sexta-feira, 2 de maio de 2008

T. S. Marshall, "Cidadania e Classe Social" (Parte V)


«4. Os direitos sociais no século XX
O período que tratei até agora caracterizou-se por um crescimento da cidadania que, embora substancial e impressionante, produziu efeitos escassos na desigualdade social. Os direitos civis conferiam poderes legais cuja utilização estava drasticamente limitada pelos preconceitos de classe e pela falta de oportunidades económicas. Os poderes políticos proporcionavam um poder potencial cujo exercício exigia experiência, organização e uma alteração de ideais relativamente às funções adequadas de um governo. E esse desenvolvimento precisava de tempo, porque os direitos sociais eram mínimos e não estavam integrados no edifício da cidadania. O objectivo comum do esforço legal e voluntário era aliviar o incómodo da pobreza sem alterar o modelo de desigualdade, de que a pobreza era o resultado mais obviamente desagradável.
No final do século XIX abriu-se um novo período. […] Um aumento dos rendimentos monetários distribuídos desigualmente entre as classes sociais alterou a distância económica que as separava, diminuindo a separação entre a mão-de-obra qualificada e não qualificada, e entre aquela e os trabalhadores não manuais, embora o aumento contínuo do pequeno aforro desvanece-se a distinção de classe entre o capitalista e o proletariado sem propriedade. Em segundo lugar, um sistema de impostos directos cada vez mais escalonado comprimia a escala total de rendimentos disponíveis. Em terceiro lugar, a produção massiva para abastecer o mercado nacional e o interesse crescente da indústria pelos gostos e necessidades das pessoas comuns, permitiu ao menos favorecidos usufruir de uma civilidade material agora menos distinta da dos ricos do que em qualquer época anterior. Tudo isto alterou profundamente o cenário em que se desenrolava o progresso da cidadania. A integração social estendeu-se da esfera do sentimento e do patriotismo até à do usufruto material. Os componentes de uma vida culta e civilizada, antes monopólio de uns quantos, foram paulatinamente ficando à disposição das massas, que desse modo se sentiam estimuladas a estender as mãos àqueles que ainda se negavam a agarrá-las. Ao reduzir a igualdade, aumentaram as exigências para a sua abolição, pelo menos no que ao bem-estar dizia respeito.
Estas aspirações foram parcialmente satisfeitas com a incorporação dos direitos sociais no estatuto de cidadania, o que criou o direito universal a um rendimento real que não era proporcional ao valor de mercado do reclamante. A redução das diferenças de classe é ainda uma meta dos direitos sociais, mas adquiriu um novo significado, porque não se trata apenas de acabar com a miséria obviamente desagradável dos estratos mais baixos da sociedade, mas transformou-se num conjunto de actos que modificam o modelo global da desigualdade social. Já não é suficiente elevar o nível mais baixo do edifício social, deixando intacta a super-estrutura. Agora começou-se a remodelar todo o edifício, e poderia ser que o arranha-céus se viesse a converter num chalé. Por isso importa sobretudo saber se uma meta final desta natureza estará implícita neste desenvolvimento, ou se, como referi no início, existem limitações naturais para a tendência contemporânea para uma maior igualdade económica e social.
[…] De todos os princípios conhecidos, o mais utilizado não é, desde logo, o da escalada de preços que acabamos de ver, mas o mínimo garantido; quer dizer, o Estado garante uma provisão mínima de bens e serviços essenciais (assistência médica e provisões de outro tipo, casa e educação) ou um rendimento monetário mínimo para gastos de primeira necessidade, como no caso das pensões para os idosos, subsídios sociais e familiares. Este sistema parece, em comparação, uma versão mais generosa das medidas para reduzir as diferenças de classe na sua forma original, porque eleva a plataforma, embora não diminua automaticamente a super-estrutura (…).
[…] Os subsídios que não possuem relação com os rendimentos não reduzem a diferença entre eles, e o seu efeitos igualitários dependem do facto de que supõem uma percentagem adicional maior para os rendimentos baixos do que para os altos. […] Quando um serviço gratuito, como o de saúde, se estende de um grupo limitado à totalidade da população, o efeito directo é, em parte, um aumento da desigualdade dos rendimentos disponíveis, sujeita, uma vez mais, à modificação pela incidência dos nossos impostos, posto que os membros das classes médias, acostumados a pagar ao médico, compreendem a seguir que podem trocar essa parte dos seus rendimentos noutras coisas. [Um esquema total é menos especificamente redutor das diferenças de classe num sentido estritamente económico do que um esquema limitado.]
[…] [A] extensão dos serviços sociais não é, em princípio, um meio de igualar os rendimentos. Pode ser nuns casos, mas não noutros. […] [O] que importa é que se produza um enriquecimento geral do conteúdo concreto da vida civilizada, uma redução generalizada do risco e da insegurança, uma igualização de todos os níveis entre os menos e os mais afortunados: entre os sãos e os doentes, os empregados e os desempregados, os reformados e os activos, os solteiros e os pais de famílias numerosas. A igualização não se produz tanto entre as classes como entre os indivíduos dentro de uma população que, a este propósito, consideramos uma classe. A igualdade de estatuto é mais importante do que a igualdade de rendimentos.
