sábado, 17 de maio de 2008

Amartya Sen, "Direitos humanos e diversidade cultural"

«O conceito de direitos humanos é uma pedra angular da nossa humanidade. Tais direitos não são concedidos porque se é cidadão de um país ou se pertence a uma nação, mas pertencem por direito a toda a humanidade. Isso diferencia-os, em consequência, dos direitos criados constitucionalmente, garantidos a pessoas determinadas (por exemplo, os cidadãos americanos ou franceses). Desse modo, o direito de não ser torturado afirma-se independentemente do país de que se é cidadão e também do que o governo desse país - ou de algum outro - pretende. Um governo pode naturalmente contestar o direito legal de uma pessoa de não ser torturada, mas isso não pode pôr em causa o que é considerado como o direito do homem de não ser torturado.

Discordâncias aparentes e contrastes culturais
O conceito de direitos universais do homem é, desse ponto de vista, uma ideia unificadora, algo que torna cada um de nós importante (pouco importa onde vivamos e a qual país pertençamos), algo que podemos todos compartilhar (apesar da diversidade dos sistemas jurídicos dos nossos respectivos países). E no entanto o tema dos direitos humanos frequentemente degenera em campo de batalha no qual se defrontam diversas crenças e reivindicações. Nos debates políticos, ele pode surgir como um tema de delimitação, mais que como uma idéia unitária. Tais oposições têm por vezes sido consideradas como "choques de civilizações" ou "batalhas entre culturas". Por exemplo, diz-se com frequência que os países ocidentais reconhecem numerosos direitos humanos, especialmente os que estão ligados à liberdade pública, ao passo que os países asiáticos não o fazem. Muitos vêem nisso um importante factor de divisão. A tentação de pensar de acordo com tais esquemas regionais e culturais é muito forte no mundo contemporâneo. Os partidários e os adversários dos direitos humanos frequentemente utilizam esses argumentos culturais, baseados nas tradições e nas crenças existentes em determinada sociedade.

Existirão efectivamente diferenças irredutíveis entre as tradições culturais e as crenças políticas através do mundo? Será esta divisão incontornável quando se trata de direitos humanos? É verdade que os porta-vozes dos governos de vários países asiáticos têm discutido a pertinência e o fundamento dos direitos universais do homem. Frequentemente fazem-no em nome de "valores asiáticos" específicos, que diferem das prioridades ocidentais. Insistem muitas vezes em alegar que o apelo à aceitação universal dos direitos humanos reflecte a imposição dos valores ocidentais sobre as outras culturas. Como disse o ministro de Relações Exteriores de Singapura na conferência de Viena sobre os direitos humanos em 1993 (com total apoio dos porta-vozes oficiais de vários outros países asiáticos): "O reconhecimento universal do ideal dos direitos humanos pode ser nefasto se a universalidade é utilizada para contestar ou mascarar a realidade da diversidade." O ministro das Relações Exteriores da China também manifestou vivas reservas às concepções "ocidentais" dos direitos humanos. A filosofia confuciana, em particular, daria ênfase não aos direitos ou liberdades, mas ao li, quer dizer, à ordem e à disciplina. Mas existirá realmente esta "diversidade" entre a Ásia e os países ocidentais?
Uma certa tendência na Europa e na América estabelece às vezes implicitamente que é no Ocidente - e apenas no Ocidente - que os direitos humanos têm sido valorizados desde épocas antigas. Esta característica pretensamente única da civ lização ocidental teria sido um conceito estranho no resto do mundo. Insistindo nas especificidades regionais e culturais, tais teorias ocidentais sobre a origem dos direitos humanos tendem a questionar a existência de direitos universais do homem nas sociedades não ocidentais. Sustentando que o valor atribuído à liberdade pessoal, à tolerância e aos direitos civis é uma contribuição própria da civilização ocidental, os partidários ocidentais desses direitos frequentemente jogam farinha no moinho dos críticos não ocidentais dos direitos humanos, pois o apoio a uma ideia pretensamente "estrangeira" pode ser considerado uma manifestação do imperialismo cultural imposto pelo Ocidente.

