segunda-feira, 5 de maio de 2008

Allen Buchanan et al “Por que não o melhor?” (Parte II)

«Factores ambientais versus genéticos
Se esta liberdade dos pais para tentarem alcançar o melhor para e da sua descendência é tão fundamental, por que não ampliá-la através do uso dos meios genéticos? Por que surgem tão rapidamente as objecções anti-eugenistas que assinalamos antes?
A margem de liberdade concedida naturalmente aos pais para tentarem alcançar o melhor para os seus filhos, pode parecer pouco problemática porque há uma tendência para pensar nos seus esforços como factores “ambientais” que ajudam a desenvolver as capacidades que os seus filhos têm ou podem vir a ter. Os pais acabam apenas “por retirar o melhor dos seus filhos” ou “por desenvolver o ‘potencial’” que já lá está. Pelo contrário, o uso da informação e da manipulação genética (a somática ou a da linha germinal) sugere que os pais estão a transformar os seus filhos de uma forma fundamental, tornando-os diferentes daquilo que de outra forma seriam ou poderiam ter sido.
Este contraste é problemático. Para entender porquê, é útil reconsiderar algumas distinções assinaladas na nossa análise anterior sobre o determinismo genético. Quando os pais utilizam o seu controlo sobre os factores ambientais para “retirar o melhor” dos seus filhos, boa parte do que fazem modifica realmente o fenótipo. Dado que o genótipo dos seus filhos, a gama de traços e capacidades – físicas e comportamentais - que constituem o fenótipo, a criança que vemos e com a qual interactuamos, é em boa parte o resultado dos ambientes criados pelos pais e pelos outros. A alimentação do filho, por exemplo, afectará a sua estatura, a sua força e a sua resistência à doença. O exercício que venha a fazer afectará a forma do seu corpo, o seu desenvolvimento muscular, a sua força, as capacidades físicas e até o seu desenvolvimento neurológico. O modo como se fala na família, o facto de ser ler e se interactuar com ele afectará o desenvolvimento das suas capacidades cognitivas e emocionais. Não existe um melhor pré-existente (“essencial”) na criança que os pais façam florescer mediante a manipulação das causas ambientais; tal manipulação tem enormes efeitos na modelação do fenótipo.
Se os pais modificam o fenótipo para tentar conseguir o seu objectivo de produzir os “melhores” descendentes possíveis, então por que não acrescentar ao seu arsenal de métodos todas aquelas manipulações genéticas que podem facilitar-lhes a consecução de tais objectivos? Parte do que nos pode preocupar é a crença (equivocada) de que as manipulações genotípicas modificam a essência do indivíduo ou as suas características essenciais, embora as manipulações genéticas apenas modifiquem as características acidentais. A ideia parece ser que as manipulações genéticas têm como resultado um indivíduo diferente, embora apenas as manipulações ambientais modifiquem o mesmo indivíduo. Estas metáforas metafísicas são enganadoras. A relação entre genótipo e fenótipo não se pode reduzir a qualquer relação metafísica tradicional, como a diferença entre matéria e forma, ou substância e acidente, ou essência e acto de ser.
O centro do argumento pode ilustrar-se reconsiderando alguns dos exemplos já assinalados. Quando vacinamos uma criança, activa-se uma reacção que afecta permanentemente a capacidade do seu sistema imunitário para responder às bactérias ou aos vírus particulares. Suponhamos que o funcionamento do sistema imunitário poderia ser melhorado da mesma forma – ou de uma forma mais ampla – através de uma manipulação genética. Se há uma intervenção na célula somática, não pensaríamos ter ocorrido uma modificação “essencial” do indivíduo, ainda que algumas linhas celulares possam ter sido modificadas de forma permanente ou até essencial. Se esta fosse uma manipulação da linha germinal, a alteração poderia ter reacções mais complicadas, mas continua a ser provável que pensássemos tratar-se de uma alteração no mesmo indivíduo ou pessoa. Se isso sucedesse a qualquer um de nós, seria improvável que alguém se sentisse inclinado a perguntar “quem teria sido eu se os meus pais não tivessem alterado desta maneira o meu gene do sistema imunitário”.
