domingo, 25 de maio de 2008

Robert Nozick, "Facto e valor" (Parte IX)

«Na secção anterior sobre a estruturação de Kant, considerámos se a separação entre facto e valor poderia de algum modo ser eliminada como resultado do acto de estruturação ou síntese que o eu faz de si mesmo, e verificámos que isso não envolveria a totalidade da característica moral essencial – sendo essa entidade uma que busca valor. As nossas reflexões presentes poderiam ser incluídas nesse âmbito. Se o acto de estruturação de si enquanto uma entidade que procura valor envolve, como um componente da auto-síntese, a escolha reflexiva pela existência de valor, então de facto o valor poderia surgir da estruturação de Kant. (Este modo de estruturação não está sujeito à objecção feita à anterior – de que diminui o significado da força moral – uma vez que esta estruturação não faz com que o valor de outra pessoa esteja dependente ou resulte de si mesma, excepto a ponto de envolver o desejo de si mesmo em seguir e procurar valor.) Tal estruturação poderia não constituir parte de um argumento que pudesse convencer alguém (ele compromete-se a acreditar) que existe valor, no entanto, uma vez que isso depende da sua busca, da sua saga na procura de valor, enquanto ingrediente essencial de si assim estruturado, mais do que do seu abandono da busca. É preciso notar que o nosso desejo em oferecer uma prova filosófica de uma teoria ética, um argumento irrevogável que forçasse alguém a acreditar nessa conclusão, queira essa pessoa acreditar ou não, choca com o desejo de autonomia em ética.

O ponto de vista que apresentámos concede-nos autonomia: a escolha da existência do valor é pautada por padrões de valor pré-existentes. Ao mesmo tempo proporciona um padrão externo a seguir ou a adoptar: o carácter e perfil do valor, assim escolhido, não está sujeito a escolha de modo semelhante. Para os sociologistas a liberdade de escolha no seio das religiões é um factor plausível para a secularização – uma pessoa não vê a sua opção religiosa como compulsiva, assim o seu próprio acto de escolha é incompatível com religiões que determinam que se esteja obrigado à sua essência. A escolha que aqui analisamos não se enquadra dentro dos valores, mas entre a existência ou não de valor. Tal opção pela existência de valor, que é vista como correcta após ter sido feita, não é, penso eu, incompatível com o sentir da necessidade de valor para se apresentar uma pretensão externa. Apesar de tudo a autonomia é preservada pelo facto de existir esta opção pela existência de valor.

Por que pertence a autonomia ao valor? (Se é do valor, então só pode ser conseguida através de uma escolha que envolva valor.) De acordo com a ideia de que o valor é uma unidade orgânica, podemos verificar que o acto de aceitar o valor de forma autónoma, optando pela existência de valor, determina uma ligação mais forte entre a pessoa e o valor, e dessa forma uma ligação mais valorável, do que uma relação sem autonomia. (Todavia, algo sobre o valor, a sua existência ou natureza, tem que ser externo se quisermos obter valor ao estabelecermos uma relação com ele; além disso, a ligação com um factor externo possibilita a unificação de uma grande diversidade e por isso é mais valorável.) Pode aquele que escolhe a existência de valor imaginar-se desse modo a poder dar origem ao valor?

Esta introdução da escolha da existência do valor também fornece uma corrente interna no âmbito da teoria do valor, a partir da qual o valor terá uma relação (talvez sinuosa) com as motivações da pessoa. A grande preocupação acerca dos pontos de vista morais que tomam a intuição como postulado num universo de factos morais pré-existentes completamente independentes – que poderíamos ser aborrecidos por estes factos ou tornarmo-nos indiferentes a eles – é evitada deste modo. Há uma percepção geralmente aceite de que a ética é de certo modo mais subjectiva do que outros factos, tendo não só a ver com as nossas escolhas e reacções, mas estando ligada a elas de forma muito estreita. Tal ligação é a que une a existência de valor com a escolha (reflexiva) de que ele exista. (Poderia existir uma teoria epistemológica que faz uso da escolha de modo semelhante, “deixemos que haja factos”?) Embora o carácter do valor assim escolhido não dependa de nós, há espaço para a criatividade moral (tal qual foi discutida na secção sobre pluralismo) quando tomamos em consideração e avaliamos diferentes valores, quando formamos uma existência que inclui uma nova e original unidade orgânica constituída por uma diversidade de valores. Além disso, se as condições não se concentrarem numa dimensão única do valor intrínseco, mas deixar várias possibilidade de fora, então haverá lugar para uma escolha de entre (os diversos pesos ou avaliações) das poucas dimensões possíveis e viáveis.*

