sábado, 31 de maio de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte VI)

«5. A analogia com os estados
Esta teoria ajuda a resolver um paradoxo frequentemente identificado no interior da teoria liberal. Como acabei de destacar, a maioria dos teóricos liberais aceita claramente que o mundo é, e continuará a ser, composto por estados separados, supondo-se que cada um possui o direito a determinar quem pode entrar nas suas fronteiras e adquirir a cidadania. Creio que esta suposição só se pode justificar com base no mesmo tipo de valores que fundamentam os direitos de grupo para as minorias nacionais em cada estado. Creio que o ponto de vista liberal ortodoxo sobre os direitos dos estados a determinar quem possui a cidadania radica sobre o mesmo princípio que justifica os direitos de grupo no interior dos estados e que, por isso, a aceitação dos primeiros conduz logicamente à aceitação dos segundos.

Vale a pena explorar este aspecto com maior profundidade. A existência de estados e do direito dos governos a controlar a entrada através das suas fronteiras, coloca uma profundo paradoxo aos liberais. A maioria dos teóricos liberais defende as suas teorias em termos de “igual respeito pelas pessoas” e “iguais direitos dos indivíduos”. Isto sugere que as “pessoas” ou “indivíduos” possuem o mesmo direito a entrar num estado, participar na sua vida política e compartilhar dos seus recursos.

Contudo, esses direitos estão efectivamente reservados aos cidadãos, e nem todos se podem converter em cidadãos, ainda que desejem jurar lealdade aos princípios liberais. Pelo contrário, existem milhões de pessoas que querem adquirir a cidadania em diversas democracias liberais, mas que vêem a sua pretensão recusada. Mesmo os países mais abertos em termos de imigração só aceitam uma pequena parcela das pessoas que estariam dispostas a entrar se existissem fronteiras genuinamente abertas. Com efeito, é negada a entrada a potenciais imigrantes, sendo impedidos na fronteira por guardas armados. Nega-se a estas pessoas os direitos a entrar e a participar no estado porque não nasceram no grupo correcto. Por isso, a cidadania é inerentemente uma noção específica do grupo. A menos que alguém esteja disposto a aceitar um governo mundial único ou fronteiras completamente abertas (são poucos os teóricos liberais que apoiaram uma coisa ou outra), a distribuição dos direitos e benefícios em função da sua pertença a um grupo[1].

Isto gera uma profunda contradição na maioria das teorias liberais. Como sublinha Samuel Black, é frequente os teóricos liberais começarem a falar sobre a igualdade moral das “pessoas”, mas terminarem referindo-se aos “cidadãos” sem explicar ou mesmo advertir para esta mudança[2]. O que poderá justificar a restrição aos direitos de cidadania aos membros de um grupo particular, em vez de os conceder a todas as pessoas que os desejem? Alguns críticos denunciaram a incapacidade dos liberais para justificar esta restrição e salientaram que a lógica do liberalismo exige fronteiras abertas, excepto, talvez, certas restrições temporais em nome da ordem pública[3]. Seguramente que isto será correcto se nos agarrarmos à ideia de que o liberalismo deveria ser indiferente relativamente à pertença cultural das pessoas e da identidade nacional. Uma política de fronteiras abertas aumentaria de forma dramática a mobilidade e as oportunidades dos indivíduos, e se o liberalismo exige tratar as pessoas apenas “como indivíduos” sem consideração pela sua pertença a um grupo, a política das fronteiras abertas é claramente preferível de um ponto de vista liberal.

Todavia, acredito que alguns limites à imigração são justificáveis se reconhecermos que os estados liberais existem não só para proteger direitos e oportunidade iguais para todos os indivíduos, mas também para proteger a pertença cultural das pessoas. Os liberais assumem implicitamente que as pessoas são membros de culturas societárias, que essas culturas proporcionam o contexto para a escolha individual e que uma das funções da existência de estados separados é a de reconhecer o facto das pessoas pertencerem a culturas separadas. Não obstante, logo que este pressuposto tenha sido explicitado, fica claro que nos estados multinacionais a pertença cultural de algumas pessoas só pode ser reconhecida e protegida através do apoio aos direitos de grupo no interior do Estado.

Os teóricos liberais limitam invariavelmente a cidadania aos membros de um grupo concreto e não a todas as pessoas que a desejam. A razão deste facto, quer dizer, o reconhecimento e a protecção da nossa pertença a diversas culturas, é também uma razão para permitir os direitos de grupo no interior de um estrado multinacional. Podem existir outras razões para restringir a cidadania a um grupo particular que não se refiram à importância dos grupos culturais. É difícil dizer que razões podem ser essas, já que poucos liberais discutem actualmente o trânsito da “igualdade das pessoas” para a “igualdade dos cidadãos”, mas creio que será justo dizer o seguinte: se os teóricos liberais aceitarem que o princípio de cidadania pode restringir-se aos membros de um grupo particular, então o ónus da prova recairá sobre eles, cabendo-lhes explicar por que razão não se comprometem também com a aceitação dos direitos de grupo dentro do Estado[4]. De igual modo que, como liberais, se acreditam em estados separados com uma cidadania restringida, então o ónus da prova recairá igualmente sobre os oponentes dos direitos de grupo e sobre os seus defensores.»

...................................................
[1] Daí que o conhecido contraste entre as formas “coassociativas” e “universal” de incorporar os indivíduos no Estado seja equívoco. Existe uma distinção entre os modelos de cidadania que incorporam os cidadãos sobre uma base uniforme ou mediante a pertença a algum grupo. Mas a cidadania uniforme não é uma cidadania universal. Nenhum país admite uma cidadania universal.
[2] Samuel Black, “Individualism at na impasse”, Canadian Journal of Philosophy, 21/3, 1994, pp. 347-77.
[3] Sobre os liberais defensores das fronteiras abertas, que se consideram críticos da concepção ortodoxa liberal, veja-se Joseph Carens, “Aliens and Citizens: the case for open borders”, Review of Politics, 49/3, 1987, pp. 251-73; Timothy King, “Inmigration from Developing Countries: Some Philosophical Issues”, Ethics, 93/3, 1983, pp. 525-36; Veit Bader, “Citizenship and Exclusion. Radical Democracy, Community and Justice”, Political Theory, 23, 1995.
[4] Devo insistir no facto de que a minha defesa da legitimidade das fronteiras parcialmente fechadas não pretende defender o direito dos grupos nacionais a manter mais do que constitui a sua justa participação nos recursos. Pelo contrário, defende que um país renuncia ao seu direito a restringir a imigração se tiver sido incapaz de assumir a sua obrigação de compartilhar a sua riqueza com os países mais pobres do mundo. Veja-se Bader, Citizenship and Exclusion; Bruce Ackerman, Social Justice and the Liberal State, New Haven, Yale University Press, 1980, pp. 256-57.

Sem comentários: