quarta-feira, 23 de julho de 2008

Usos do Argumento: Refutação

Argumentamos por vezes para refutar os argumentos dos outros. Refutar um argumento é mostrar que ele não é bom. Podemos refutar um argumento sem ser necessário provar que a sua conclusão é falsa. Podemos refutar um argumento fazendo uma de três coisas: (1) mostrar que a conclusão não é válida, quer dizer, não se segue das premissas; (2) mostrar que as premissas ou alguma(s) das premissa(s) são duvidosas ou mesmo falsas; e (3) ou mostrar que o argumento não se relaciona com a tese que quer provar.

Vejamos exemplos de três métodos de refutação:

a) Sabemos que um argumento não é válido se parte de premissas verdadeiras e conduz a uma conclusão falsa. Amiúde não podemos apontar este aspecto para refutar um argumento, pois a verdade ou falsidade da conclusão é exactamente o que está em questão. O que fazer? Recorrer a um mecanismo em que se utiliza o mesmo tipo de argumento permitindo chegar a uma conclusão insatisfatória. Exemplo:

João: Se tivesse um salário alto, então poderia comprar mais coisas; e se todos tivessem salários mais altos, então todos poderiam comprar mais coisas.
Rita: Isso é o mesmo que dizer que se uma pessoa se levantar num estádio, então verá melhor o jogo; e se todos se levantarem num estádio, então todos verão melhor o jogo.

À primeira vista não é óbvio que o argumento do João seja ou não válido. A resposta da Rita mostra que é inválido recorrendo a um argumento semelhante na forma, já que se todos se levantarem num estádio, apenas os mais altos verão melhor. Fica então claro porque é que o argumento do João é inválido: do mesmo modo que fica claro que ver melhor não decorre necessariamente de estar de pé, mas da altura de uma pessoa, também o poder de compra de uma pessoa é afectado pelo poder de compra dos outros, pois o aumento da procura tem efeitos na oferta. Portanto, podemos refutar um argumento através do mecanismo “É o mesmo que dizer…”.

b) A segunda forma de refutar um argumento é atacando uma das suas premissas. Podemos defender que não há uma boa razão para aceitar que uma dada premissa seja verdadeira perguntando por exemplo “Como sabes que é assim?”. Se não houver forma de justificar a premissa, então o argumento falha. Também podemos provar que a premissa é de facto falsa. Seja como for, refutamos o argumento refutando uma das suas premissas.

A forma habitual do o fazer é apresentando um contra-exemplo. Os contra-exemplos dirigem-se habitualmente a premissas universais. Uma premissa universal será falsa se encontrarmos pelo menos um caso que prove o contrário do que afirma. Se alguém defende que as cobras põe ovos, basta encontrar um tipo de cobra que não ponha ovos para provar que nem todas as cobras põe ovos. Como vês, o padrão de refutação neste caso é muito simples: refutar uma proposição que defende que todos os elementos de um conjunto possuem uma dada característica, basta mostrar que há pelo menos um exemplar desse conjunto que não a possui. Há quem defenda que a excepção serve apenas para confirmar a regra. Esquecem-se que no caso, confirmar significa testar e se a premissa universal falha o teste da confirmação, então será falsa.

c) Os contra-exemplos servem para refutar proposições universais. Então como podemos refutar proposições que não são universais? Mostrando que uma dada proposição tem implicações ridículas ou absurdas. Este modo de refutação designa-se por reductio ad absurdum (redução ao absurdo). Este método não mostra exactamente o que está errado na proposição, mas que algo está errado com a proposição. Na maioria das vezes isto é suficiente para refutar um argumento. Por exemplo, supõe que alguém defende que existe uma montanha que é a mais alta de todas, que existe um ser humano que é o mais maléfico de todos, pelo que deve haver igualmente um número inteiro que é o maior de todos. Supõe que existe o número inteiro maior. Designe-se de N. Uma vez que N é um número inteiro, então N+1 também é um número inteiro. Podes concluir que N+1 será maior do que N. Mas é absurdo que o maior número inteiro seja maior que o maior dos números inteiros. Logo, a suposição de que existe um número inteiro que é o maior de todos é falsa.

A redução ao absurdo tenta mostrar que determinada proposição, X, é falsa porque implica uma outra proposição, Y, que é absurda. A forma deste argumento é a seguinte: Se X, então Y. Se X, então não Y. Logo, não X.

Para avaliar uma redução ao absurdo, tem que se colocar três questões:
(1) X implica de facto Y?
(2) É realmente absurdo?
(3) Podemos modificar X de uma forma que deixe de implicar Y?
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quinta-feira, 17 de julho de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte XI)

«Conclusão

Estes resultados reflectem uma característica da explicação deliberativa que estivemos a rastrear ao longo deste capítulo. Dado o facto do desacordo persistente sobre questões políticas, a justificação política não pode ser vista pelos membros de uma associação como uma mera função do procedimento deliberativo ideal. Cada membro da associação deve participar na deliberação com a concepção de que sua própria abordagem é politicamente justificada. E embora felizmente aperfeiçoem com frequência as suas concepções, os cidadãos acabarão presumivelmente com concepções que consideram politicamente justificadas enquanto que outros na associação não o consideram. Isto implica duas proposições importantes: cada membro deve pensar que o procedimento ideal não produz resultados que sejam politicamente justificados para cada um de seus membros, e cada membro deve pensar no que está politicamente justificado segundo padrões que são independentes do procedimento ideal e que todos os outros estão a pensar nos mesmos termos. Em resumo, o procedimento deliberativo ideal não pode ser a fonte da justificação política. A concepção justificatória não pode explicar a importância da deliberação pública para a democracia.

O que explica a prontidão dos cidadãos para tentar justificar as suas propostas aos outros? O que explica a sua participação no processo de deliberação? E por que pensamos que este processo é tão importante? Podemos responder completamente a essas questões com a explicação dos valores instrumental e intrínseco da deliberação pública que apresentei neste artigo[1].»

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[1] Quero agradecer a John Armstrong, James Bohman e William Regh pelos seus comentários úteis a uma versão prévia deste ensaio.
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Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública”, in Bohman, James & Rehg, William (eds), Deliberative Democracy. Essays on Reason and Politics. Cambridge: The Mit Press, 1997, pp. 241-277 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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quarta-feira, 16 de julho de 2008

Michael Walzer, "Acção política: o problema das mãos sujas" (Parte I)

«Numa edição anterior de Philosophy and Public Affairs apareceu um simpósio sobre regras da guerra que era na realidade (ou pelo menos mais decisivamente) um simpósio sobre outro tópico[1]. O verdadeiro tópico era saber se um homem pode ou não alguma vez enfrentar, ou se alguma vez enfrentou, um dilema moral, uma situação em que deve escolher entre dois cursos de acção em que seria errado para ele realizar qualquer um deles. Thomas Nagel sugeriu, preocupadíssimo, que isto poderia acontecer e que aconteceu sempre que alguém se viu forçado a escolher entre defender um princípio moral importante e evitar um desastre iminente[2]. R. B. Brandt argumentou que é impossível que isso aconteça, porque há orientações que podemos seguir e cálculos que podemos efectuar que conduzirão necessariamente à conclusão de que um ou o outro curso de acção será o correcto nas circunstâncias (ou que é irrelevante escolher qualquer um deles). R. M. Hare explicou como pode alguém erradamente supor estar a enfrentar um dilema moral: por vezes, sugeriu, os preceitos e princípios de um homem comum, os resultados da sua educação moral, acabam por conflituar com injunções desenvolvidas num nível mais elevado do discurso moral. Mas este conflito é, ou deve ser, resolvido no plano mais elevado; não há verdadeiramente dilema.

Não estou certo que a explicação de Hare seja inteiramente reconfortante, mas a questão é relevante mesmo que essa explicação não seja possível, e talvez seja assim se não for este o caso. O argumento conecta-se não só à coerência e harmonia do universo moral, mas também à facilidade ou dificuldade – ou impossibilidade - relativa de viver uma vida moral. Não é, assim, uma mera questão filosófica. Se um tal dilema pode surgir, independentemente de ser frequente ou bastante raro, qualquer pessoa pode em qualquer momento enfrentá-lo. Com efeito, muitos homens já enfrentaram dilemas morais, ou pelo menos pensam que os enfrentaram, especialmente aqueles que se envolveram na acção política ou na guerra. O dilema, tal como Nagel o descreve, é frequentemente discutido na literatura sobre a acção política – em novelas e peças que lidam com a política e também nos trabalhos dos teóricos.

