terça-feira, 6 de maio de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte II)

«O valor instrumental da deliberação
Será que a deliberação pública aperfeiçoa os resultados do processo de tomada de decisão democrática? Os efeitos da justiça e da virtude da deliberação nos resultados democráticos pareceriam resultados mais razoáveis para a democracia, pelo menos se a deliberação pública tivesse lugar num contexto político livre do medo e da intimidação ou do ridículo, e uma ampla variedade de pontos de vista poderia ser expressa e ouvida no fórum público. A discussão e a deliberação potenciam uma maior compreensão dos interesses dos membros da sociedade, bem como sobre os aspectos comuns da sociedade relacionados com esses interesses. Elas permitem-nos submeter a nossa compreensão a um escrutínio crítico. John Stuart Mill expôs o argumento de forma poderosa:

Toda a força e valor do julgamento humano depende de uma única propriedade, que pode ser corrigido quando está errado, a confiança pode nele ser depositada apenas quando os meios para o corrigir estiverem permanentemente a mão. No caso de uma pessoa cujo julgamento é de facto merecedor de confiança, como isso se tomou assim? Porque conservou a sua mente aberta à crítica sobre suas opiniões e conduta. Porque tem tido o hábito de ouvir tudo o que podia ser dito contra ele; de tirar proveito disso desde quefosse justo, e de expor a si própria, e em certas ocasiões a outrem, a falácia do que era falacioso. Porque sentiu que o única forma pela qual um ser humano pode aproximar-se do conhecimento da totalidade de um assunto é ouvindo o que pode ser dito sobre ele por pessoas de toda variedade de opiniões, e estudando todos os modos segundo os quais ele pode ser olhado por todas as espécies de mente
[1].