Poderíamos ter reacções similares se supuséssemos que os nossos pais haviam trocado a cor dos nossos olhos ou da nossa pele. Poderíamos ter reacções diferentes se tivessem alterado os genes que produzem efeitos importantes sobre aspectos considerados fundamentais para o nosso sentimento do eu ou da identidade pessoal. Cada um de nós considera alguns elementos fundamentais para a nossa concepção do eu e para a nossa essência como indivíduos.
Há uma certa ironia no facto das nossas observações relativamente às manipulações genéticas parecerem assentar numa confusão subjacente acerca do determinismo genético (“somos essencialmente aquilo em que nos tornam os nossos genes”). A ironia está em concedermos aos nossos pais toda a margem de liberdade ambiental. Na realidade dar um espaço tão amplo como se dá às causas ambientais deveria contribuir para diminuir a nossa concepção de determinismo genético.
Este aspecto retoma os dois tipos de dificuldades sobre o uso das manipulações genéticas para fazer com que os filhos venham a ser o melhor possível. A primeira faz referência ao facto de saber se há critérios adequados ou defensáveis para determinar quais poderiam ser os melhores filhos possíveis, quer dizer, que mudanças seriam melhores para os nossos filhos. A segunda diz respeito a quem – os pais ou a opinião pública – deveria tomar decisões relativamente a que tipo de filhos seria melhor e depois realizar as manipulações genéticas que afectassem os filhos tendo por base esses critérios. É evidente que ambas as preocupações estão relacionadas entre si.
Proporemos até ao final deste capítulo as restrições ao processo de conseguir o melhor que se possa sem que isso resulte em danos a terceiros. Antes de considerar o que é o melhor e quem decide, convém destacar a questão ética específica de política pública que subjaz ao título deste capítulo: por que não o melhor? O argumento assenta nas distinções familiares da filosofia moral entre acções moralmente necessárias, moralmente desejáveis e permissíveis, más mas ainda assim moralmente permissíveis e moralmente impermissíveis. A permissividade de uma acção realizada por uma dada pessoa é uma questão diversa da permissividade moral para que outros interfiram nessa acção.

Distinção moral entre acções
A posição mais drástica para fundar o perfeccionismo dos filhos mediante a manipulação genética seria afirmar a exigência moral de que os pais ou outras pessoas procurem produzir os melhores filhos possíveis. Esta não é uma posição ética convincente, e não é a questão política abordada neste capítulo. Uma característica geral das posições típicas sobre as responsabilidades parentais na hora de criar os filhos é que aos pais não se lhes exige moralmente que façam tudo o que está ao seu alcance para produzir e criar os melhores filhos possíveis. Os pais podem legitimamente considerar mais importantes os seus próprios interesses, os interesses dos outros para além dos seus e os dos seus filhos na hora de tomar decisões que impliquem o uso dos seus recursos ou esforços, e, ao fazê-lo, não realizar tudo o que poderiam pelos seus filhos. Isto seria um nível irrazoavelmente elevado.
Para além de que se a ideia fosse conseguir os filhos mais perfeitos possíveis, o critério de qual seria o filho mais perfeito para os pais particulares e em circunstâncias particulares seria moralmente mais controverso. É claro que é compatível com a recusa deste critério que pais específicos repudiem a exigência moral de adoptarem determinadas melhorias genéticas.
Uma posição menos radical para apoiar as melhorias genéticas seria o facto de ser moralmente desejável ou moralmente bom que os pais usassem os diversos meios disponíveis, incluindo as manipulações genéticas, para procurar produzir os melhores filhos possíveis. Esta é uma atitude mais convincente, porque permite que haja outros interesses que compitam com as razões que defendem as tentativas de produzir os melhores filhos possíveis, ou as superem, mesmo quando seja sempre bom, em igualdade de circunstâncias, procurar melhorar os nossos filhos. O núcleo da capacidade persuasiva desta posição é que, se de facto melhoramos os nossos filhos mediante uma ou outra forma de manipulação genética, pareceria que os teríamos beneficiado, e beneficiá-los é pelo menos uma razão moral para adoptar essas medidas. É uma razão para considerar que aquilo que tenha sido feito seja, em igualdade de circunstâncias, moralmente bom ou desejável.