Nos tempos modernos, o dilema aparece mais frequentemente como o problema das “mãos sujas”, e é classicamente afirmado pelo líder comunista Hoerderer na peça de Sarte com o mesmo nome: “tenho as mãos sujas até aos cotovelos. Mergulhei-as em porcaria e sangue. Pensas que podes governar inocentemente?”[3] A minha resposta é que não é, não penso que seja possível governar inocentemente; a maior parte de nós não acredita que quem governa o faça de forma inocente – como defenderei mais em baixo – nem sequer o melhor dos governantes. Mas isto não significa que não seja possível fazer a coisa certa quando se governa. Significa que um acto de governo particular (num partido político ou num estado) pode ser exactamente a coisa certa a fazer de um ponto de vista utilitarista e, no entanto, fazer com que o seu actor se sinta culpado de um acto moralmente errado. O homem inocente, no fim de contas, já não é inocente. Se por outro lado permanece inocente, escolhe, desse modo, o lado “absolutista” do dilema de Nagel, acabando não só por fazer a coisa certa (de um ponto de vista utilitarista), mas podendo também não estar à altura dos deveres do seu cargo (que lhe impõe uma responsabilidade considerável pelas consequências e resultados). Certamente, os líderes políticos aceitam mais frequentemente o cálculo utilitário; procuram estar à altura. Pode-se apresentar um número de comentários sarcásticos sobre estes factos, e o mais óbvio é o de que através dos cálculos que habitualmente fazem demonstram as grandes virtudes da posição “absolutista”. Ainda assim, não queremos ser governados por homens que adoptam consistentemente essa posição.

A noção de mãos sujas deriva do esforço para recusar o “absolutismo” sem negar a realidade do dilema moral. Embora isto para os filósofos utilitaristas pareça ser equivalente a amontoar confusão, proponho que seja levado bastante a sério. A literatura que examinarei é o trabalho de homens sérios e frequentemente sábios, e reflecte, embora também tenha ajudado a moldar, a concepção popular da política. Também é importante prestar atenção a isso. Farei isso sem assumir, como Hare sugere que se faça, que o discurso moral e político corrente constitui um nível distinto de argumentação, em que o conteúdo é largamente uma questão de subterfúgio pedagógico[4]. Se as concepções populares são resistentes (como de facto são) ao utilitarismo, poderá haver algo a aprender com isso e não só algo a explicar.»
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[1] Philosophy and Public Affairs 1:2 (Inverno 1971/72): Thomas Nagel, “War and Massacre”, 123-44; R. B. Brandt, “Utilitarianism and the Rules of War”, 145-65; e R. M. Hare, “Rules os War and Moral Reasoning”, 166-81.
[2] A propósito da descrição de Nagel de um possível “beco sem saída moral”, veja-se “War and Massacre", 142-4. Bernard Williams apresentou uma sugestão similar, embora sem verdadeiramente se aperceber disso: “Muitas pessoas podem reconhecer o pensamento de que um certo curso de acção seja, de facto, a melhor coisa a fazer dada a totalidade das circunstâncias, mas que implica fazer algo de errado” (Morality: an Introduction to Ethics [New York: Cambridge University Press, 1972], 93).
[3] Jean-Paul Sartre, Dirty hands em No Exit and Three Other Plays, trad. Lionel Abel (New York, Vintage Books, 1955), 224.
[4] Hare, “Rules of War and Moral Reasoning”, 173-8, especialmente 174: “Os princípios simples dos deontologistas… têm o seu lugar no plano da formação do carácter (educação moral e auto-educação)”.
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terça-feira, 15 de julho de 2008

Garrett Hardin, “A ética do bote salva-vidas: um argumento contra ajudar os pobres” (Parte III)

«Controlo drástico da população
Em média, os países pobres registam um aumento da população de 2,5% por ano; os países ricos, cerca de 0,8%. Apenas os países ricos possuem algumas reservas alimentares, e mesmo esses não possuem tantas quanto deviam. Os países pobres não possuem reservas. Se os países pobres não receberem alimentos do exterior, a taxa de crescimento da sua população será periodicamente controlada pelas quebras nas colheitas e pelas fomes. Mas se puderem contar com um banco alimentar mundial, a sua população pode continuar a crescer de forma descontrolada, tal como a sua “necessidade” de ajuda. No curto prazo, um banco alimentar mundial pode diminuir as suas necessidades, mas no longo prazo acabará por as aumentar de forma ilimitada.


Sem algum sistema de partilha alimentar mundial, a proporção das pessoas nas nações ricas e pobres podem eventualmente estabilizar. Os países pobres superpovoados diminuíram em número, enquanto que os países ricos com espaço para mais pessoas aumentariam. Mas com um sistema de partilha bem-intencionado, como é o caso deste banco alimentar mundial, o crescimento diferenciado entre os países ricos e pobres não só persistirá, como aumentará. Por causa da taxa mais elevada de crescimento da população nos países pobres do mundo, 88% das crianças de hoje nascem pobres, e apenas 12% nascem ricas. Ano após ano o ratio piora, do mesmo modo que o crescimento rápido da taxa de natalidade dos pobres supera o crescimento lento da dos ricos.

Um banco alimentar mundial é o equivalente à tragédia dos comuns ainda que disfarçado. As pessoas terão maior motivação para retirar do que para contribuir para qualquer armazém comum. Os menos prudentes e os menos capazes multiplicar-se-ão às custas dos mais capazes e mais prudentes, arruinando provavelmente aqueles que partilham na comunidade. Para além disso, qualquer sistema de “partilha” que seja equivalente à ajuda internacional das nações ricas às nações pobres estará contaminada pela marca da caridade, que pouco contribuirá para a paz mundial tão devotamente desejada por aqueles que apoiam a ideia de um banco alimentar mundial. […]

O milagre do peixe e do arroz chinês
A perspectiva moderna da ajuda internacional enfatiza a exportação de tecnologia e da assessoria, em vez de dinheiro e alimentos. Como diz um velho provérbio chinês: “Dê um peixe a um homem e ele comerá durante um dia, ensine-o a pescar e ele terá comida para o resto dos seus dias”. Seguindo este conselho, as Fundações Rockefeller e Ford financiaram um conjunto de programas de melhoramento da agricultura nas nações onde há fome. Conhecidos como a “Revolução Verde”, estes programas conduziram ao desenvolvimento do “milagre do arroz” e ao “milagre do trigo”, novas variedades que proporcionam maiores colheitas e mais resistência à destruição do cultivo. Norman Brolaug, o vencedor do Prémio Nobel da agronomia, que apoiado pela Fundação Rockefeller, desenvolveu o “milagre do trigo”, é um dos defensores mais eminentes do banco alimentar mundial.

Saber se a Revolução Verde pode aumentar a produção de alimentos como é propalado pelos seus defensores, é um aspecto discutível mas possivelmente irrelevante. Aqueles que defendem este esforço humanitário bem-intencionado deviam considerar primeiro alguns dos aspectos fundamentais da ecologia humana. Ironicamente, uma das pessoas que o fez foi o falecido Alan Gregg, vice-presidente da Fundação Rockefeller. Há duas décadas atrás manifestou fortes reservas sobre a sabedoria dessas tentativas para aumentar a produção de comida. Comparou o aumento e a disseminação da população humana pela superfície da terra à difusão do cancro pelo corpo humano, assinalando “o aumento cancerígeno da procura de alimento; mas, tanto quanto saiba, nunca foram curados por o terem conseguido”.

Saturando o ambiente
Cada ser humano nascido produz um efeito em todos os aspectos do ambiente: alimento, ar, água, florestas, praias, vida selvagem, paisagem e solidão. Talvez a comida possa ser significativamente aumentada para corresponder à crescente procura. Mas o que dizer das praias limpas, das florestas intactas e da solidão? Se satisfizermos a procura crescente de alimento, diminuiremos necessariamente a porção de recursos per capita dos outros homens.

A Índia, por exemplo, possui actualmente uma população de 600 milhões de pessoas, que cresce a um ritmo anual de 15 milhões. Esta população já pressiona bastante um ambiente relativamente empobrecido. As florestas do país são já uma pequena fracção do que eram há três séculos atrás, e as cheias e a erosão destroem continuamente as terras cultiváveis que restam. Cada uma das 15 milhões de novas vidas acrescentadas à população da Índia coloca um fardo adicional no ambiente, e aumenta os custos económicos e sociais do excesso de população. Independentemente das nossas intenções humanitárias, cada vida indiana salva através de assistência médica ou nutricional internacional diminui a qualidade de vida daqueles que restam, e das gerações subsequentes. Se os países ricos tornarem possível, através da ajuda internacional, que 600 milhões de indianos se transformem em 1,2 biliões em meros vinte anos, tal como a actual taxa de crescimento ameaça, será que as futuras gerações de indianos nos agradecerão por apressarmos a destruição do seu ambiente? Serão as nossas boas intenções uma desculpa suficiente para as consequências das nossas acções?