FUNDAMENTOS DA ÉTICA

A relação entre facto e valor

De que modo podemos então descrever a relação entre facto e valor? Factos específicos F não implicam valor ou estados de valor V. É necessária uma premissa adicional, nomeadamente: a de que existe valor. Esta é a premissa adicional mais fraca possível (com alguma qualidade moral) de valor. No entanto, serve o nosso propósito, atendendo ao resto do aparato crítico deste capítulo, quando pretendemos estabelecer o modo como um valor específico pode resultar de factos específicos. Esta premissa simples é a exigência (quantificada de modo existencial) de que haja algum valor verdadeiro ou estado de valor. (Se a premissa de que existem alguns juízos de valor verdadeiros fosse valorável, então, pelo menos, existiria um além dela.) Isto está a uma grande distância de fazer passar valores específicos clandestinamente para a derivação.

Deveríamos esperar uma relação mais próxima do que esta entre facto e valor? De acordo com a ideia de que o valor é uma unidade orgânica, os factos podem ser valoráveis tornando presente e realizando a estrutura ou configuração da unidade orgânica que é o valor; podem ser modelos do valor. Porém, a nossa questão aqui é sobre a ligação entre, por exemplo, a ideia de que “o facto F tem um grau de unidade orgânica d” e a ideia de que “F tem valor V”. Podemos concluir que a unidade orgânica constitui valor apenas na suposição de que existe valor; e esta suposição é suficiente. Se as condições necessárias ao valor intrínseco especificam a dimensão do “grau de unidade orgânica” enquanto um candidato singular à existência de valor, então ao acrescentarmos uma asserção adicional de que existe (uma dimensão de) valor estamos a criar condições suficientes para a presença de valor na unidade orgânica. De que modo esta premissa adicional, a asserção de que existe valor, está relacionada com os factos? A nossa teoria advoga que a pessoa imputa de modo reflexivo essa asserção aos factos. (Não seria melhor que os factos imputassem a existência de valor a si mesmos, em vez de ser a pessoa a fazê-lo? Todavia não será essa pessoa e esse seu acto, parte dos factos?)

Atendendo à escolha da existência de valor, evidenciada no plano de fundo da premissa que o valor existe, de que modo se relaciona o valor com o facto? Serão, então, alguns factos, os que possuem unidade orgânica, idênticos ao(s) valor(es)? Devo dizer: a relação reside na unidade orgânica – os valores estão ligados de modo orgânico a (alguns) factos. (Que mais poderíamos esperar?) A escolha da existência de valor comporta (alguns) factos na relação orgânica com o valor, sendo que eles são unificados mas não identificados.

Quão impermeável poderá ser esta relação de unificação orgânica? Poderíamos continuar a especular. A identidade é um modo específico de unidade muito forte, e talvez a razão pela qual os factos não são idênticos ao valor (mesmo dando forma à existência de valor) seja a de que estes factos, aqueles com os quais lidamos, não são eles próprios suficientemente unificados de forma orgânica para que possam ser considerados idênticos ao valor. Partamos do princípio de que F é um facto, um facto valorável, com um grau de unidade orgânica d. Talvez a (unidade orgânica da) relação deste facto F com o valor não possa ela própria constituir um grau mais firme do que d. O grau de unidade orgânica do facto impõe um limite ao modo como pode estabelecer uma relação estreita com o valor. (Uma vez que coisas que têm valor de facto realizam e tornam presentes as estruturas abstractas que são os valores, segue-se que estas relações não são as mais estreitas possíveis.) O valor da relação de um facto específico com um valor depende, então, da capacidade valorável desse facto. A relação exacta de factos organicamente unificados (ou situações factuais) com o valor depende do quão unificados sejam os factos. No limite, idêntico ao valor está tudo o que for unificado num grau o mais elevado possível – supondo que a identidade é o factor mais forte nessa relação, de modo a que a unidade orgânica pudesse assentar nela para conseguir valor.

