sábado, 10 de maio de 2008

Allen Buchanan et al “Por que não o melhor?” (Parte IV)

«Em busca do melhor para os filhos
É importante que as tentativas de produzir os melhores filhos possíveis se compreendam como tentativas para tornar a vida dos filhos melhores do ponto de vista do seu bem particular e não de qualquer outro ponto de vista, como, por exemplo, o bem dos pais ou da sociedade. Há seguramente pontos de vista sociais a partir dos quais produzir certos tipos de filhos poderia ser melhor para a sociedade, embora possa não o ser para os filhos em questão. Aldous Huxley imaginou a produção de crianças com capacidades significativamente limitadas que os tornariam aptos e estariam satisfeitos com o desempenho de papéis limitados e praticamente sem qualquer importância na sociedade. Se uma sociedade precisa cobrir esses papéis, talvez fosse melhor do seu ponto de vista que se produzissem crianças adequadas para os desempenhar e que se sentissem satisfeitos com eles. Mas isso é bastante diferente de afirmar que seria melhor para as crianças em questão virem a ser criadas com tais capacidades e expectativas limitadas.
O que nos interessa é a manipulação genética que pretende ser para o bem e benefício das crianças que foram submetidas a ela e não para o bem ou benefício de outros. (Salientamos que esta perspectiva é igual à de que geralmente se considera apropriado proporcionar tratamentos médicos: a decisão sobre o tratamento adequado centra-se no bem-estar do paciente e não na contribuição social ou no valor dos pacientes).
Uma forma de colocar a questão é insistindo no facto das decisão dos pais ou de outros sobre o que seria melhor para os seus filhos como resultado da manipulação genética, deveria ser considerada segundo um ponto de vista tal que pudesse vir a ser partilhado pelos próprios filhos. Quando, no decorrer da vida do filho, os pais impõe limites ou adoptam medidas relativas aos seus filhos, a que estes se opõem mas que, contudo, não são capazes de apoiar ou rejeitar, o que surge como uma justificação típica para o fazer é que posteriormente o filho compreenderá e aceitará já que foram medidas tomadas para o seu próprio bem, pelo que, neste sentido, acabará depois por apoiar uma acção anterior.
Num aspecto importante, este critério é demasiado inconsistente, porque as medidas tomadas não modificam apenas as capacidades e as oportunidades de uma pessoa de alguma maneira, mas conduzem o indivíduo a apoiá-las mesmo que fosse improvável que o fizesse na sua ausência. O exemplo de Um Mundo Feliz tomava esta forma: criava-se deliberadamente pessoas com capacidades gravemente limitadas, mas também com expectativas que os conduzissem à satisfação com essas capacidades, apesar das limitações.
Há uma versão mais subtil deste mesmo problema que acaba por ser mais difícil de evitar e que normalmente surge durante a criação de um filho. Sejam quais forem as contribuições relativas, tanto nos casos gerais como nos particulares, do património genético dos filhos e dos diversos factores ambientais a que os filhos estão expostos, o processo educativo modela inevitavelmente de forma relevante os critérios e valores que a criança aplicará posteriormente à sua própria vida e a outras questões valorativas. Assim, por exemplo, quando a pertença a um determinado grupo religioso supõe uma parte profunda e dominante da vida dos pais e da família, é provável que as crianças criadas nessas famílias afirmem que a sua pertença à religião em questão é um bem importante na sua vida. A este respeito, a educação religiosa frutuosa conduz as crianças a apoiar os resultados dessa educação; acabam por apoiar aqueles que a submeteram a ela. Os critérios que a pessoa utiliza para avaliar que práticas educativas foram positivas estão no interior das próprias práticas educativas.
O caso das crianças educadas ou submetidas ao que se consideram seitas religiosas mostra outra versão da dificuldade de Um Mundo Feliz. Aqui o processo de iniciar as crianças no grupo e de lhes inculcar as crenças que o grupo partilha, reduz as suas capacidades para avaliar com independência se o processo a que foram submetidos foi bom e benéfico para elas. Assim, se o apoio posterior da criança às medidas que o melhoraram ou o afectaram é suficiente para as justificar, espera-se pelo menos tais medidas não pareçam ter destruído ou limitado a sua capacidade para as avaliar de forma independente.
Outra dificuldade com o critério do apoio posterior é que as pessoas têm normalmente fortes motivos para encontrar formas de se considerarem positivamente a si próprias. Se alguém foi submetido a um procedimento que modifica de maneira fundamental o tipo de pessoa que é, o desejo de se considerar positivamente a si mesmo proporciona um motivo para apoiar a decisão dos pais de submeter os filhos a um tal procedimento, mesmo quando, considerados pontos de vista mais objectivos, a escolha não tivesse sido realizada.
Pode perceber-se o grau de dificuldade considerando um exemplo de educação corrente, não sectária, dos filhos. Suponhamos que um pai, bom vendedor, decide educar o seu filho, um pouco tímido e introvertido, para que seja mais extrovertido e decidido. O filho, à medida que vai amadurecendo e depois de assistir a sessões de terapia, participar em eleições para delegados de curso do instituto, e receber recompensas e punições cuidadosamente dirigidos pelos pais, começa a ter êxito com a sua nova personalidade. Adquire os valores do pai e aplaude que o tenham educado desta forma. Se não tivesse sido assim, poderia dar-se o caso deste jovem tímido e contemplativo vir a tornar-se num bom escritor ou cientista, pelo que agradeceria ter escapado definitivamente à confusão superficial do mundo do seu pai.
A ideia de escolher o nosso carácter, considerando que isto inclui valores fundamentais, é incoerente se tomada em sentido literal. Em primeiro lugar, qualquer pessoa deve ter um carácter, no sentido de conjunto de valores, preferências e disposições de comportamento, para tomar qualquer decisão e, portanto, não há forma de nos situarmos por detrás destes valores, preferências e disposições para as escolher. Nesse caso não haveria pessoa, não haveria carácter sobre o qual se pudesse escolher o carácter. Mas se o processo de modificação e modelação de uma criança deixa as suas capacidades críticas substancialmente intactas ou, melhor ainda, permite o seu desenvolvimento e a sua melhoria, há muito que dizer para apoiar o critério de que as modificações, através da genética ou de outros meios, deveriam ser tais que se poderia esperar que depois o filho ou filha afirmassem que haviam sido realizadas para o seu próprio bem ou benefício.

Mas este critério do apoio posterior do filho não só é insuficiente para justificar a tentativa particular de modelar o seu carácter, como é desnecessário. Por exemplo, poderia justificar-se que um pai reduzisse ou limitasse uma tendência profunda para a crueldade descoberta no seu filho, mesmo no caso desse traço estar tão enraizado que fosse improvável que o filho apoiasse depois esses esforços do pai. O critério do apoio posterior do indivíduo a modificações anteriores não pode eliminar todas as preocupações sobre qual seria o critério do “melhor” para aperfeiçoar os filhos.»

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