O meu exemplo final da tragédia dos comuns em curso é algo que o público não deseja discutir racionalmente – a imigração. Quem quer que questione publicamente a sabedoria da actual política de imigração dos EUA é imediatamente acusado de intolerância, preconceito, etnocentrismo, chauvinismo, isolacionismo e egoísmo. […]»
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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte VI)

«Pretendo, finalmente, ligar a concepção deliberativa aos direitos de participação - as liberdades dos antigos. Mais concretamente, quero mostrar em que medida a concepção deliberativa acomoda um "princípio de participação"[1]. De acordo com este princípio, a escolha colectiva democrática – que institucionaliza o vínculo entre justificação deliberativa e o exercício do poder público - deve assegurar direitos de participação iguais, incluindo direitos de voto, de associação e de expressão política, com uma presunção forte contra as restrições sobre o conteúdo ou o ponto de vista da expressão; direito a ocupar cargos públicos; uma presunção forte a favor da ponderação igualitária dos votos; e uma exigência mais geral de igualdade de oportunidades a favor da influência efectiva[2]. Essa última exigência condena a desigualdade de oportunidades na ocupação de cargos públicos e na influência política que resultam do desígnio dos arranjos do processo de tomada de decisão colectiva[3].

Note-se, primeiro, que o simples facto das decisões deverem ser feitas em geral de modo deliberativo não contribui significativamente para o estabelecimento de um argumento a favor do princípio de participação[4]. Talvez um procedimento deliberativo ideal seja melhor institucionalizado ao assegurar-se um debate político bem conduzido entre as elites, capacitando desse modo as pessoas para fazerem escolhas informadas entre si e as concepções que elas representam, sem qualquer arranjo especial para uma igualdade política mais substantiva, entendida como exigindo uma ponderação igualitária de votos e oportunidades iguais para uma influência efectiva[5]. Então, como se liga a concepção deliberativa às preocupações sobre a participação e a igualdade política?

São importantes três considerações. Primeiro, dados os princípios da inclusão deliberativa e do bem comum, a concepção deliberativa pode valer-se ela mesma das razões instrumentais convencionais a favor dos direitos políticos iguais. Esses direitos fornecem os meios para proteger outros direitos básicos e para potenciar interesses, de modo que seja plausível promover o bem comum. Para além disso, na ausência de garantias de influência efectiva, essa promoção parece ser um resultado improvável. E seria especialmente improvável se às desigualdades na efetividade correspondessem desigualdades económicas ou sociais subjacentes na sociedade[6].

Ao argumentar de forma instrumental, pode parecer que estou a afastar-me em direcção de uma concepção de política como negociação, com garantias de poder igual funcionando para assegurar um equilíbrio político com resultados justos. Só que essa é uma compreensão errada da racionalidade instrumental e do seu mecanismo. Ao invés, a ideia é que ao assegurar que todos os cidadãos tenham direitos políticos efectivos serve para lembrar que os cidadãos têm de ser tratados como iguais na deliberação pública, e que, ao reduzir as desigualdades de poder, reduzem-se os incentivos para mudar de uma política deliberativa para uma política como negociação.

Uma segunda consideração é a de que muitas das justificações convencionais, históricas para as exclusões de ou para as desigualdades de direitos políticos - justificações fundamentadas na raça e no género, por exemplo - não garantem razões aceitáveis na deliberação pública. Esta consideração não excluirá todas as razões para a desigualdade - por exemplo, se os votos são ponderados de forma inigualitária porque o sistema político apoia-se, como no caso do Senado dos Estados Unidos, sobre um esquema de representação territorial em que os distritos eleitorais correspondem a subdivisões políticas. Mas estabelece uma presunção adicional a favor do princípio de participação.

Finalmente, considerações análogas às que encontramos no caso da liberdade de religião ou de expressão fortalecem o argumento a favor de direitos políticos iguais, com garantias de oportunidades iguais para a influência efectiva. Um aspecto característico das convicções morais e religiosas é que elas nos oferecem razões fortes para procurar transformar o nosso ambiente sociopolítico. As concepções abrangentes que subjazem a esses direitos variam desde a concepção aristotélica sobre o papel central do envolvimento cívico na vida boa, até às teses rousseaunianas sobre a relação entre a autonomia pessoal e a participação, a concepções, fundadas em convicções religiosas, sobre o carácter mandatório da responsabilidade pessoal para assegurar a justiça social e o pecado pessoal correspondente de falhar o cumprimento dessa responsabilidade. É um lugar-comum, no entanto, afirmar que os cidadãos têm razões substantivas, por vezes imperativas, para se dedicarem às questões públicas. Pelo facto de possuírem, a incapacidade de reconhecer o peso destas razões para o agente e de reconhecer das exigências de oportunidades de influência efectiva que delas decorrem reflecte uma incapacidade para apoiar a ideia de fundo dos cidadãos como iguais.»
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[1] Veja-se Rawls, Theory of Justice, pp. 36-7.
[2] Sobre a exigência de oportunidade a favor da influência efectiva, veja-se Rawls, Political Liberalism, pp. 327-30. Para uma discussão sobre a dimensão constitucional do problema, veja-se Davis vs. Bandemer 478 U.S. 109, 132, (1986). O Tribunal reconhece aqui que a protecção igual se torna problemática quando o "sistema eleitoral está organizado de modo que degradaria consistentemente a influência de um eleitor ou grupo de eleitores no processo político como um todo”. Low-Beer distingue entre uma exigência de ponderação igualitária dos votos, em jogo nas questões de representação proporcional, e os votos significativamente igualitários, em jogo nos casos de divisão do território em distritos eleitorais que diferem grandemente em dimensão geográfica concedendo desta forma uma vantagem injusta nas eleições a um candidato ou partido particulares (gerrymandering). Acredito que o valor ameaçado pela gerrymandering é melhor entendido como influência politica mais genérica, e não apenas como força eleitoral. Veja-se John Low-Beer, "The Constitutional Imperative of Proportional Representation", Yale Law Journal 94, 1984,pp.163-88.
[3] Entre as preocupações que se incluem nesta exigência, estão a diluição dos votos devida a gerrymandering política e racial, e a influência desigual devida a arranjos no financiamento de campanhas, a regras restritivas no acesso a cédulas eleitorais e aos regulamentos dos partidos políticos.
[4] Historicamente, a concepção deliberativa da política estava associada a formas altamente exclusivistas de parlamentarismo; mais até, segundo uma influente linha de pensamento, a democracia de massas destruiu a possibilidade de um processo de tomada de decisão política deliberativa. Segundo Carl Schmitt, "A crença no parlamentarismo, no governo através da discussão, pertence ao ambiente intelectual do liberalismo. Não pertence à democracia". Para além disso, "o desenvolvimento da moderna democracia de massas transformou a discussão pública argumentativa numa formalidade vazia". Veja-se The Crisis of Parlamentary Democracy, trad. Ellen Kennedy (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985), 6, 8.
[5] Desse modo, a explicação de Beitz da igualdade política liga os interesses do reconhecimento e tratamento igualitário às garantias de ponderação igualitária de votos e acesso justo. Aquilo que ele chama de "interesse deliberativo”, em contraste, apenas exige um debate político bem conduzido. Veja-se Charles R. Beitz, Political Equality (Princeton: Princeton University Press, 1989).
[6] Veja-se a discussão do interesse no tratamento equitativo em Beitz, Political Equality, p. 110-14. Este interesse desempenha um papel importante nos casos de representação proporcional decididos pela Supremo Tribunal no início dos anos sessenta. "Nenhum direito é mais precioso num país livre do que o de ter voz na eleição daqueles que fazem as leis segundo as quais, como bons cidadãos, temos de viver. Outros direitos, mesmo os mais básicos, são ilusórios se o direito de votar não é respeitado." Gray vs. Sanders, citado por Reynolds vs. Sims 377 U.S. 533 até 558 (1964). Ou mais uma vez: "Especialmente desde que o direito a exercer o sufrágio de um modo livre e intacto preserva outros direitos civis e políticos básicos, qualquer alegada violação do direito de votar dos cidadãos deve ser cuidadosa e meticulosamente verificada". Reynolds vs. Sims, em 562.
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quinta-feira, 10 de julho de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte X)

«O apelo à necessidade

Os defensores da concepção justificatória podem argumentar que, uma vez que é frequentemente necessário tomar decisões apesar do desacordo, é razoável que os membros da minoria aceitem o resultado da regra da maioria em situações em que deva ser tomada uma decisão. Podem argumentar que estes factos, quando apreendidos pela minoria ou quando devem ser por ela apreendidos, constituem um tipo de justificação política do resultado para a minoria mesmo quando esta não estiver persuadida de que o resultado é aceitável ou que poderia ser razoavelmente aceite. Isto é, acredito, a última linha de defesa da concepção justificatória
[1].

Há dois problemas básicos com esta concepção. Primeiro, assume que todos aceitarão a tese da necessidade. Note-se que devemos perguntar quando é feito o apelo à necessidade: necessário a que propósito? Seguramente que não está aqui a ser invocada a necessidade lógica, física ou psicológica. O que está a ser invocado é a ideia de que, se a decisão não for tomada, nenhum resultado bom ocorrerá. Mas, claramente, pode haver bastante desacordo sobre se o bom resultado apresentado é realmente bom. Por exemplo, alguém pode argumentar que uma proposta de seguro de saúde para ajudar os indigentes deve ser aprovada (caso contrário, os indigentes não receberiam ajuda) e, assim, mesmo que haja desacordo sobre qual a melhor proposta, é razoável para qualquer pessoa aceitar a proposta da maioria, ainda que por si mesma não alcance a justificação política. Mas é seguro que alguns possam rejeitar o apelo à necessidade neste caso. Poderiam argumentar que os indigentes não têm de ser ajudados. Ou poderiam argumentar que não seriam ajudados independentemente de haver ou não programa. Presumivelmente, poderiam defender estas teses com base nos ideais de liberdade e igualdade. Assim, o recurso à necessidade seria controverso.

