segunda-feira, 12 de maio de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte III)

«Por que a deliberação pública per se é apenas instrumentalmente valiosa

Voltando à questão do valor intrínseco da deliberação, há dois modos segundo os quais a deliberação é pensada como tendo um valor intrínseco. Primeiro, pode ter um valor intrínseco na medida em que a participação na discussão das questões de grande importância moral é um componente essencial ou pelo menos irredutível da vida boa. Segundo, a deliberação pública pode ter um valor intrínseco na medida em que a presença da deliberação pública é a expressão de um tipo de respeito mútuo entre os cidadãos na sociedade.
Quando submeto as minhas concepções e argumentos à avaliação e réplica do leitor e ouço as suas ideias e argumentos com o objectivo de aprender alguma coisa consigo, estou a exprimir algum tipo de respeito por si. Estou a tratá-lo como um tipo de ser racional e inteligente que tem alguma coisa a oferecer. Se estou a discutir algum tópico com o leitor ou com alguém diferente que diz alguma coisa relevante para a discussão, e que pura e simplesemtne ignoro, estou a exprimir algum tipo de desrepeito por si. Neste caso, na medida em que o devo respeitar, estarei a agir de um modo que não é apropriado na minha relação consigo. Estarei a tratá-lo de forma injusta.
A política acrescenta uma outra dimensão a este argumento do respeito mútuo. Quando penso sobre a matemática, por exemplo, e não pergunto pela sua sua opinião, ainda que o leiror saiba muito sobre o assunto, não estou necessariamente a expressar desrespeito por si. Posso ser tímido ou posso não desejar ocupar meu tempo a discutir esse assunto consigo. Estas são razões suficientes para que eu não me aproxime nem converse consigo sobre o assunto. Posso revelar imprudência ao não discutir questões com o leitor, mas isso não significa que não o estarei a tratar de forma justa. Claro que se houver uma expectativa geral de que eu discuta tópicos com aqueles que são conhecedores, e o leitor for a única pessoa por perto que tem essas qualidades, então a minha falha em discutir o problema pode ser tomada como um desleixo, sem alguma explicação mais forte. Não obstante, na discussão normal, expressamos geralmente desrespeito por alguém apenas quando ignoramos ou descartamos uma contribuição legítima que ele tenha feito.
Na política, ao contrário, as questões abertas à discussão têm que ver com decisões que afectam a vida das pessoas. Quando, mesmo se como resultado de timidez, falho em discutir com o leitor as minhas ideias sobre o modo como as nossas vidas deveriam ser vividas, estou a expressar algum tipo de desrespeito e perda de consideração por si. Esse desrespeito é o que caracteriza todas as formas não democráticas do processo de tomada de decisão política. Não apenas o leitor não tem um voto, como eu não troco ideias consigo na minha deliberação privada. Claro que na política democrática as decisões não são impostas deste modo, mesmo nos casoso em que não há deliberação pública. Uma decisão é imposta sapenas quando tiver havido uma votação. Saber qual a decisão a ser tomada é algo incerto até à votação, pelo que não é verdade que os indivíduos simplesmente impõem as suas perspectivas aos outros. Contudo, a política democrática sem uma deliberação pública ampla parece expressar uma falta de respeito para com aqueles concidadãos que não estão incluídos na deliberação. Na política, manifestar respeito pelas pessoas que serão afectadas pela decisão envolve, além de dar-Ihes um voto na decisão, considerar as suas perspectivas e incorporá-Ios na discussão sobre a questão. Além da obrigação de não ignorar as opiniões expressas por iguais, há a obrigação de considerar as suas opiniões.
Qual é o valor intrínseco central invocado neste último caso? Na minha opinião, a preocupação intrínseca central é a de que os indivíduos têm acesso igual às condições cognitivas necessárias para tomar boas decisões em relação à sua vida em conjunto. As condições cognitivas do processo de tomada de decisão são aquelas que habilitam a pessoa a entender melhor o que está em jogo numa decisão, bem como a melhor discernir a decisão correcta. A participação no processo de deliberação pública é uma das principais condições cognitivas. O que estou a dizer é que o simples facto de conversar em conjunto sobre política não é a preocupação intrínseca central; o que possui importância central é que os indivíduos tenham igualdade nas condições cognitivas do processo de tomada de decisão democrática. Esta última exigência, como veremos, é uma exigência da justiça. Onde quer que haja um processo de deliberação pública em que alguns não tinham a oportunidade de ter a palavra, então estarão a ser tratados como inferiores no processo de tomada de decisão, na medida em que lhes terá sido negada a igualdade de acesso às condições cognitivas do processo de tomada de decisão democrática. Na verdade, a deliberação e a discussão têm também, em regra, um valor instrumental, como foi discutido na seção anterior, mas não há necessariamente qualquer injustiça no mero facto de uma dada sociedade tomar decisões sem recurso a um processo de deliberação pública.
Esta afirmação é bastante complexa e passarei a explicá-la. Tem em conta uma série de juízos ponderados sobre a importância intrínseca da deliberação. Num ado cenário, uma pessoa toma uma decisão que atinge a vida de outra sem a considerar; além da desigualdade de poder no processo de própria tomada de decisão, há uma desigualdade no facto de que apenas as deliberações de quem decide afetarm a decisão. Em última análise, a pessoa que não participa no processo terá provavelmente seus interesses negligenciados, até mesmo no caso de um decisor benévolo. Isto implica que o processo de tomada de decisões políticas falha porque não trata os membros da sociedade como iguais. Note-se aqui que a pessoa que delibera está a fazê-lo de forma privada sobre questões políticas. O outro, em contraste, não está sequer a deliberar, uma vez que não toma nenhuma decisão. A injustiça aqui, defendo, reside no facto de que uma decisão que atinge a todos ser feita a partir da deliberação privada de uma única pessoa.