[…] [A] experiência comum do serviço de saúde inclui todos, excepto uma exígua minoria situada no topo, e atravessa as barreiras de classe de forma bastante significativa nos níveis médios da hierarquia. Ao mesmo tempo, o mínimo garantido subiu tanto que dizer “mínimo” já não é adequado. Ao menos na intenção, quer-se aproximar tanto a um máximo razoável que os elementos extraordinários que os ricos podem custear pouco mais serão do que ornamentos e luxos. A regra do bem-estar social não é a compra de serviços, mas uma provisão do mínimo […]
Os subsídios que adoptam a forma de serviços apresentam, para além disso, a característica de que os direitos do cidadão não podem definir-se com precisão, porque o elemento qualitativo é inabarcável. Pode garantir-se um pequeno corpo de direitos realizáveis, mas o que é vital para o cidadão é a super-estrutura das aspirações legítimas. Obrigar as crianças de certa idade a passar um número requerido de horas na escola acaba por ser fácil, mas é mais difícil satisfazer as aspirações legítimas a ter professores formados e classes de tamanho apropriado. […] A taxa de progresso depende da magnitude dos recursos nacionais e da sua distribuição entre objectivos que competem entre si. Mas também não pode ser o Estado a prever com facilidade quanto custará cumprir com as suas obrigações, porque, à medida que se eleva a aspiração ao serviço – como inevitavelmente ocorre numa sociedade progressista -, as obrigações tornam-se automaticamente mais pesadas. E como o objectivo se move perpetuamente se para a frente, pode dar-se que o Estado nunca o possa alcançar. Segue-se que os direitos individuais devem subordinar-se aos planos nacionais.
[…]
Pela minha parte, não encontro sinais de relaxamento dos vínculos que unem a educação à ocupação. Pelo contrário, parece-me que se aproximam cada vez mais, porque aumenta o respeito pelos certificados, pelos diplomas e pelas licenciaturas na medida em que servem como qualificações para um posto de trabalho, e não parece que a tendência diminua com o curso do tempo. Julgamos um homem de quarenta anos através de um exame que fez aos quinze, porque ao acabar os estudos no instituto ou na universidade deram-lhe um bilhete para uma viagem que durará toda a sua vida. […]
[…]
O direito do cidadão neste processo de selecção é um direito de igualdade de oportunidades, com o objectivo de eliminar os privilégios de herança. Trata-se de um direito a desenvolver as diferenças; é um direito igual a ser reconhecido como desigual. Nas primeiras etapas do sistema, o principal efeito é, naturalmente, revelar as desigualdades escondidas: permitir que a criança pobre demonstre ser tão capaz como a rica, mas a consequência final será uma estrutura de estatuto desigual ajustado às capacidades desiguais.
A conclusão mais importante para o meu argumento é que, através das relações da educação com a estrutura ocupacional, a cidadania actua como um instrumento de estratificação social. Não há razão para o deplorar, mas devemos ter consciência das suas consequências. O estatuto que se adquire com a educação encontra no mundo um selo de legitimidade, porque foi concedido por uma instituição criada para dar ao cidadão os seu justos direitos. Podemos medir o que oferece o mercado em comparação com o que o que o estatuto exige. Se surge uma discrepância, as tentativas de a eliminar não adoptarão a forma de uma negociação do valor económico, mas de uma discussão sobre os direitos humanos. […]
Como disse antes, no século XX a cidadania e o sistema de classes do capitalismo estiveram em guerra. Talvez a frase seja demasiado dura, mas está bastante claro que o primeiro modificou em vários aspectos o segundo. […] Os direitos sociais na sua forma moderna supõem uma invasão do contrato pelo estatuto, a subordinação do preço de mercado pela justiça social, a substituição da livre negociação pela declaração de direitos. […]

Conclusões
Deveríamos procurar os efeitos combinados de três factores. Em primeiro lugar, a compreensão, de ambos os extremos, da escala de distribuição dos rendimentos. Em segundo lugar, a grande extensão da área de cultura e de experiência partilhadas. E em terceiro lugar, o enriquecimento do estatuto universal de cidadania combinado com o reconhecimento e estabilização de certas diferenças de estatuto através dos vínculos que unem os sistemas de educação e de ocupação. Os dois primeiros tornaram real o terceiro. As diferenças de estatuto podem receber o selo de legitimidade em termos de cidadania democrática desde que não sejam demasiado profundas e se produzam no seio de uma população unida numa civilização única, e sempre que não seja uma expressão de privilégios herdados. Isto significa que as desigualdades podem ser toleradas no seio de uma sociedade fundamentalmente igualitária, desde que (…) não criem incentivos que procedam da insatisfação e do sentimento de que “este tipo de vida não é a que eu mereço”.»

T. S. Marshall, “Citizenship and Social Class”, in Shafir, Gerson (ed.) (1998). The Citizenship Debates – a reader. Minneapolis: University of Minnesota Press, pp. 93-110 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira).

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