A dificuldade final do recurso à necessidade é que parece ceder inteiramente ao ideal de justificação política das leis ou das políticas a todas pessoas. Assim, por hipótese, permite explicitamente que essa justificação política da lei ou do direito para cada pessoa não possa ser mantida nestas circunstâncias. Em vez disso, diz que na ausência de justificação política, a maioria é o grupo certo para tomar a decisão. Mas podemos ver aqui que a regra da maioria não está a ser invocada porque facilita a justificação política. Está a ser invocada porque é a forma correcta ou justa de tomar decisões quando há que decidir e o desacordo sobre os méritos de propostas alternativas não possa ser resolvido. Mas uma tal explicação do valor da regra da maioria é explicitamente excluída pela concepção justificatória. A única defesa da regra da maioria ao longo destas linhas é a de que incorpora a igualdade. Assim, mais uma vez, chegamos à segunda parte da concepção defendida neste ensaio.»
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[1] Veja-se Cohen, "Liberty, equality, and democracy”, p. 74; veja-se também Thomas Nagel, "Moral Conflict and Political Legitimacy”, Philosophy and Public Affairs (1987), pp. 215-40, especialmente pp. 233-4.
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quarta-feira, 9 de julho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte V)


«O princípio da inclusão deliberativa estende-se naturalmente da liberdade religiosa até uma ampla garantia de liberdade de expressão[1]. A este respeito, contrasta com uma corrente mais familiar da teoria do discurso livre, que rastreia os fundamentos das garantias estritas de liberdade de expressão até à necessidade de assegurar uma estrutura democrática de escolha colectiva, mas garante uma protecção estrita apenas ao discurso político[2]. Este limite está em tensão com a exigência de inclusão deliberativa.

Confinar a protecção estrita ao discurso político parece natural, logo que se tenha decidido fundar os direitos à liberdade de expressão na importância da exigência de responsabilidade (accountability) e responsividade (responsiveness) do governo ao corpo dos cidadãos. Mas, como sugerem as minhas observações sobre o caso da religião, uma concepção deliberativa da democracia não pode aceitar tal limite. Para que não haja dúvidas, a ideia de discussão destinada a alcançar um acordo razoável é fundamental para a concepção deliberativa. Mas dela não decorre que a protecção da expressão deva ser confinada ao discurso que contribui para tal discussão.

Considere-se a expressão que não faz parte de qualquer processo de discussão ou persuasão - que não é "prevista ou recebida como uma contribuição para a deliberação pública sobre alguma questão"[3] - mas que, ainda assim, reflecte o que um cidadão considera ser, por razões inteiramente compreensíveis, razões convincentes para a expressão[4]. Isto pode ser assim nos casos de apresentação de testemunhos sem qualquer expectativa ou intenção de persuadir outros, ou de prestar aconselhamento profissional, sem qualquer expectativa ou intenção de formar processos mais amplos de tomada de decisão coletiva. A concepção deliberativa estende a protecção estrita a esta expressão como um modo de reconhecer o peso dessas razões. Dado o pano de fundo do pluralismo razoável, a incapacidade de o fazer - isto é, dar o peso devido a um interesse expressivo que não serve como input à discussão política - constituiria uma negação da condição de igualdade, e decisões que são incapazes de assegurar essas protecções estritas não são adequadamente colectivas.

A tradição que rastreia as protecções de liberdade de expressão aos ideais democráticos e depois restringe a protecção estrita às contribuições para o debate no fórum público consolida a estratégia geral de argumentar a favor da liberdade de expressão enraizada na ideia de democracia num elemento desta estratégia: a necessidade de proteger os inputs para o processo de discussão. Mas acontece com a liberdade religiosa o mesmo que com a liberdadede expressão: a concepção deliberativa também vincula as protecções aos resultados aceitáveis de um processo deliberativo, isto é, aos resultados que podem ser justificados dada a exigência de encontrar razões aceitáveis para os outros em condições de pluralismo razoável.

Sugeri anteriormente uma conexão entre a concepção deliberativa e o valor da comunidade. Essa sugestão pode agora parecer forçada à luz das conexões entre a exigência de razões aceitáveis e a protecção de liberdades não políticas, já que essas liberdades são comummente representadas como - para o bem ou para o mal - dissolventes da comunidade.

Mas a concepção deliberativa sugere uma necessidade de cautela quanto a essa representação. Dadas as condições do pluralismo razoável, a protecção das liberdades dos modernos não é um dissolvente da comunidade. O pluralismo razoável pode em si mesmo ser um dissolvente: pelo menos se definirmos a comunidade em termos de uma concepção moral ou religiosa abrangente compartilhada. Mas logo que assumamos o pluralismo razoável, a protecção das liberdades dos modernos acaba por ser uma condição necessária, embora não insuficiente para a única forma plausível de comunidade política. Como indica a noção "princípio de inclusão", essas liberdades expressam a condição de igualdade dos cidadãos enquanto membros de um corpo colectivo cuja autorização é exigida para o exercício legítimo do poder público.

Voltando agora para o bem comum: as concepções agregativas da democracia são convencionalmente cépticas relativamente às concepções do bem comum. Por exemplo, Robert Dahl sugeriu que nas sociedades pluralistas as concepções do bem comum são ou demasiado indeterminadas para fornecer uma orientação, ou determinadas mas inaceitáveis porque nos conduzem a "resultados espantosos" em condições que são "de qualquer forma imporváveis"[5], ou determinadas e aceitáveis porque são puramente procedimentais - porque definem o bem comum como um processo democrático[6]. Na concepção deliberativa, esta perspectiva céptica é injustificada, embora seja uma outra reflexão sobre a ausência de constrangimentos para além da exigência de agregação justa.

Uma explicação deliberativa do princípio do bem comum começa pela observação de que os cidadãos têm boas razões para rejeitar um sistema de políticas públicas que é incapaz de promover os seus interesses (digo um "sistema de políticas" porque não quero excluir a possibilidade de leis, regulações ou políticas públicas particulares que não estão atentas aos interesses de alguns cidadãos poderem ser justificadas enquanto parte de um pacote global de programas de leis e políticas existente.[7]) Esta restrição mínima - de promover os interesses de cada um – decorre da concepção genérica de um processo deliberativo que é suficiente para estabelecer a exigência de eficiência de Pareto como um elemento de uma concepção de democracia.

Mas como enfatizei, a deliberação que desempenha um papel na concepção de democracia deliberativa não é simplesmente uma questão de fornecer razões, genericamente compreendidas. A concepção de fundo dos cidadãos como iguais coloca limites sobre as razões permissíveis que podem surgir no processo deliberativo. Suponhamos que alguém aceita o processo democrático de escolha colectiva vinculadora, admitindo que os adultos, mais ou menos sem excepção, tenham acesso a ele. Alguém pode então rejeitar, como uma razão no interior desse processo, que alguns são menos importantes do que os outros ou que os interesses de um grupo valem menos do que os interesses de outros grupos. Esse constrangimento sobre as razões limitará, por sua vez, os resultados do processo, acrescentando-se às condições estabelecidas pela ideia genérica de deliberação. Em particular, fornece um argumento a favor de um acordo público sobre a distribuição de recursos que rompe o destino dos cidadãos a partir das diferenças de posição social, das heranças naturais e da boa fortuna que distingue os cidadãos.