Diversidade nas tradições ocidentais e valores asiáticos
Que fundo de verdade se poderá atribuir a essa grande dicotomia cultural entre as civilizações ocidentais e não ocidentais a respeito da liberdade e dos direitos? Pretendo demonstrar que tudo isso é inexacto de um ponto de vista histórico. Na tentativa de interpretar a civilização ocidental como a base natural da liberdade individual e da democracia política, identificamos uma tendência a extrapolar para trás a partir do presente. Os valores que o século das Luzes na Europa e acontecimentos mais recentes banalizaram e difundiram são frequentemente considerados - de forma absolutamente arbitrária - como uma parte da longa herança ocidental que se desenvolveu durante milênios. O conceito dos direitos universais do homem no sentido amplo do Iluminismo, de direitos de todo ser humano, é na realidade uma ideia relativamente nova, difícil de encontrar no Ocidente tanto quanto no Oriente antigo.
Todavia, outras ideias - como o valor da tolerância ou a importância da liberdade individual - foram apoiadas e defendidas por muito tempo, não raras vezes por uma pequena elite. Desse modo, no pensamento ocidental, os escritos de Aristóteles sobre a liberdade e o desabrochar humano fornecem um bom material de base para as ideias contemporâneas dos direitos humanos. Podemos reconhecer esta importante filiação, sem ignorar a falta de universalidade das éticas subjacentes (a exclusão das mulheres e dos escravos por parte de Aristóteles é uma boa ilustração dessa ausência de universalidade). Podemos igualmente observar as contribuições positivas de certos elementos da filosofia ocidental para as noções modernas de direito do homem, sem ignorar que outros filósofos ocidentais sustentaram outras teses. Assim, as preferências de Platão e de santo Agostinho pela ordem e a disciplina, mais que pela liberdade, não eram menos evidentes que as prioridades de Confúcio.
Se buscarmos tais filiações como pano de fundo do pensamento contemporâneo, podemos encontrar relações semelhantes nas culturas não ocidentais. Confúcio não é o único filósofo na Ásia, nem mesmo na China. As tradições intelectuais são muito variadas na Ásia, e muitos escritores deram ênfase à importância da liberdade e da tolerância, chegando alguns a ver nisso a própria definição do ser humano. A linguagem da liberdade é muito importante, por exemplo, no budismo, que nasceu e desenvolveu-se na Índia para em seguida estender-se ao Sudeste asiático e ao Leste da Ásia, China, Japão, Coréia, Tailândia e Birmânia. Esta abordagem contrasta realmente com: a ideia central de Confúcio: a disciplina.
O imperador indiano Asoka, que viveu na Índia no século III a.C. e comandou um império maior que o dos outros reis indianos, dos mongóis e mesmo dos britânicos, interessou-se pela ética pública e praticou uma política "esclarecida" depois de horrorizar-se com a visão das carnificinas nas suas vitoriosas batalhas. Converteu-se ao budismo e contribuiu para transformá-lo numa religião mundial, enviando emissários, portadores da mensagem budista, ao exterior, tanto ao Oriente como ao Ocidente. Espalhou pelo território pedras nas quais estavam gravados os princípios de uma vida boa e os deveres do indivíduo e do Estado. Essas inscrições conferem particular importância à tolerância em face da diversidade: considera-se que "cada ser humano" tem direito a essa tolerância - que diz respeito às liberdades individuais e às maneiras de viver - por parte do Estado e dos outros indivíduos. Muitos outros autores da Antiguidade e da Idade Média (além de contemporâneos) em diferentes regiões da Ásia também se empenharam, segundo os mais variados registros, em favor da tolerância.
Não pretendo de forma alguma descartar a reivindicação de "especialidade" do Ocidente sustentando que as culturas asiáticas têm mais argumentos para reivindicar a prioridade do conceito dos direitos humanos. Defendo antes a ideia de que as culturas asiáticas desenvolvem tanto quanto as tradições ocidentais uma grande variedade de posições. Tanto na Ásia quanto no Ocidente, alguns valorizaram a ordem e a disciplina, ao passo que outros centraram-se na liberdade e na tolerância.
Duas propostas destacam-se. Primeiro, admitir que a ideia dos direitos humanos enquanto direitos de todo o ser humano, com um alcance universal absoluto e uma argumentação bem desenvolvida, é recente. Na sua forma precisa, não é uma ideia antiga nem no Ocidente nem em qualquer outra parte. Em seguida, nas tradições e pensamentos antigos, encontramos elementos (como a valorização da tolerância e da liberdade) muito próximos e absolutamente coerentes com a noção moderna de direitos humanos. Podemos encontrá-los nos escritos de certos pensadores asiáticos e nos de autores ocidentais. Podemos assim afirmar que não existe dicotomia cultural global, seja ela reivindicada pelos que acreditam na "especialidade" do Ocidente ou pelos partidários do autoritarismo asiático.

Variações no interior das civilizações islâmicas
Frequentemente colocam-se questões particulares a respeito da tradição islâmica. Em razão dos conflitos políticos contemporâneos, em particular no Oriente Médio, a civilização islâmica é muitas vezes descrita como fundamentalmente intolerante e hostil à liberdade individual. No entanto, a diversidade e a variedade inerentes a cada tradição também são encontradas no islamismo. Os imperadores turcos foram não raras vezes bastnte mais tolerantes que seus contemporâneos europeus, e os mongóis na Índia (especialmente o imperador Akbar) chegaram a construir teorias sobre a necessidade de tolerar a diversidade. Os sábios árabes foram receptivos às ideias estrangeiras (a filosofia grega, as matemáticas indianas etc.) e por sua vez empenharam-se em difundir os frutos de seu trabalho intelectual no conjunto do velho mundo.
Um sábio judeu como Maimónides, no século XII, fugiu de uma Europa intolerante (onde nasceu) e da perseguição dos judeus em busca da segurança que lhe oferecia o Cairo e a proteção do sultão Saladin. Al-Biruni, o matemático iraniano que escreveu o primeiro livro geral sobre a Índia no início do século XI (além de suas traduções para o árabe de tratados indianos de matemática), foi um dos primeiros teóricos antropológicos do mundo. Ele observou - e insurgiu-se contra - o facto de que "a depreciação dos estrangeiros é comum a todas as nações que a exercem umas contra as outras", e dedicou grande parte de sua vida a favorecer a compreensão mútua e a tolerância. Existem naturalmente outros teóricos islâmicos e dirigentes que foram intolerantes e hostis aos direitos individuais, mas devemos levar em contra o alcance da diversidade no interior das tradições islâmicas. Não se pode pretender que a civilização islâmica se oponha de forma genérica à tolerância ou à liberdade individual.

