quinta-feira, 27 de março de 2008

James Rachels, "Por que devemos ser morais?" (Parte I)

«O anel de Giges
Uma lenda antiga conta-nos a história de Giges, um pastor pobre que encontrou um anel mágico numa fenda aberta por um tremor de terra. Giges descobriu que ficava invisível se colocasse o anel no dedo e o rodasse. Isso permitia-lhe fazer aquilo com que todas as pessoas podem apenas sonhar: podia ir a qualquer lado e fazer o que bem lhe apetecesse, sem receio de ser apanhado. Usou o poder do anel para enriquecer, roubar o que queria e matar quem quer que se atravessasse no seu caminho. Até que invadiu o palácio real, onde seduziu a rainha, matou o rei, e apossou-se do trono. Acabou por se tornar senhor de todo o reino.
Gláucon conta esta história no Livro I da República, de Platão. Apesar da natureza fantástica do conto, Giges foi uma pessoa real, o rei de Sardis. Heródoto também nos diz como Giges chegou ao poder. De acordo com Heródoto, Giges começou como criado do Rei Candaules, "um homem que estava apaixonado pela sua mulher" (aparentemente Heródoto considerava isto invulgar). Um dia, Candaules, enquanto se gabava a Giges sobre quão bela era a sua mulher e, para o demonstrar, decidiu que Giges a deveria ver nua. Giges protestou, mas o Rei ordenou-lhe que se escondesse no quarto da Rainha e a observasse a despir-se. Giges, ainda que relutante, acabou por o fazer. Mas o destino quis que a Rainha o apanhasse e lhe dissesse que seria condenado à morte pela sua impertinência a não ser que matasse Candaules e a desposasse, pois nesse caso não haveria mal nenhum em a ver nua já que seria o seu marido. Assim, como na versão de Gláucon, Giges mata Candaules e torna-se rei.
Gláucon conta a história de Giges para mostrar quão imoral pode ser o comportamento parcial de alguém. Se Giges permanecesse virtuoso, permaneceria pobre. Ao quebrar as regras morais, tornou-se rico e poderoso. Nesse caso, por que há-de Giges preocupar-se com a moralidade? Mais: por que há-de alguém preocupar-se com a moralidade, se isso não nos beneficia? Por que há-de alguém falar a verdade, se mentir é mais vantajoso? Por que há-de alguém dar dinheiro para ajudar os pobres, se o pode gastar consigo próprio? A moralidade levanta restrições de que podemos não gostar ou desejar. Então por que não havemos nós pura e simplesmente esquecê-la? Gláucon acrescenta que, na sua opinião, se nunca fossemos apanhados, todos nos comportaríamos como Giges.
Abordaremos a partir de agora a questão de saber se havemos de ser morais. Mas devemos em primeiro lugar definir a questão com exactidão. Não se trata de justificar o comportamento moral. Se em causa estivesse apenas isso, a resposta seria simples, pois não é difícil encontrar razões que justifiquem porque Giges não devia ter roubado e matado para chegar ao trono. Roubar é tirar o que não nos pertence, e matar inflige um mal terrível nas vítimas que não o merecem. Da mesma forma, é fácil explicar por que devemos falar a verdade e por que devemos dar dinheiro para ajudar os pobres. Mentir prejudica as pessoas, e as pessoas que passam fome precisam mais de alimentos do que as pessoas abastadas precisam de novas carpetes ou roupas da moda. Claro que devemos explicar estas razões melhor, mas é óbvio qual será o caminho da elaboração.
Contudo, tais razões apenas determinam o que é certo, e não é isso que está em causa. O desafio de Gláucon surge depois de ter sido concretizado todo o raciocínio moral. Podemos conceder que é moralmente correcto respeitar a vida e a propriedade das pessoas. Podemos conceder que é correcto dizer a verdade e ajudar as pessoas. Então a questão de Gláucon é: por que havemos de nos preocupar com o que é correcto? Por que não ignorar isso e viver como queremos?
Para responder a esta questão, temos de mostrar que viver moralmente é do nosso interesse, mas que não é fácil. Aparentemente, a ética, no que diz respeito aos nossos interesses, é mais um obstáculo do que uma ajuda. Claro que pode ser bom para ti que os outros vivam eticamente, porque dessa forma respeitariam os teus direitos e ajudar-te-iam. Mas se estás ligado por laços morais, isso é outra questão, já que a moralidade pode por vezes dizer-te que não deves continuar a fazer o que consideras necessário para ti.
Será possível mostrar, contrariamente ao que parece, que aceitar as restrições morais serve realmente os interesses de alguém? Ou podemos responder ao desafio de Gláucon ou não podemos. Tudo depende do que se entenda por moralidade e do que se pensa ser o fundamento das exigências morais.