O princípio da diferença de John Rawls fornece um exemplo deste tipo de acordo[8]. Tratar a igualdade como ponto de partida, exige que as desigualdades estabelecidas ou sancionadas pela acção do estado deva funcionar para a vantagem máxima dos menos favorecidos. Esse ponto de partida é uma expressão natural dos constrangimentos sobre as razões que emergem do pano de fundo da condição de igualdade dos cidadãos: não será considerada como uma razão para um sistema de políticas públicas que beneficie os membros de um grupo particular diferenciado pela classe social, ou talento natural, ou por qualquer outra característica que os distinga entre cidadãos iguais. Não quero aqui sugerir que o princípio da diferença de Rawls seja a única concepção aceitável do bem comum. Mas existem argumentos particularmente fortes a favor dele, tanto porque aceita o pressuposto da igualdade que surge dos constrangimentos especiais sobre as razões no interior da concepção democrática deliberativa, como porque insiste, grosso modo, que ninguém fique em pior situação do que o que é necessário - o que é em si mesmo a expressão natural da concepção deliberativa.»
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[1] Essa discussão deriva de meu "Freedom of expression", Philosophy and Public Affairs, 22, Verão 1993,pp.207-263.
[2] Veja-se Alexander Meiklejohn, Free Speech and its Relation to Self-Government (New York: Harper & Row, 1948); e Cass R. Sunstein, Democracy and the Problem of Free Speech (New York: Free Press, 1993). Veja-se também Robert Bork, "Neutral PrincipIes and some First Amendment Problems", Indiana Law Journal, 47,nº 1 (Outono 1971): pp.1-35; Ely, Democracy and Distrust; e Owen Fiss, "Why the State?", Harvard Law Review 100 (1987): pp. 781- 794.
[3] Esta é a explicação do discurso político apresentada por Sunstein em Democracy and the Problem of Free Speech, p. 130.
[4] Não quero sugerir que a protecção estrita deva ser confinada à expressão animada por essas razões convincentes. A defesa democrática convencional dos direitos de expressão também fornece uma base para a protecção estrita. O meu objectivo é complementar essa análise.
[5] Democracy and its Critics, p. 283.
[6] Ibid., pp. 306-8.
[7] Os vícios dos impostos sobre vendas, por exemplo, dependem da natureza e do nível de isenções, a presença (ou não) de créditos fiscais, e a natureza das políticas de rendas.
[8] Veja-se John Rawls, Theory of Justice (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971), p. 513. Para uma discussão da conexão entre o princípio da diferença e um ideal de democracia, veja-se Joshua Cohen, "Democratic equality", Ethics, 99 (Julho 1989): pp. 736- 743. Uma outra visão que pode ser usada para ilustrar os pontos do texto é a igualdade de recursos de Dworkin. Veja-se Ronald Dworkin, "What is equality? Part 2: Equality of Resources”, Philosophy and Public Affairs 10 (1981): pp.183-345.
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terça-feira, 8 de julho de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte IX)


«Regra da maioria como fonte de justificação política

O terceiro modo de reconciliar os desacordos sobre o que está politicamente justificado com a ideia de que os resultados do procedimento deliberativo ideal são politicamente justificados é dizer que a justificação para uma maioria é suficiente como justificação política. Por si só, isto não parece ser muito promissor. Por que deveria o mero facto de uma maioria estar persuadida estabelecer a justificação política dos termos de associação para aqueles que não estão persuadidos? Parece que o único modo disso acontecer é quando a persuasão da maioria consegue transmitir alguma informação para a minoria sobre a justificação da concepção que a maioria tenha adoptado. Uma tal concepção tem sido expressa por vários autores denominados teóricos epistémicos da democracia
[1]. A ponte essencial entre a maioria e a justificação política para a minoria é expressa por Rousseau:

"Quando a lei é proposta na assembleia popular, o povo é questionado não exactamente sobre se aprova ou rejeita a proposta, mas se está em conformidade com a vontade geral, que é a sua vontade. Cada homem, ao dar seu voto, afirma sua opinião sobre esse ponto; e a vontade geral é encontrada pela contagem dos votos. Mas quando a opinião que prevalece é contrária a minha opinião, isso prova nada mais nada menos de que estava equivocado, e que o que eu pensava ser a vontade geral não o era."
[2]

Por que deveria isto ser assim? Provavelmente a explicação mais sucinta disto é dada por Bernard Manin: "A força relativa da justificação [de uma norma] só pode ser medida através da amplitude e da intensidade da aprovação que surge num público de pessoas razoáveis"
[3]. E a partir disto argumenta que "a aprovação do maior número reflecte, nesse contexto, a maior força de um conjunto de argumentos em comparação com outros"[4].

É agora necessário distinguir duas teses estreitamente relacionadas. A primeira tese é a de que o facto da maioria ter concordado com uma peça da legislação dá à minoria uma razão, suficiente para a justificação política, de pensar que estavam errados e que a alternativa escolhida pela maioria está correcta. A segunda é a de que, em geral e no longo prazo, a maioria tomará globalmente melhores decisões do que a minoria. A primeira tese é muito mais forte do que a segunda. Na verdade, pode apoiar-se na verdade da segunda, mas, para além disso, apoia-se na tese de que a minoria concorda com esta verdade neste contexto. A explicação da justificação política encontra-se na ideia de que a uma pessoa deve ser dada uma razão que seja aceitável à luz das suas próprias razões a favor de uma política para que não seja opressiva. Mas a tese de que de facto a minoria possui por si própria razão para pensar que é provável que a maioria esteja mais certa do que ela acerca da questão em disputa, é profundamente questionável. O contexto em que uma eventualidade tão improvável pode ocorrer é descrito pelos axiomas básicos do Teorema do Júri de Condorcet. É suficiente dizer para os propósitos presentes que ninguém defende que estes axiomas se mantenham em sociedades democráticas complexas[5]. Há dois modos pelos quais a primeira tese não é sustentável. Primeiro, a primeira tese exige que a maioria esteja provavelmente mais correcta nas decisões particulares ou, pelo menos, num conjunto particular de decisões. Segundo, a tese exige que a minoria possua boas razões para ver que a maioria está correcta em cada uma das suas decisões particulares ou conjunto de decisões. Mas se é verdade que as decisões da maioria são mais frequentemente correctas do que as decisões da minoria, isso só pode ser estabelecido empiricamente no longo prazo e seria irrazoável esperar que os membros da minoria vissem isso. Para além disso, dado que a superioridade só se mantém no longo prazo, a minoria pode razoavelmente pensar que está mais frequentemente correcta do que errada. Por isso, podemos rejeitar a tese de que a regra da maioria pode fornecer à minoria uma justificação política para as decisões da minoria.

Percorremos o círculo total da explicação instrumentalista do valor da deliberação e da sua associação com a regra da maioria. Ainda que pareça razoável pensar que a deliberação tem efeitos benéficos sobre os resultados da tomada de decisão política, parece muito difícil aceitar as teses particulares defendidas aqui por Manin e Rousseau. O impacto benéfico de determinadas deliberações políticas públicas deve ser de longo prazo e amiúde não deve ser experimentado por aqueles que se envolveram na deliberação. Assim, a explicação deliberativa, se for o caso de apelar para os tipos de considerações apresentadas imediatamente acima, deve abandonar a ideia de que o procedimento é ele próprio a fonte da justificação política. Isto porque o procedimento deve ser avaliado e apoiado nos termos da sua capacidade real para produzir resultados que satisfaçam um padrão independente, que na sua maioria só pode ser satisfeito através de um processo confiável de discussão e votação. Assim, o procedimento não é ele próprio a fonte de justificação política; pelo contrário, os efeitos justificatórios resultam do facto dos resultados do procedimento se aproximarem de algum padrão independente.»
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[1] Veja-se Bernard Grofman e Scott Feld, "Rousseau's general will: a condorcetian perspective", American Political Science Review (Junho 1988), pp. 567-576. Veja-se também Joshua Cohen, "An epistemic conception of democracy”, Ethics (Julho 1986, pp. 26-38 (Cohen abandonou posteriormente esta concepção). Veja-se também David Estlund, "Democratic theory and the public interest: Condorcet and Rousseau revisited", American Political Science Review (Dezembro 1989), pp. 1317-1322, para uma discussão útil dessa abordagem.
[2] Rousseau, The Social Contract and Discourse, p. 278.
[3] Bernard Manin, "On legitimacy and political deliberation", Political Theory (Agosto 1987), p. 354.
[4] Ibid., p. 359.
[5] Ver o meu "Freedom, Consensus and Equality in Collective Decision Making”, Ethics (Outubro 1990), pp. 151-181, para uma critica da aplicação do teorema na democracia. O teorema afirma que quando um grupo se defronta com uma escolha entre duas alternativas, e cada membro do grupo tem em média a probabilidade maior do que 0,5 de escolher a melhor alternativa, então os grupos com mais membros terão a probabilidade próxima de 1 de chegar à melhor escolha quando escolhe por um método maoritário. As dificuldades estão no facto das questões políticas nunca virem travestidas de escolhas dicotómicas e não está claro que os votantes sejam independentes uns dos outros e nem sequer o que o próprio axioma significa. Para além disso, é difícil ver por que alguém atribuiria a outra pessoa uma probabilidade de estar correcto superior a 50% quando discorda dela quanto à resposta certa.
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domingo, 6 de julho de 2008

Iris Marion Young, “A Acção Afirmativa e o Mito do Mérito” (Parte V)

«Ainda que estes quatro obstáculos para uma definição e uma avaliação normativa e culturalmente neutra do desempenho no trabalho se apresentem em muitos tipos de trabalho, é no trabalho profissional e de gestão que são mais manifestos. Estes dois tipos de trabalho incluem geralmente uma grande variedade de capacidades e tarefas. A maioria destas tarefas, ou de todas elas, assenta no uso da capacidade crítica, da discrição, imaginação e acuidade verbal, e nenhuma destas qualidades é exactamente mensurável por alguma escala objectiva, valorativamente neutra. O êxito dos objectivos profissionais e de gestão implica geralmente uma complexa série de relações e dependências sociais, até ao ponto de por vezes ser pouco razoável responsabilizar os profissionais por não terem alcançado os objectivos (Rausch, 1985, pp. 87-1039. Por último, os trabalhos profissionais e de gestão são frequentemente avaliados não só por quem ocupa posições superiores numa hierarquia descontínua de tarefas, mas também por clientes que possuem pelo menos algum conhecimento da natureza dos trabalhos e das capacidades que estes exigem, e que, portanto, não estão em condições de aplicar critérios de desempenho técnico que sejam normativa e culturalmente neutros.