Sob o pressuposto de que mentes informadas desta forma formularão com maior frequência decisões melhores e de que uma sociedade em que todos os seus membros participem no processo de discussão e debate serão capazes, pelo menos, de erradicar os falsos preconceitos das suas políticas, temos razões para pensar que uma sociedade que promove a deliberação pública tomará decisões melhores. É provável ser mais sensível e compreensível aos interesses de uma porção ampla da população do que uma sociedade em que os cidadãos não têm a oportunidade de expressar e discutir os seus interesses. As suas decisões seriam informadas por um conhecimento melhor dos factos importantes para a realização dos objectivos da sociedade, uma vez que uma diversidade ampla de pessoas e grupos tem a oportunidade de examinar os factos e testar a visão que cada um tem sobre estas questões. As ideias de justiça e bem comum que fornecem a justificação última para inúmeras políticas, em geral podem evitar formas flagrantes de tratamento arbitrário que surgem quando um grupo que toma as decisões não está consciente da existência de outros grupos na sociedade. As formas de argumentação mais falaciosas e supersticiosas sobre essas questões, serão geralmente enfraquecidas. Em resumo, o processo de deliberação pública servirá como uma espécie de dispositivo de filtragem, que elimina as formas flagrantes de ignorância relativamente aos interesses e à justiça.
Estas são afirmações modestas que apelam ao nosso senso comum, mas devemos lembrar que a evidência empírica para tais efeitos em larga escala da discussão pública é habitualmente ténue e nem sempre positiva. A maior parte da investigação básica tem sido feita somente sobre grupos pequenos e, portanto, a sua generalização para o contexto das sociedades democráticas deve ser tratada com cautela
[2]. Assim, podemos apenas apoiar provisoriamente estas afirmações. Elas exigem mais investigação empírica. Além disso, o efeito virtuoso da deliberação é apoiado pelo senso comum. Numa sociedade em que a deliberação pública é a norma, possuir as características pelas quais se pode contribuir à deliberação pública é altamente funcional para os indivíduos, ou pelo menos para os grupos. Quando alguém é incapaz de contribuir para a discussão pública que informa a formulação de políticas mas possui interesses e pontos de vista particulares, esses interesses e pontos de vista não são provavelmente acomodados nas políticas que são escolhidas. Ao mesmo tempo, numa sociedade em que a decisão política é ignorada ou suprimida, é improvável que os indivíduos tenham razções para discutir as suas concepções com os demais, e terão menos razões para pensar cautelosamente sobre muitas das suas concepções. À medida que a participação frequente na discussão envolve as habilidades necessárias para aquela participação, é provável que aperfeiçoe os traços de carácter dos cidadãos. E à medida que a deliberação pública evoca um conjunto de qualidades moralmente importantes, tais como a racionalidade, a autonomia e o respeito pelos outros, há alguma razão para pensar que tais características, que são importantes na política, serão mais bem promovidas numa sociedade que encoraja a deliberação entre todos os seus cidadãos. Aqui também a evidência empírica para este tipo de afirmação do senso comum também é escassa, sendo necessária mais investigação. Além disso, podemos ver algumas maneiras pelas quais a deliberação pública pode, em algumas circunstâncias, promover também traços de carácter pobres. Por exemplo, a capacidade de fazer intrigas e de manipular pode, em alguns contextos, mostrar-se superior aos traços mais desejáveis. Ou, talvez, a indecisão poderá também resultar em algumas sociedades que valorizam bastante a deliberação pública.
Será que a deliberação pública aumenta a tendência entre os cidadãos para concordarem sobre questões políticas, aumentando dessa forma a legitimidade das acções do Estado? Este resultado é improvável numa sociedade amplamente pluralista. A discussão e o debate aumentam a diversidade de opiniões sobre muitas questões. Embora a discussão possa eliminar alguns desacordos, como os que decorrem de meros preconceitos e superstições, é provável que gere desacordos. Se a discussão está situada num contexto igualitário, então muito mais pontos de vista terão de ser discutidos até que os sectores da sociedade anteriormente negligenciados se apresentem. Não é preciso ser céptico quanto ao conhecimento das questões da política para perceber que os debates sobre estas questões são extremamente difíceis de resolver. Pontos de vista diferentes não podem ser eliminados quando há participantes com heranças sociais e económicas e experiências de vida diversas, sobretudo quando as evidências continuam a carecer de prova. Embora a sua psicologia moral seja altamente desenvolvida, o que Rawls chamou de "fardos da razão" pesa contra a possibilidade para realizar acordos sobre questões que são de grande importância na política, incluindo questões relacionadas com o bem comum e a justiça social
[3].
Seria desejável para a deliberação aumentar a tendênciapara o acordo? Embora o acordo possa contribuir para a estabilidade da sociedade, o desacordo e a diversidade de concepções estão entre as condições mais férteis para a realização dos bens da justiça e da virtude. Alguns poderão dizer que o acordo argumentado entre cidadãos é um bem, uma vez que vivem sob um esquema de instituições sociais que concorda com o seu senso de justiça. Mas este não é um estado de coisas desejável, a menos que aquilo que eles acreditem ser justo o seja de facto ou que pelo menos disso se aproxime. Um mero acordo sobre princípios apenas acrescenta um pequeno valor (isto é, alguma estabilidade) às instituições sobre as quais há acordo e pode tornar as coisas bastante piores se essas instituições forem injustas. Além disso, dada a probabilidade de instituições igualitárias produzirem, de facto, um grande desacordo, a ideia de que alcançaríamos de facto um acordo sobre princípios correctos de justiça se e somente se estruturarmos as nossas instituições democráticas de forma justa será claramente falsa
[4]. O melhor que podemos fazer para alcançar uma compreensão da justiça e do bem comum é testando todas as concepões particulares através de um processo de tentativa e erro no qual uma diversidade de pontos de vista estará sempre presente. Por isso, não devemos procurar alcançar um consenso sobre questões morais e políticas. Desde que a discussão pública funcione como um processo de tentativa e erro para excluir formas de ignorância, pode ajudar a conseguir um resultado proveitoso tanto para os indivíduos como para a sociedade, embora aumente a quantidade de desacordo na comunidade.
Serão estes valores instrumentais da deliberação pública os únicos valores na democracia? Claramente que a tese da exclusividade é falsa em relação aos valores instrumentais. As sociedades democráticas incluem mecanismos que são instrumentalmente importantes independentemente do seu estímulo para a deliberação. O primeiro e mais importante é o mecanismo de controlo do poder do voto da maioria. A regra da maioria ajuda a garantir que uma elite minoritária não possa tiranizar a parte restante da população. O voto da maioria difunde o poder por toda população e por meio disso incapacita substantivamente qualquer pessoa de abusar perigosamente dos seus concidadãos. Além de que o voto é um mecanismo informacional. Um voto a favor ou contra um candidato ou uma política envia um sinal de que, consideradas as alternativas, há alguma coisa de desejável ou indesejável no candidato ou na política. Este sinal nem sempre é muito claro, mas é mais claro do que a maioria dos que estão disponíveis na sociedade. Deste modo, o voto da maioria tem uma função na garantia da justiça, e temos razão para pensar que votar também tem um efeito sobre o carácter, uma vez que exige que se pensemos por nós próprios e façamos uma escolha que produza algum impacto no mundo em que vivemos.
As funções de controlo do poder e de sinalização do voto são enormemente aperfeiçoadas quando estão ligadas à deliberação pública entre iguais numa sociedade. Mas têm um valor independente do valor da deliberação pública e podem desempenhar um papel decisivo mesmo quando a deliberação pública está ausente. Além do mais, a função da deliberação pública não pode ser realizada sem que o poder do voto esteja amplamente distribuído. Primeiro, um ponto lógico: não se delibera a não ser que se esteja a fazer uma escolha, e nós não deliberamos a não ser que cada um de nós participe na formação da escolha. Por exemplo, um promotor público não delibera com um júri; apenas tenta persuadir e aconselhar o júri, o qual, por sua vez, delibera sobre o veredicto. Segundo, é por os cidadãos terem o poder de votar que têm razões para contribuir para a deliberação pública. O estímulo que o cidadão tem para ouvir a opinião de outro com o qual discorda diminui significativamente quando este outro não tem poder. Assim, os incentivos para um cidadão expressar as suas opiniões e fornecer razões, bem como pensar sobre questões políticas, diminui correspondentemente quando não tem poder. Por isso, é graças à ampla distribuição do poder de voto que a deliberação pública existe em larga escala. Portanto, o mecanismo do voto tem um impacto independente sobre a justiça da sociedade (por meio do controlo do poder e da sinalização), bem como sobre o carácter dos cidadãos, e é uma condição necessária para a eficácia e mesmo a existência da deliberação pública. As teses da exclusividade e da necessidade em relação aos valores instrumentais são falsas.»

