobre a legislação. Diz-se frequentemente que a deliberação conduz a um acordo racional entre os cidadãos sobre os méritos da legislação. Neste caso, a legitimidade da sociedade é ampliada pelo processo de deliberação. Um terceiro resultado é o de que são aperfeiçoadas certas qualidades desejáveis nos cidadãos quando têm de participar num processo de deliberação. Muitos acreditam que as pessoas que participam frequentemente num processo de deliberação enquanto cidadãos livres e iguais estão mais aptas para desenvolver as características da autonomia, racionalidade e moralidade. Neste caso, as virtudes dos cidadãos são ampliadas pelo processo
[1].
É importante enfatizar a independência dos valores da justiça, legitimidade e virtude em relação ao processo de deliberação, o qual é pensado como sendo causalmente responsável pela sua realização. Rousseau parece ter pensado que seria menos provável que tais valores surgissem numa sociedade em que a deliberação pública desempenhasse um papel na passagem da legislação
[2]. Outros defendem que a discussão pública apenas diminui o acordo em matérias de princípio e nas políticas, enfraquecendo a legitimidade das instituições sociais. Não pretendo apoiar estas afirmações, mas enfatizar a ideia de que os valores discutidos em cima são, quando muito, resultados contingentes da deliberação pública. Eles fundamentam apenas um valor instrumental da deliberação pública.
Em segundo lugar, a deliberação pública pode ter um valor intrínseco, de modo que valha a pena em si mesmo uma pessoa ou sociedade passar por um processo de deliberação bem conduzido antes de tomar uma decisão. Uma primeira versão disto é que a participação na deliberação pública é uma parte essencial da vida boa de um indivíduo. Esse valor é independente dos resultados da deliberação
[3]. Uma segunda versão da abordagem do valor intrínseco, que receberá maior atenção neste ensaio, será a ideia de que a sociedade na qual os indivíduos deliberam publicamente antes de tomar as decisões incorpora um certo tipo de respeito e preocupação mútua entre os cidadãos. À medida que o respeito e a consideração mútuas são exigidos pela justiça, é intrinsecamente importante que um grupo de pessoas se trate entre si deste modo. A ideia é a que cada um tem o direito de participar num processo de deliberação entre pessoas livres e iguais. Defenderei a seguir uma versão particular desta ideia. No entanto, um aspecto a ser salientado é o que, embora estes valores intrínsecos possam conferir algum valor aos resultados do processo de tomada de decisão (a decisão é tomada de modo igualitário), a sua presença é compatível com a existência de padrões independentes para avaliar os resultados que competem com os valores procedimentais envolvidos no modo particular de apresentar os resultados. Por essa razão, será possível atribuir ao processo de deliberação pública tanto um valor instrumental como um valor intrínseco.
Um terceiro modo segundo o qual a deliberação pode ser considerada valiosa é quando a vemos como uma condição de justificação política. Nesta versão, um processo de deliberação, adequadamente constrangido, será necessário e suficiente para a justificação dos resultados do processo. Os resultados são justificados porque foram produzidos de um certo modo. Não há, segundo esta abordagem, padrões independentes para avaliar os resultados: os padrões para avaliar instituições são inteiramente elaborados no interior de um processo de deliberação entre cidadãos livres e iguais.

Três teses sobre a importância da deliberação pública na democracia
Há três teses sobre a importância da deliberação pública na democracia. Cada uma delas pode aplicar-se a três modos segundo os quais a deliberação é valiosa. Irei apresentá-las segundo a sua força crescente. Primeiro, podemos dizer simplesmente que a deliberação pública pode contribuir para valorizar as instituições democráticas. A deliberação pública pode não ser necessária nem sequer suficiente para o valor destas instituições. Chamo a isto a tese da contribuição. A segunda tese é a de que a deliberação é condição necessária para o valor das instituições democráticas, isto é, uma sociedade democrática que toma decisões sem deliberação pública é uma forma indesejável de sociedade política
[4]. Chamo a isto a tese da necessidade. A terceira tese é a de que a deliberação pública é o único valor na democracia. A única razão pela qual a democracia importa é que envolve a deliberação pública entre iguais. Esta é a tese da exclusividade.
Note-se que a explicação instrumental do valor da deliberação é compatível com a tese da contribuição desde que defendamos que há outros valores importantes (intrínsecos ou instrumentais) associados à democracia. É compatível com a tese da necessidade na medida em que a dimensão deliberativa da democracia é instrumentalmente relevante. A tese da exclusividade associada à abordagem instrumental da deliberação conduziria a um tipo de explicação instrumental da democracia. A concepção de que a deliberação pública possui um valor intrínseco é igualmente compatível com todas as três teses, tal como é a concepção mista. A concepção justificatória, que é compatível com a tese da necessidade e pode implicar a tese da exclusividade, pode ser incompatível com a tese da contribuição, uma vez que exige que não haja outro valor na democracia a não ser o do processo de deliberação.
Embora não tenham sido enumerados todos os modos logicamente possíveis de falar sobre estes valores, estes três valores e estas três teses esgotam o espaço de coisas plausíveis que alguém poderia dizer sobre a importância da deliberação pública na democracia. Estamos agora preparados para avaliar as diversas posições adoptadas relativamente à questão da importância da deliberação pública para a democracia. Uso os três tipos de valor que a deliberação pode ter para classificar as concepções e avaliar as três teses para cada uma dessas categorias de valor.»

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[1] Veja-se John Stuart Mill, Considerations on Representative Government (Buffalo: Prometheus Books, 1985), cap. 2-3, e On LIberty (Buffalo: Prometheus Books, 1990), cap. 2, sobre este tipo de visão. Veja-se também Cass Sunstein, Democracy and the problem of free speech (New York: Free Press, 1993), cap. 8. Veja-se o meu The Rule of the Many (Boulder, CO: Westview Press, 1996), cap. 2, sobre o desenvolvimento destas teses instrumentais.
[2] Jean Jacques Rousseau, The social contract and discourses, ed. G. H. D. Cole (London: J. M. Dent, 1973), p. 185; e Bernard Manin, "On Legitimacy and Political Deliberation”: Political Theory, 1987, p.338-368, esp. p. 345.
[3] Esta visão é algumas vezes atribuída a Aristóteles na sua Politica. Veja-se também Hannah Arendt, On Revolution (Harmondsworth: Penguin Books, 1963. Veja-se Jon Elster, Sour Grapes (Cambridge: Cambridge University Press, 1983), a propósito de um argumento de que a realização de tal valor é incoerente. Defendi que essa visão é coerente em "Is the participation argument coherent?", Philosophical Studies, 1996, p. 1-12.
[4] Não considerarei aqui a tese de que uma sociedade que toma decisões sem deliberação pública não seja de modo algum uma sociedade democrática. Esta é ou uma tese conceptual que afirma que o conceito de democracia envolve de alguma modo a ideia de deliberação pública, ou uma tese sobre o próprio conceito de democracia, em que a ideia de democracia é entendida de um ponto de vista normativo. Democracia seria uma noção muito parecida com a de justiça ou virtude; seria normativa. Portanto, dizer que a democracia é essencialmente deliberativa é afirmar uma certa concepção de democracia.

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