Se as posições profissionais e de gestão são ainda menos susceptíveis de ser avaliadas de acordo com valorações neutras do que outros trabalhos, então isto cria um problema especial para a legitimação de uma divisão hierárquica do trabalho. Dado que estes são os cargos mais escassos e melhor recompensados, e portanto os cargos em que se exige maior competência, é sobretudo para eles que se precisa de um critério de mérito valorativamente neutro. Para estes cargos não é suficiente que aqueles que tomam decisões sejam capazes de justificar que a pessoa escolhida possa realizar o trabalho; devem justificar também que entre todos os candidatos essa pessoa será a que melhor pode realizar esse trabalho. Para que pretensões comparativas deste tipo feitas sob condições de competência estrita sejam legítimas deve ser possível definir e medir com precisão a competência técnica dos indivíduos. Mas este requisito está menos presente precisamente naqueles trabalhos que são procurados por mais pessoas (Cfr. Fallon, 1980, p. 849; Wasserstrom, 1980a, p. 68).

Apesar do princípio do mérito exigir uma definição técnica imparcial das qualificações, os critérios realmente utilizados para determinar as qualificações tendem a abarcar ou incluir valores, normas e atributos culturais particulares – tais como se as pessoas avaliadas agem em conformidade com certas normas sociais, se promovem objectivos organizacionais especificamente definidos, e se demonstram competências e características sociais habitualmente valorizadas. As pessoas que trabalham nas fábricas são frequentemente avaliadas pela sua pontualidade, obediência, lealdade e atitude positiva; as que são profissionais poderiam ser avaliadas pela sua capacidade de expressão, pelo seu sentido de autoridade e pela sua capacidade para trabalhar eficazmente em grupo.

Permitam-me fazer finca-pé no facto de que usar critérios como estes não é necessariamente inadequado; a questão é que são critérios normativos e culturais e não cientificamente neutros. Quer dizer, estes critérios têm que ver com saber se a pessoa avaliada apoia e internaliza valores específicos, segue implícita ou explicitamente normas sociais de conduta, apoia objectivos sociais, ou mostra traços de carácter, conduta ou temperamento específicos, considerados desejáveis por quem avalia. O uso de critérios normativos e culturais, para além da competência técnica, com que tais critérios frequentemente se entrelaçam, é na maioria das vezes inevitável.

Os especialistas em avaliação do desempenho da gestão não ocultam o facto dos sistemas de avaliação do mérito não medirem imparcialmente a produtividade técnica. Um autor que escreve sobre o desempenho no trabalho define um critério de avaliação como “uma conduta ou um conjunto de condutas que a gestão valoriza suficientemente para que seja capaz de a descrever, prever (seleccionar em função dela), e/ou a controlá-la”. A escolha de critérios, admite esse autor, decorre de uma avaliação completamente “subjectiva” feita pela gestão, resultado do consenso entre gestores ou entre gestores e empregados (Blumfield, 1976, pp. 6-7; cfr. Sher, 1987b, p. 199).

Um estudo sobre as práticas de avaliação de desempenho torna manifesto que quem avalia o desempenho profissional ou de gestão baseia-se comummente em juízos relativos a traços definidos de forma ampla, tais como a liderança, a iniciativa, a cooperação, o sentido crítico, a criatividade ou a segurança, em vez dos resultados do desempenho e comportamentos mais específicos (Devrie e tal., 1980, p. 20). Os autores desse estudo consideram uma forma inferior de avaliação julgar com base em traços de personalidade ou de carácter, porque esses traços só podem ser definidos de forma vaga, fazendo assim com que a avaliação realizada pareça estar ligada aos propósitos e preferências dos avaliadores. Os autores desse estudo recomendam a gestão de objectivos como o sistema de avaliação mais objectivo e valorativamente neutro. Segundo este critério de gestão, avalia-se de acordo com o facto das pessoas em causa alcançarem os objectivos previamente definidos pelos supervisores ou pelos empregados e os supervisores conjuntamente, e em que medida os alcançam.

Ainda que seja seguramente mais objectiva que a avaliação segundo os traços de carácter, a gestão de objectivos dificilmente será valorativamente neutra, dado que os valores estão geralmente incorporados na definição dos objectivos. Rausch (1985, cap. 5) defende, para além disso, que a gestão de objectivos perdeu credibilidade porque frequentemente quem gere é incapaz de alcançar os seus objectivos por razões que estão fora do seu controlo. O autor defende que a avaliação do desempenho é inevitavelmente subjectiva e está carregada de valor, e por essa razão recomenda as avaliações feitas por pares e as avaliações feitas por vários supervisores em vez de um só.

Se a avaliação do mérito é inevitavelmente subjectiva e depende das valorizações de quem avalia, então a avaliação do mérito justificará a hierarquia apenas se quem avalia for imparcial no sentido forte de não estar influenciado pela perspectiva social de um grupo ou cultura em particular. Defendi no capítulo 4 que esse ponto de vista imparcial no âmbito público é uma ficção. Também o é nas instituições individualmente consideradas. A convicção de que quem avalia pode e deve ser neutro relativamente a grupos, à forma de vida e a normas culturais, na valorização do desempenho e da competência, mascara o seu contexto e parcialidade reais. Além do mais, como analisarei mais detalhadamente a seguir, esses métodos de avaliação imparciais ou objectivos são impossíveis mesmo considerando medidas quantificadas e testes padronizados.

No interior da divisão hierárquica do trabalho, quem avalia os méritos está numa posição superior à dos avaliados, ocupando cargos de relativo privilégio. Os seus critérios de avaliação reforçam frequentemente as normas de conformidade que contribuem para a manutenção e reprodução serena das relações de privilégio, hierarquia e subordinação existentes, ao invés de avaliar de forma neutra apenas a competência e o desempenho técnicos. Para além do mais, na nossa sociedade as hierarquias de privilégio estão claramente estruturadas pela raça, género e outras diferenças de grupo, de maneira que os avaliadores são por regra homens brancos heterossexuais com corpos capacitados, e as pessoas que eles avaliam pertencem a outros grupos.

Os membros dos grupos subordinados são afectados pelo menos por duas fontes de desvantagens relacionadas com o grupo, ainda que os avaliadores acreditem ser imparciais. Como defendi no capítulo 1, o ideal de imparcialidade propícia a universalização do particular. Os critérios de avaliação acarretam necessariamente implicações normativas e culturais e, portanto, não são frequentemente neutros relativamente ao grupo. Estes critérios acarretam com frequência pressupostos sobre os estilos de vida, estilos de conduta e valores que reflectem a experiência dos grupos privilegiados que os concebem e implementam. Dado que a ideologia da imparcialidade leva quem avalia a negar a particularidade dos seus padrões, os grupos com experiências, valores e formas de vida diferentes não satisfazem os critérios de avaliação. Por exemplo, no capítulo 6 analisei os argumentos feministas no sentido de que muitas normas supostamente neutras e não questionadas do trabalho nas empresas assumem implicitamente a socialização masculina ou um estilo de vida masculino. Para dar outro exemplo, uma empregada ou empregado que não olhe nos olhos o empregador homem e branco pode ser visto como suspeito ou desonesto; mas essa empregada ou empregado pode ter sido educado numa cultura em que afastar o olhar seja um sinal de deferência.

Em segundo lugar, como defendi no capítulo 5, os juízos quotidianos sobre as mulheres, as pessoas de cor, os homossexuais e as lésbicas, as pessoas com deficiência, e as pessoas adultas – e a interacção com todos estes grupos – são frequentemente influenciados por aversões ou desvalorizações inconscientes. Deste modo, as pessoas que avaliam, especialmente aquelas que pertencem a grupos definidos como neutros, transportam frequentemente consigo visões enviesadas e preconceitos inconscientes contra os grupos especialmente referidos. Um grande número de estudos mostrou, por exemplo, que bastantes pessoas brancas qualificam mais negativamente os candidatas ou candidatos negros para um trabalho do que as pessoas brancas com credenciais idênticas (McConohay, 1986). Estudos similares mostraram que o mesmo currículo recebe uma qualificação consideravelmente menor quando tem um nome de mulher do que quando tem um nome de homem (Rhode, 1988, p. 1220).»
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sexta-feira, 4 de julho de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte VIII)