Uma melhoria genuinamente benéfica para uma criança poderia ainda assim ser – em igualdade de circunstâncias – moralmente negativa e, portanto, impermissível se, por exemplo, evitasse que os pais cumprissem com as suas responsabilidades mais importantes para com os demais. Mas na ausência dessas considerações morais conflituantes, as melhorias genuinamente benéficas, embora não sendo moralmente necessárias, seriam moralmente aceitáveis.
Assim, ao procurar aperfeiçoar os nossos filhos através de manipulações genéticas, da mesma forma que recorrendo a outros meios que os pais utilizam habitualmente, os nossos esforços poderiam falar e a tentativa de os beneficiar poderia colocá-los numa situação pior. Mas esta é uma possibilidade que ocorre relativamente a qualquer meio para melhorar os nossos filhos, ou de evitar que sofram dano, e não conduz a qualquer argumento especial contra a manipulação genética para o conseguir.
A posição menos rígida para apoiar as melhorias genéticas e, por isso, mais fácil de defender, é o facto de fazer parte da autoridade legítima dos pais (ou talvez de outras pessoas) para ter e criar os seus filhos usando pelo menos alguma forma de manipulação genética para os conseguir melhorar. Esta posição é compatível com a existência de algumas dúvidas morais relativamente ao facto de saber se se devia ou não estimular os pais a tomar tais medidas, dúvidas essas que poderiam proceder de fontes diversas, apesar de reconhecer que tomar tais medidas estaria dentro dos direitos ou da legítima autoridade dos pais dos filhos. Também é compatível com a crença de que algumas melhorias genéticas seriam más - em igualdade de circunstâncias -, ainda que estivessem dentro da autoridade legítima dos pais para criar os seus filhos. Uma característica geral dos direitos morais e jurídicos é que autorizam os seus possuidores a tomar medidas relativamente às quais seria errado intervir e que podem ser imprudentes ou más, ou, segundo uma posição mais radical defendida por alguns filósofos, podem até ser moralmente incorrectas.
Este capítulo examina duas questões fundamentais. Em primeiro lugar, será moralmente bom ou desejável utilizar as manipulações genéticas para melhorar os filhos, em igualdade de circunstâncias, da mesma forma que as manipulações ambientais, tais como tentar dar-lhes a melhor educação possível, são frequentemente consideradas moralmente boas ou desejáveis? E, em segundo lugar, mesmo quando alguma manipulação genética seja em geral indesejável, será ainda assim moralmente permissível que os pais as utilizem porque fazê-lo está dentro da sua autoridade legítima de ter e criar os seus filhos?
Por que deveria alguém pensar que há um problema especial para determinar que a manipulação genética, em vez da ambiental, seria melhor para os filhos? Já demos inúmeros exemplos de acções paternas, em contextos não genéticos, que são indiscutivelmente boas para os seus filhos. Algumas delas são em geral consideradas moralmente obrigatórias (tais como a escolaridade básica), mas praticamente todas são em geral consideradas moralmente permissíveis e desejáveis. Haverá algo a respeito das melhorias genéticas que as torne especialmente mais controversas de um ponto de vista moral?
A história dos movimentos eugenistas, a frequência e a importância das posições racistas neles incluídos deveria seguramente fazer-nos pensar. Além disso, esses movimentos têm frequentemente aceite sem questionar outros estereótipos e preconceitos sobre que características seria desejável produzir nas crianças. Os pais poderiam ser tão susceptíveis a esses estereótipos e preconceitos como têm sido aos movimentos eugenistas históricos. Portanto, a história proporciona por si só fortes razões para sermos precavidos relativamente às tentativas de utilizar as manipulações genéticas para aperfeiçoar os nossos filhos.
Mas esta precaução deveria combinar-se com o reconhecimento da importância, para pais e filhos, de que os primeiros usufruam de uma independência e liberdade substancial para decidir como criar os seus filhos sem interferências. Também vale a pena recordar que se os estereótipos ou preconceitos são um problema, também o serão para as manipulações ambientais.»

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