Terá havido algum problema na relação entre factos e valores porque os nossos factos ainda não foram suficientemente unificados a nível orgânico, não ocorreu uma unificação suficientemente forte a partir de uma diversidade consideravelmente vasta? Caso seja verdade, não é surpreendente que alguns autores (por exemplo, os teóricos do “ajustamento” moral), em vez de se referirem a identidade, caíram na tentação de usar terminologia imprecisa sobre unidade orgânica para descrever a relação entre facto e valor, com raiz no mundo das artes ou da psicologia de gestalt.

Na nossa discussão anterior sobre o valor que o eu tem em si, insistimos que o eu não intenta tão-somente ter algo que é valorável (um corpo ou mente valoráveis, ou seja o que for), mas deseja ele próprio ser valorável. E indagámos se isto seria necessário, uma vez que mesmo quando a consciência de si mesmo é ela própria valorável, não será ainda o valor algo que a consciência de si mesmo possui – uma outra possessão? Parecia que mais nada satisfaria a consciência de si mesmo do que o valor, ser idêntico ao valor, não apenas possui-lo ou concretizá-lo.

Porém, as consciências de nós mesmos, finitas e limitadas, não são suficientemente unificadas de modo orgânico para que possam ser idênticas ao valor, podem apenas instanciar ou ter valor. No entanto, as perspectivas teológicas que referem a maior unidade orgânica possível (Deus, o Ein Sof sem limites, Satchitananda), vêem-na como sendo idêntica ao valor. Encontramo-nos agora numa posição que nos permite perceber esta ideia. O seu grau de unidade orgânica é tão grande (infinito – existem aqui normas de infinidade?) que a relação com o valor é idêntica. É valor. Podemos entender também por que o místico apresenta as sua experiência com esta grande unidade orgânica não apenas como uma experiência valorável mas como uma experiência do (que é) valor.

Mesmo assim, podemos indagar se o místico, mesmo que a sua experiência seja uma experiência de algo, de facto teve a experiência da grande unidade orgânica possível. Talvez seja apenas uma unidade orgânica parcial, tão além do que geralmente encontramos como parecendo um todo, porém ainda apenas uma parte, competindo com outras partes iguais ou mesmo superiores. Talvez não exista qualquer unidade orgânica perfeita, sendo que até mesmo num nível mais alto (se tal existir) há um esforço para atingir uma ainda maior unidade orgânica, para conter uma ainda maior diversidade, um valor ainda mais elevado. O que sabemos nós de facto acerca disso? Teorias alternativas que postulam níveis que estejam abaixo ou acima de níveis reversíveis, são compatíveis com experiências e revelações místicas.

Todavia, de acordo com a ideia da teoria do valor não parece ser importante que exista uma unidade orgânica mais perfeita, ou que os místicos tenham experiências com a existência de algo que, a um nível invisível, seja o modo como a conhecem (mais do que ter a experiência do que é parcialmente uma expressão a sua própria aspiração, ou da aspiração desse algo.) Sendo que, seja qual for o caso, sabemos o que o valor é, e podemos transformarmo-nos com base nesse conhecimento, mesmo quando nada ainda é idêntico ao valor.»