«Consenso fraco e razoabilidade

Examinemos cada uma destas opções à vez. Primeiro, então, suponhamos que embora a deliberação pública não alcance o consenso sobre questões de detalhes, gera um consenso sobre questões mais gerais. Há aqui dois tipos de consenso fraco. Um é o de que de algum modo todos chegam a um acordo sobre princípios e valores básicos que devem fundamentar a associação política, mas discordam sobre a prioridade correcta das relações entre esses valores. Assim, por exemplo, dois grupos podem chegar a um acordo, como resultado da deliberação pública, de que a liberdade interpretada de um certo modo e a igualdade interpretada de algum outro modo são os valores centrais que devem ser incorporados às instituições políticas. Suponhamos que o acordo seja aqui sobre concepções muito específicas desses valores. Chamemos a isso um consenso sobre a lista de valores. Aquilo sobre o qual os grupos acabam por divergir refere-se à importância relativa desses valores. Por exemplo, suponhamos que um grupo coloca a liberdade antes da igualdade e que um outro inverta a ordem. A consequência para a política neste caso, digamos, é que um grupo favorece uma economia do laissez-faire com poucos constrangimentos sobre a competição e poucas garantias de um bem-estar mínimo; o outro favorece uma sociedade social-democrática que tem mercados altamente regulados em certas áreas e controlo do Estado noutras, e um sistema de impostos redistributivos associado a um forte aparato do Estado do bem-estar que assegura uma vida decente para todos independentemetne de estarem ou não empregados. A ideia agora é a de que a maioria foi persuadida do valor de uma dos arranjos da igualdade e liberdade e, consequentemente, considera um desses diferentes tipos de instituições como sendo justificado. Mas a minoria, que não está persuadida pela concepção da maioria, pode ver que a combinação deriva de valores similares aos seus, embora numa ordem inversa de prioridade e com intensidade diferente atribuída a cada um deles. A minoria, embora discorde sobre questões de políticas e mesmo, em alguma medida, sobre questões de princípio, considera que as políticas lhes foram politicamente justificadas com base na lista de valores que ela aceita.

Consideremos um segundo tipo de consenso fraco. Agora suponhamos que todos cheguem a acordo em resultado de deliberação pública de que a igualdade e a liberdade são os valores mais importantes de uma sociedade política. Mas eles não concordam quanto às interpretações desses valores. Chamemos a isso consenso abstracto. De facto, suponhamos que se formam dois lados e que estes dois campos favorecem, num caso, o Estado de laissez-faire que descrevi acima, e no outro, a social-democracia que descrevi acima. Mais uma vez, dado que o grupo perdedor vê que as políticas do grupo vencedor se baseiam, em abstracto, nos mesmos valores, consideram o resultado como politicamente justificado.

Estas duas abordagens apresentam diversas dificuldades sérias enquanto defesas da concepção justificatória. Primeiro, é falso esperar que a deliberação pública possa genericamente realizar ou sustentar um ou outro destes tipos de consensos. Podemos ver uma matriz ampla de valores nas sociedades democráticas contemporâneas e parece não haver nelas qualquer consenso sobre que lista de valores será a melhor. Junto aos valores da igualdade e da liberdade e, algumas vezes, no seu lugar, vemos os valores da comunidade, do mérito, da vantagem mútua, da virtude, da eficiência, da homogeneidade religiosa, do nacionalismo e de vários tipos de multiculturalismo publicitados como valores políticos. Não se pode dizer que estes valores tenham surgido simplesmente pelo facto do processo de deliberação pública não ser suficientemente aberto ou racional. Pelo contrário, são o resultado de um sistema de deliberação aberto e racional. Eles emergem não apenas no discurso político habitual, mas também nas discussões académicas, que estão o mais livre possível de pressões da intimidação, ignorância, irracionalidade, etc. O sistema de deliberação pública nas sociedades democráticas contemporâneas pode tornar-se inequivocamente mais igualitário, racional e aberto, mas é difícil acreditar que este sistema possa produz menos diversidade de perspectivas. Dizê-lo de outra forma pressuporia a verdade de uma hipótese profundamente especulativa, para a qual não podemos razoavelmente expressar a nossa fidelidade. A ideia de que um consenso fraco surgirá ou que já existe está bem distante da nossa experiência comum das sociedades políticas democráticas liberais.

Uma segunda preocupação com esta abordagem é a de que não está claro quais serão os limites da justificação política. Presumivelmente alguns tipos de acordos abstractos são insuficientes para a justificação política. Por exemplo, alguém pode concordar que a justiça deve ser a preocupação mais importante das instituições jurídicas da sociedade, mas semelhante consenso abstracto é compatível com uma divergência de perspectivas extremamente ampla. Em muitos desses casos é claro que um consenso sobre uma lista ou um princípio abstracto não pode fundamentar qualquer justificação política. É difícil ver como pode a ideia de justificação política ser viável na ausência de um critério sério que demarque os tipos de acordos que podem servir como base da justificação política. Ou pelo menos precisamos de um critério que distinga aqueles casos de desacordos sobre a interpretação ou a ordenação que anulam a justificação política daqueles que não o fazem.

Um critério possível que faz sentido afirma que, embora os membros de uma minoria discordem da maioria sobre uma interpretação particular ou uma ordenação de valores sobre a qual há consenso, podem ver como a maioria conseguiu alcançar a sua interpretação de uma forma razoável. Eles podem ver como alguém pode razoavelmente aceitar a concepção que a maioria aceita. E assim, por sua vez, podem ver como podem razoavelmente aceitar a posição da maioria. Isto pode ser suficiente para a justificação política da maioria. Isso será, pelo menos em parte, uma tese psicológica sobre a minoria. Não exige que a minoria avalie a posição da maioria por meio de uma concepção correcta de razoabilidade (incluindo padrões de evidência e inferência). Ela avalia a concepção da maioria usando os seus próprios padrões de razoabilidade. Contudo, o problema deste critério é o facto de ser bastante pouco confiável como meio de avaliar a justificação política. É provável que o que as pessoas vêem nesta relação varie bastante de uma pessoa para outra. Os padrões que aplicam ao fazer estas avaliações de razoabilidade podem provavelmente variar. Consequentemente, é altamente provável que muitos dos membros da minoria venham a pensar que a maioria não alcançou a sua conclusão de uma forma razoável. Por isso, não vão pensar que podem razoavelmente aceitar o que a maioria tenha feito e não verão que a maioria lhes tenha justificado politicamente a sua interpretação ou ordenação dos valores políticos comuns.

Há aqui um outro critério a insinuar-se. O defensor da concepção justificatória pode exigir que a minoria avalie a concepção da maioria apelando a padrões correctos de razoabilidade. Agora a possibilidade será apelar às teorias tradicionais de evidência e de inferência oferecidas pelos epistemólogos[1]. Um membro da minoria pode ver que dadas as premissas que a maioria aceita e dada a pretensão geral de que estão de acordo sobre elas, a maioria está justificada (de acordo com a epistemologia correcta) ao aceitar o que eles aceitam. É claro que as premissas teriam também de ser pelo menos defensáveis. Podemos estender este raciocínio dizendo que mesmo que a minoria não veja isso, deve vê-lo, para que possa desta forma aceitar razoavelmente a escolha da maioria mesmo no caso de discordar dela.

O problema deve ser agora óbvio. Se aceitarmos a tese de que as pessoas discordam sobre questões relacionadas com a interpretação do consenso fraco, então é bastante provável que venhamos a encontrar algum desacordo sobre se as premissas em discussão a partir das quais as interpretações alternativas são defendidas, serão de facto defensáveis, ou sobre se os argumentos a partir do acordo quanto a princípios e quanto a premissas em discussão fornecem de facto um apoio para a interpretação alternativa ou para a ordenação de princípios aceite pela maioria. Nesse caso será ou por a epistemologia estar sujeita a controvérsias ou por haver um desacordo sobre se o critério epistemológico de justificação encontrado fundamenta as premissas em discussão ou a concepção alternativa. O que constitui, por outras palavras, a aceitação razoável de uma posição diferente será provavelmente ela própria objecto de controvérsia. Portanto, alguns verão que outros chegam às suas concepções alternativas por meios razoáveis e alguns verão o contrário.

Se o defensor da concepção justificatória diz que a minoria não avaliou as concepções através dos padrões epistemológicos correctos (isto é, padrões de evidência e de inferência), então devemos perguntar por que a avaliação da minoria deveria ser feita por referência a padrões que ela não aceita. Sob a suposição de que se pode defender uma pluralidade de epistemologias, embora de forma inconclusiva, é difícil ver por que a minoria deve aceitar os resultados de uma epistemologia que não aceita. A ideia por trás da concepção justificatória é a de que não devem ser impostos às pessoas ideais políticos quando elas não podem razoavelmente dar a sua aquiescência a esses ideais, já que essa imposição seria opressiva. Como consequência, é difícil ver como poderia permitir que fossem padrões epistemológicos aos cidadãos quando esses padrões estão abertos à disputa[2]. Para além disso, exigir que os cidadãos adiram a certos padrões de evidência e inferência quando os rejeitam e quando os seus próprios padrões são defensáveis, parece particularmente opressivo à luz da concepção justificatória. É assim porque essa exigência, ao negar-Ihes o uso dos seus próprios padrões de avaliação igualmente defensáveis, retiraria de facto a avaliação dos ideais políticos das suas mãos. Se os padrões de avaliação das concepções de valores políticos não devem violar o ideal básico inspirador implícito na concepção justificatória, devem ser padrões defendidos por todos[3]. Infelizmente, contudo, não deve ser possível encontrar um acordo sobre esses padrões. Por isso, parece que a abordagem do consenso fraco não pode fornecer uma explicação da justificação política, mesmo quando complementada por uma concepção de razoabilidade.