Agora, considere o leitor um segundo cenário em que uma sociedade democrática na qual ninguém discute entre si os méritos das políticas e da lei. Ou cada pessoa reflecte simplesmente por sua iniciativa sobre qual seria a melhor política, como Rousseau recomendou aos cidadãos fazerem, ou cada um envolve-se na arte de negociar e formar alianças sem discutir os méritos das preferências iniciais de cada indivíduo. O que estou a afirmar aqui é que nada há de intrinsecamente errado em cada uma das situações anteriores. Ninguém está a tratar injustamente ou com desrespeito quem quer que seja. Não há quaisquer interesses particulares a serem privilegiados. Note-se que as preferências dos cidadãos não precisam ser irreflectidas. Todos podem rever as suas preferências por sua própria iniciativa e podem continuar dispostos a fazê-lo com base nas suas próprias reflexões subsequentes. Podem envolver-se na deliberação privada e não na deliberação pública. Além do mais, os cidadãos, em tal situação, não precisam estar apenas preocupados com os seus próprios interesses ou com os interesses de alguma parte da sociedade. Todos podem estar preocupados com o bem comum e com a justiça. Por esta razão, a deliberação sobre questões políticas, embora seja inteiramente privada, pode ser conduzida tanto reflexiva quanto moralmente. De facto, os cidadãos podem até tentar escolher uma alternativa com base na reflexão sobre razões que acreditam que os outros poderiam razoavelmente aceitar. Tudo isto é possível sem deliberação pública.
É claro que há algo de errado nesta situação: os cidadãos falham em levar por diante o processo de aprendizagem proporcionado pela discussão entre pessoas situadas diferentemente e com pontos de vista diferentes. Mas isto não é intrinsecamente problemático; desde que a deliberação de cada pessoa se realize tendo como pano de fundo a igualdade de acesso às condições do processo de tomada de decisão, não haverá injustiça.
Há outras situações em que as questões são construídas apenas em termos de interesse próprio, e nas quais a ausência de discussão não deprecia o valor intrínseco do processo democrático. Por exemplo, vamos supor que um grupo de pessoas deve decidir sobre o destino de uma viagem turística a realizar em conjunto. Embora nada mais esteja em jogo na decisão por uma ou por outro destino, eles têm diferentes desejos. Cada qual prefere que o grupo permaneça junto, mesmo que isso isto signifique viajar para o destino menos desejado. Não importa qual dos dois destinos visitem, a sua preferência será a de permanecer um grupo, apesar do facto de que terem desejos diferentes. Eles respeitam-se mutuamente como iguais. Certamente, o melhor modo para decidir sobre qual o destino a escolher será seguindo a regra da maioria. Nesse contexto, as pessoas são encorajadas para votar tendo por base o seu interesse próprio e ninguém estará muito interessado em discutir com os outros as alternativas. Cada pessoa estará envolvida numa deliberação privada sobre como votar, e votará, na maior parte das vezes, em conformidade com o seu interesse próprio; desde que cada uma tenha acesso aproximadamente igual às condições cognitivas do processo de tomada de decisões, nada há de intrinsecamente errado com o processo. Na verdade, pode haver alguma perda de informação resultante do facto de que elas não tenham discutido a questão entre si, sem que haja qualquer injustiça no modo como tenham decidido. A situação não é opressiva.
Não quero afirmar que todas ou a maioria das questões sejam formuladas apenas em termos de interesse próprio. A vasta maioria das questões deve ser formulada de alguma forma mista em que os interesses dos participantes estão em jogo, mas são solicitados a apresentar as suas perspectivas sobre as exigências do bem comum ou da justiça. E independentemente do modo como as questões são formuladas, parece que a presença da discussão pública provavelmente aperfeiçoará a qualidade do resultado.
Ambos os juízos neste segundo conjunto de cenários sugerem que o valor de ter um esquema de deliberação pública é essencialmente instrumental. Deixem-me sugerir um outra consideração. Suponha que, por alguma razão, sabemos que a discussão num grupo de pessoas provavelmente não conduzirá a qualquer compreensão ou informação nova, e que qualquer mudança na suas mentes surgirá devido a processos não racionais, tais como aqueles que são descritos pelos psicólogos sociais como efeitos de comparação social (isto é, os indivíduos mudam as suas opiniões apenas porque outras pessoas superiores têm essas opiniões).
[1] Neste tipo de contexto, terá o o processo algum valor? Parece que não. Ou suponha que a assunto sob deliberação possui um significado extremamente limitado para a comunidade. Qual será a importância do processo de deliberação nesse contexto? O seu significado será muito reduzido. Ou, suponha que o tópico em causa é muito importante, mas que mesmo uma discussão minimamente efectiva dele seria incompatível com a tomada de decisão em tempo útil. É claro que, neste tipo de contexto, o valor da deliberação seria nulo. Na minha opinião, estas observações, em conjunto com aquelas que referi acima, sugerem que consideremos a deliberação pública sobretudo como possuindo um valor instrumental. É um instrumento para tomar decisões com maior qualidade. Se a deliberação pública não servir a este propósito, não terá valor.»
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[1] Veja-se Blumberg, "Group decision making and choice shift", p. 201.

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