Conflitos entre nações e críticas internas
Ao concentrar-me na diversidade no interior das culturas, não tenho como objectivo afirmar que actualmente os países e as culturas estão divididos igualmente, através do mundo, quanto ao apoio que deve ser dado aos direitos humanos. Por causa da história particular do século das Luzes, do capitalismo de mercado e do Estado social, os direitos humanos são muito mais celebrados na maioria das sociedades ocidentais que em muitos países da Ásia e da África. Mas trata-se de uma característica do mundo contemporâneo, e não de uma dicotomia antiga. É bastante importante não apresentar uma distinção moderna como uma oposição antiga, em virtude da qual a pretensa "essência" das culturas asiáticas ou o suposto "fundamento" dos costumes do Oriente se oporia a uma presumida "natureza" da civilização ocidental. Esta leitura sem fundamento da história não só é intelectualmente superficial como contribui para os factores de divisão no mundo em que vivemos. A grosseria gera a violência.
Os partidários dos direitos humanos, assim como os seus opositores, podem tirar proveito de um estudo e de uma compreensão mais profundos das diferentes culturas e civilizações, com suas respectivas variedades e seus elementos heterogéneos, segundo os diferentes períodos da história. Tentar "vender" os direitos humanos como uma contribuição do Ocidente ao resto do mundo é não apenas historicamente superficial e culturalmente chauvinista como profundamente contraproducente. Isso provoca uma alienação artificial, que não é justificada pelos factos e não contribui para uma melhor compreensão entre uns e outros. As ideias fundamentais subjacentes aos direitos humanos surgiram sob uma forma ou outra em diferentes culturas. Constituem materiais sólidos e positivos para sustentar a história e a tradição de toda grande civilização.
Mesmo no mundo contemporâneo, é importante ouvir as vozes dos dissidentes de cada sociedade, pois os ministros de Relações Exteriores, os representantes dos governos ou os chefes religiosos não têm o monopólio da interpretação dos valores ou das prioridades morais. A diversidade de opiniões em cada cultura - à qual nos referímos mais acima - reflecte-se nas dissidências contemporâneas e na heterodoxia. Os dissidentes podem tomar-se líderes importantes (como Mahatma Gandhi ou Nelson Mandela) ou continuar perseguidos e vulneráveis (como os militantes do movimento pró-democracia na China actual); entretanto, as suas opiniões e críticas não podem ser rejeitadas como "estrangeiras" às nações nas quais actuam. A necessidade de reconhecer a diversidade não se aplica apenas entre as nações e as culturas, mas igualmente no interior de cada nação e de cada cultura.

Para concluir...
O conceito de direitos universais do homem oferece bastantes atractivos para o senso comum e para a boa compreensão da nossa humanidade comum. Esta ideia unificadora tem sido objecto de críticas virulentas, por parte de separatistas culturais e de porta-vozes de governos autoritários. Esta ideia universalista tem sido frequentemente utilizada de forma manipuladora pelo chauvinismo intelectual ocidental, pretendendo arrogar-se como o lugar único da tolerância, da liberdade e dos direitos humanos em todos os tempos. Tais críticas e reivindicações não raras vezes são profundamente a-históricas. É verdade que existem dissensões no mundo, mas as linhas de divergência não casam com as fronteiras nacionais, nem com a grande dicotomia entre o Oriente e o Ocidente. Isto saplica-se tanto às tradições do passado quanto às prioridades e às aspirações actuais.
No nosso empenho de levar em conta a diversidade, não devemos ignorar a heterogeneidade no interior de cada país ou cultura nem deixar de reconhecer o apoio dado pelos militantes aos direitos humanos, mesmo sob regimes autoritários. As divergências que observamos nos estudos históricos sobre a heterogeneidade das culturas repetem-se nas que constatamos no mundo contemporâneo. A diversidade dentro dos países pode estranhamente contribuir para unificar o mundo e torná-lo menos discordante. Os direitos humanos podem contribuir para este processo e também dele colher frutos.»


Sen, Amartya, “Direitos humanos e diferenças culturais” in Darnton, R.; Duhamel, O. (2001). Democracia. Rio de Janeiro: Record, pp. 421-9 (Adaptdo por Vítor João Oliveira)

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