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* Nietzsche apelou a uma “reavaliação dos valores”, o que implica um conflito com valores anteriores (o que ele chama “vivissecar o peito das próprias virtudes do seu tempo, na obra Beyond Good and Evil, 212) e a criação de valores novos. Contudo, Nietzsche não reivindicou fazer a última; a tarefa de legislar sobre novos valores estaria a cabo dos futuros filósofos a quem ele chamou contramestres. Nietzsche dá-nos algumas das suas características, em observações dispersas. Seriam orgulhosos, jubilosos, decididos a triunfar sobre (excederem, aperfeiçoarem a) si mesmos, mestres de si mesmos, sólidos, vigorosos, nobres, apaixonados, poderosos, corajosos, venerando-se a si mesmos, menosprezando um tipo de vida serena, cheia de facilidades e conforto, moldando-se numa nova pessoa. A tarefa dos outros, sustenta Nietzsche, é ajudar à existência destes contramestres, criar condições que permitam a sua existência – apenas as suas vidas têm valor. (“o objectivo da humanidade não deve estar no fim mas apenas no valor elevado dos seus espécimes.” Second Untimely Meditation, 19.) Não está claro se Nietzsche acredita ou não que estes grandes indivíduos conferem valor aos restantes indivíduos, por vezes fala como se o valor transbordasse dos primeiros para os últimos (Will to Power,713,877), por vezes fala destes quase como pertencendo a uma espécie diferente ( sendo que nenhum valor se perde na tentativa da ligar os dois universos).
Qual o propósito de toda esta pujança, ousadia, e outras coisas mais, que o contramestre possui? O que fará ele com isso? Não será grande ajuda, ou muito interessante ouvir que ele tem o poder de se reinventar como algo sólido, ousado e cheio de força. Talvez Nietzsche pense que o ser que exibe estas qualidades, trabalhando no âmbito de um material inexorável e de desafios que incluem essa própria vida, possam ser valoráveis seja qual for o seu objectivo – suficientemente valorável para incluir e ter maior importância do que o acto de tirar partido, magoar ou destruir os outros. (Veja-se Beyond Good and Evil, 265, 259; e Genealogy of Morals, I, 13.) Todavia, considero que Nietzsche acredita que estes contramestres procurarão valores específicos; os valores correctos, ou em todo o caso os novos valores serão aqueles que eles procuram e seguem. Essa será a sua “determinação”. Nietzsche crê deveras nas suas qualidades as quais ele enumera de forma valorável, mais importante do que isso, na sua perspectiva, estas pessoas são uma espécie de “observadores ideais”. Os objectivos que eles escolhem seguir, seja o que for em que isso se torne, serão fixados como os que são valoráveis, pelo menos quando seguirem a sua linha de conduta). Deste modo, a perspectiva de Nietzsche é simplesmente uma provocação que não nos conduz numa direcção específica. ( A ausência de determinados valores especificados na análise de Nietzsche também foi objecto de considerações por parte de Phillipa Foot em “The Brave Immoralist”, New York Review of Books, vol. 27, 1 Maio, 1980, pp.35-37.)
Tanto quanto sabemos ou nos é dito, todas estas pessoas optarão por se tornarem mais delicadas, gentis e atenciosas com os outros, respeitadoras dos seus direitos, menos orgulhosas, e assim por diante. Nietzsche dá-nos um processo (de atracção mista) em relação aos novos valores, sem qualquer indicação sobre o resultado disso mesmo, e por isso não há qualquer garantia que esses valores sejam de facto novos. Comparemos a posição de filósofos políticos (seguidores de Leo Strauss?) que vêem a mais elevada astúcia política representada na máxima de que o mais sábio deverá escolher – não há qualquer razão no sentido de instituir a lei dos mais sábios, se eles, em toda a sua sagacidade, restabelecem o estado em que as coisas se encontravam (eleições democráticas, separação de poderes, entre outros), e em consequência disso apresentam demissão.
Embora as condições do valor intrínseco pudessem não seleccionar uma só dimensão, e por isso deixar uma margem para a escolha, são bastante restritas, e nem toda a opinião que defende a sua originalidade com muita pompa e circunstância resultará muito diferente, quando forem suprimidas as suas características claramente inadequadas.


Nozick, Robert (1981). Philosophical Explanations. Oxford: Clarendon Press, pp. 535-70 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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