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[1] Mil, On Liberty, p. 108. Veja-se Philip Kitcher, “The Divisions of Cognitive Labor”, Journal of Philosophy (January 1990), pp. 5-22, para uma defesa epistémica da diversidade na teorização científica.
[2] Veja-se James R. Larson, jr., Pennie G. Foster-Fichman e Christopher B. Keyes, “Discussion os shared and unshared information in decison making groups”, Journal of Personality and Social Psychology, vol. 67, nº 3, 1994, pp. 446-61, especialmente 459, sobre a partilha de informações não-partilhadas e de que maneira isso contribui para as qualidades dos resultados. Veja-se ainda Herbert Blumberg, “Group decision making and choice shift”, Small group research: a handbook, eds. A. Paul Hare, Herbert Blumberg, Martin Davies e Valerie Kent. Norwood, New York: Ablex, 1994, pp. 195-210, especialmente p. 200.
[3] Veja-se John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 473), para uma discussão sobre o impacto psicológico moral das instituições reguladas pelos dois princípios de justiça, e Political Liberalism (New York: Columbia University Press, 1993), p. 54-58, para uma discussão dos do juízo. Rawls pensa que os fardos do juízo apenas perturbam concepções abrangentes do bem e não concepções de justiça.
[4] É importante distinguir as concepções (tais como as de Habermas e de Rawls) que acreditam que a justiça é definida em termos do que pessoas razoáveis concordam em condições idealizadas daquelas que acreditam que o consenso um processo de deliberação democrática é possível e desejável. As primeiras concepções podem entrar num processo de deliberação pública como alternativas a serem consideradas, ainda que seja improvável que recebam consenso unânime, mesmo entre pessoas razoáveis em qualquer sociedade democrática real.

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