Outra dificuldade com o uso de padrões correctos de razoabilidade, enquanto forma de avaliar se a posição da maioria foi justificada politicamente, é a de que a maioria pode falhar nesses padrões e a minoria pode ter êxito na satisfação desses padrões ao elaborar as suas interpretações. Nesse caso, a minoria teria justificado politicamente à maioria a sua posição (nesta explicação), mas a maioria não teria justificado politicamente à minoria a sua concepção. Um outro resultado possível desta abordagem é o de que nenhum grupo consegue justificar a sua concepção aos outros com base em padrões correctos de razoabilidade. E isto pode acontecer mesmo quando todos acreditam que a justificação política tenha ocorrido. Parece que estamos a ficar cada vez mais distantes de uma sociedade em que "os termos apropriados de associação fornecem uma estrutura para ou são o resultado da deliberação dos cidadãos".»
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[1] Veja-se Gaus, Justificatory Liberalism, p. 4, sobre uma tentativa de fundamentar uma concepção de justificação política numa teoria epistemológica, embora não a use neste contexto.
[2] Para algumas considerações paralelas, veja-se Jean Hampton, "The moral commitments of liberalism'”, in The Idea of Democracy, eds. David Coop, Jean Hampton e John Roemer (Cambridge: Cambridge University Press, 1993).
[3] Como Rawls argumenta em Political Liberalism, p. 224.
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quarta-feira, 2 de julho de 2008

Joshua Cohen, “Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa” (Parte IV)

«Três princípios

A concepção agregativa de democracia promete as protecções exigidas por um processo justo de escolha colectiva vinculativo, incluindo as protecções contra a discriminação que acabariam por minar a pretensão de que o processo garante a consideração igual. Afirmei anteriormente que a concepção deliberativa forneceria uma base para uma garantia mais ampla das liberdades básicas. Agora está na altura de demonstrar essa afirmação. A ideia principal é a de que a concepção deliberativa exige mais do que atribuir uma consideração igual aos interesses dos outros; exige, também, que encontremos razões politicamente aceitáveis - razões que sejam aceitáveis para os outros, dado o pano de fundo das diferenças de convicções prudentes. Chamarei este requisito de princípio da inclusão deliberativa.

Considere-se, como exemplo, o caso da liberdade religiosa. As concepções religiosas colocam exigências de uma ordem especialmente elevada - talvez obrigações transcendentes - aos seus seguidores; além disso, se vemos essas exigências a partir do ponto de vista do crente, então não as podemos pensar como auto-impostas. Em vez disso, as exigências são estabelecidas pelo conteúdo das convicções que os agentes consideram verdadeiro. Portanto, seguidores razoáveis não podem aceitar como razões suficientes para justificar uma lei ou um sistema de políticas as considerações que impediriam o seu consentimento àquelas exigências. O que dizer então das pessoas que não compartilham dessas concepções? (Descreverei a questão a partir do ponto de vista dos cidadãos que têm convicções morais fundamentais, mas não convicções religiosas. Poderiam ser feitas observações em grande medida paralelas a partir do ponto de vista dos cidadãos com convicções religiosas diferentes.) Eles poderiam considerar irrazoáveis todas as concepções religiosas que imponham essas exigências rigorosas, independentemente dos seus conteúdos e fundamentações. Não vejo qualquer fundamento para essa concepção. Ou poderiam tratar as exigências religiosas como preferências intensas, às quais teria que ser dada consideração igual em conjunto com outras preferências de igual intensidade. Esta resposta redutora revela má vontade para ver o papel especial das convicções religiosas a partir do ponto de vista da pessoa que as tem, uma má vontade para ver em que medida a concepção religiosa, em virtude do seu conteúdo, afirma ou implica que as exigências fornecem razões especialmente convincentes.

Em alternativa, eles podem considerar seriamente que essas exigências impõem aquilo que os seguidores razoavelmente encaram como obrigações fundamentais, aceitar a exigência de encontrar razões que possam superar essas obrigações e reconhecer que tais razões normalmente não podem ser encontradas. O resultado é a liberdade religiosa, compreendida de modo a incluir a liberdade de consciência e de culto. Emerge como o produto do carácter obrigatório das exigências religiosas - que são consideradas, do ponto de vista daqueles que estão sujeitos a elas, como questões de obrigação fundamental-, juntamente com a condição de encontrar razões que aqueles que estão sujeitos a essas exigências possam razoavelmente estar dispostos a reconhecer, e o facto dos cidadãos que não são religiosos possuírem convicções fundamentais que eles consideram impõr razões especialmente convincentes.

Suponhamos, então, que impedimos outros indivíduos de satisfazerem essas exigências por razões que estão inclinados - à luz de uma concepção que controla a sua convicção - a considerar como insuficientes. Isto significa negar-lhes a sua posição de cidadãos iguais - plena pertença ao povo cujas acções colectivas autorizam o exercício do poder. E isto, de acordo com a concepção deliberativa, é a fracasso da democracia. Falhamos na apresentação de uma justificação para o exercício do poder segundo considerações que todos aqueles que estão sujeitos ao poder, e dispostos a cooperar segundo termos razoáveis, possam aceitar. Há vários modos de excluir indivíduos e grupos do povo, mas este é seguramente um deles.

Estes pontos sobre a liberdade religiosa - principalmente sobre o seu exercício livre - nada dizem sobre como lidar com reivindicações de excepções por motivos religiosos das obrigações gerais com uma justificação secular forte (incluindo as obrigações de educar os filhos); ou se as disposições especiais têm de ser formuladas para convicções especificamente religiosas, enquanto distintas de convicções éticas prudenciais com raízes não religiosas[1]. O meu propósito aqui não é resolver ou mesmo enfrentar estas questões: qualquer concepção que reconheça os direitos de exercício livre precisará enfrentar estas questões difíceis. O meu objectivo é apenas mostrar que uma concepção deliberativa de democracia não está impedida - pela sua estrutura - de reconhecer um papel fundamental aos direitos de liberdade religiosa; de facto, deve proporcionar um espaço para esses direitos[2].

Finalmente, enfatizo que o ponto de garantia da liberdade religiosa, que cai sob a exigência da inclusão deliberativa, não é estritamente político: não habilita as pessoas a participarem na política - ou participarem sem temor -, nem é o seu objectivo aperfeiçoar a discussão pública através da inclusão de vozes mais diversas
[3]. Pelo contrário, a ideia é que a privação dessas liberdades significaria negar aos cidadãos a condição de membros iguais do povo soberano, impondo-se de formas que negariam a força de razões que seriam, à luz de suas próprias concepções, convincentes. As razões para a privação são inaceitavelmente exclusivas, porque são incompatíveis com o ideal de orientar o exercício do poder mediante um processo de dar razões consistente com um sistema de cidadãos livres e iguais.»
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[1] Sobre este último ponto, a chave para o argumento da liberdade religiosa é a de que o conteúdo de uma concepção atribui obrigações sérias à pessoa que a sustenta. Mas um conteúdo especificamente religioso não é essencial.
[2] Esta explicação da liberdade religiosa pode parecer apoiar-se na ideia de um direito natural à liberdade religiosa - quer dizer, que as razões são julgadas aceitáveis num processo deliberativo apenas se elas aceitarem este direito. Se a ideia de um direito natural à liberdade religiosa se traduz na afirmação de que há um direito que só pode ser suprimido sob pena de ilegitimidade, então a concepção deliberativa inclui direitos naturais. Mas as concepções dos direitos naturais têm reivindicado mais do que isto: elas oferecem uma explicação da base dos direitos fundamentais da natureza humana, ou lei natural, ou ordem normativa pré-política à qual a sociedade política deve conformar-se. A ideia de legitimidade democrática não depende dessa explicação - ainda que nada afirme de inconsistente com ela. É suficiente que a liberdade religiosa tenha uma explicação vinculada à ideia de legitimidade democrática. Para os propósitos do argumento político, nada mais precisa ser dito, positiva ou negativamente.
[3] Roberto Unger argumenta que um sistema de direitos de imunidade é um dos componentes de uma ordem democrática, pois "a liberdade como participação pressupõe liberdade como imunidade". Rejeitando a visão dos "críticos da teoria democrática tradicional", que sustentam que "as oportunidades de participação [são] mais do que substitutos satisfatórios para as garantias de imunidade”, Unger vê os direitos de imunidade como necessários quando se espera que um cidadão deva ter "a segurança que o encoraje a participar activa e independentemente no processo de tomada de decisão colectiva”. Em False necessity (Cambridge: Cambridge University Press, 1987) p. 525. Concordo com as observações de Unger, mas penso que a concepção de democracia pode abrir um espaço menos instrumental a certas liberdades, mesmo quando essas liberdades não são procedimentais.
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