Ética e religião
Uma ideia conhecida é que a vida correcta consiste na obediência aos mandamentos de Deus. Nesta concepção, Deus definiu as regras a que devemos obedecer, recompensando aqueles que as cumprirem e punindo aqueles que as quebrarem.
Se isto fosse verdade, poderíamos facilmente responder ao desafio de Gláucon: seríamos morais porque se não fossemos seríamos punidos por Deus. Mesmo que, segundo Giges, tivéssemos o poder da invisibilidade, estaríamos sempre sujeitos ao julgamento divino, e não poderíamos, em última análise, ser bem sucedidos a fazer o que quiséssemos. Segundo um cenário conhecido, a boa vontade passará a eternidade no céu, enquanto a perversidade irá para o inferno. Assim, qualquer benefício que pudesses ganhar ao agir mal seria apenas temporário. A longo prazo, é a virtude que compensa.
Podemos distinguir entre a) a teoria dos mandamentos divinos como uma teoria ética abrangente e b) a pretensão de que Deus recompensa os virtuosos. Olhemos de forma breve para a teoria.
A teoria dos mandamentos divinos diz que uma acção moralmente correcta é uma acção ordenada por Deus. Para começar, podemos observar que se levantam inúmeras dificuldades se levarmos esta tese a sério. Como podemos saber o que Deus manda? Claro que há pessoas que afirmam ter falado com Deus e que se ofereceram para nos transmitir as suas instruções. Só que não são os indivíduos mais fiáveis. Ouvir vozes tanto pode ser um sinal de esquizofrenia ou megalomania como um caso de comunicação divina.
Outros, mais modestamente, encontram orientação nas escrituras ou na tradição da Igreja. Essas fontes são notoriamente ambíguas. As instruções que dão são frequentemente vagas e até contraditórias. Por isso, quando estas pessoas consultam estas autoridades, baseiam-se tipicamente no seu próprio juízo para avaliar o que parece aceitável. Ao ler as Escrituras, prestam atenção ao que confirma as crenças morais que valorizam, e ignoram o resto. Por exemplo, podem citar a passagem do Levítico que condena a homossexualidade, enquanto ignoram a passagem que proíbe o relacionamento sexual com mulheres menstruadas.
Mas estas são meras dificuldades práticas. Independentemente de quais sejam os problemas práticos, ainda assim pode continuar a ser plausível que os mandamentos de Deus forneçam a justificação última para a ética. Deus dizer que algo é errado é o que torna algo errado. Bastantes crentes parecem pensar que seria pecado recusar esta visão. É um pensamento antigo, Sócrates conhecia-o e não acreditava que estivesse correcto.
No Eutífron, Sócrates aparece, a certa altura, a considerar se "correcto" pode ser o mesmo que "aquilo que os deuses mandam". Sócrates aceita que os deuses existem e que podem dar ordens. (Como Sócrates refere, algumas coisas agradam aos deuses, outras não.) Mas Sócrates mostrou que este não pode ser o fundamento último da ética. Sublinhou que temos de distinguir duas possibilidades: ou os deuses têm boas razões para o que ordenam, ou não. Se não, então as suas ordens são meramente arbitrárias — os deuses são como tiranos mesquinhos que mandam as pessoas fazer isto ou aquilo apesar de não terem boas razões para tal. Esta é uma heresia que os crentes não estão dispostos a aceitar. Por outro lado, se os deuses realmente têm boas razões para as suas ordens, então tem de haver um padrão do correcto e do incorrecto independente dos seus mandamentos — nomeadamente, o padrão a partir do qual os deuses decidiram o que nos haveria de ser exigido.
Segue-se então que, mesmo que alguém aceite uma perspectiva religiosa do mundo, não se pode entender a correcção ou incorrecção das acções simplesmente em termos da conformidade com os mandamentos divinos. Pode-se sempre perguntar por que ordenam os deuses o que ordenam, e a resposta a essa questão revelará por que razão são correctas as acções correctas e incorrectas as acções incorrectas.
O mesmo acontece com os textos sagrados. Nada pode ser moralmente correcto ou moralmente incorrecto apenas porque uma autoridade o diz, nem mesmo uma autoridade extrema como a Bíblia. Se os preceitos do texto não são arbitrários, então tem de haver uma boa razão a seu favor. Por exemplo, a Bíblia diz que não devemos mentir sobre os nossos vizinhos. Será esta uma regra arbitrária que Deus nos impõe sem razão? Pelo contrário, percebe-se que esta regra faz sentido. Mentir causa sofrimento e viola a confiança que os outros depositam em nós, e mentir aos nossos vizinhos ("prestar falsas declarações") é insultuoso para eles e prejudica-os injustamente. Se quiser saber por que mentir é errado, essas são as razões. Da mesma forma, podemos perguntar por que é a homossexualidade condenada. Será que há também boas razões para que isso seja assim? Se sim, então essas razões dão-nos a explicação real para o facto de a minha homossexualidade ser errada. Na lógica do raciocínio moral, a referência ao texto é substituída pela razão (se houver alguma) por detrás da afirmação. O outro lado da moeda, claro, é que se não há qualquer razão independente que mostre por que a homossexualidade é errada, então a condenação bíblica é injustificada.
Estes problemas tornam a teoria dos mandamentos divinos uma fundamentação implausível da ética, mas não refutam a ideia separada de que, se Deus pune a má conduta, então não temos boas razões pessoais para agir correctamente. Esta ideia influenciou de tal forma Immanuel Kant, o grande filósofo alemão, que a transformou num argumento a favor da existência de Deus. Kant defende que se Deus não existe, o universo é moralmente incompleto, porque dessa forma nem a virtude será recompensada nem a maldade punida. Este pensamento era intolerável para Kant, que por isso concluiu que Deus tem de existir. Ao que parece, mesmo os grandes filósofos podem cair na falácia da esperança.»

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