segunda-feira, 17 de março de 2008

Michael Slote, "Fome, Riqueza e Empatia" (Parte I)

«Um dos maiores desafios à moral comum e às teorias morais recentes tem sido as posições e os argumentos apresentados por Peter Singer no seu clássico “Fome, Riqueza e Moralidade”[1]. Os filósofos têm-se debatido com as conclusões de Singer e têm procurado refutar a sua tese de que a nossa obrigação moral para eliminar a forme e a doença em partes distantes do mundo é tão forte como, digamos, a nossa obrigação de salvar uma criança que se está a afogar num lago pouco profundo mesmo à frente dos nossos olhos. Mas embora este debate continue bem intenso, a ética das virtudes ainda não entrou em cena. Ainda não se ocupou do principal problema levantado pelo ensaio de Singer e que é o de saber se a realização de sacrifícios substanciais para ajudar aqueles que sofrem em partes distantes do planeta é obrigatória ou (meramente) super-rogatória. Contudo, procurarei neste ensaio lidar com as ideias de Singer a partir da perspectiva da ética das virtudes. Para isso não farei uso da tradicional ética das virtudes aristotélica que tem recebido uma enorme atenção na revitalização da ética das virtudes, mas de uma forma de ética das virtudes que tem as suas raízes no sentimentalismo moral do século XVIII [tal como proposto] por Francis Hutcheson e David Hume. Começarei por falar um pouco dos desenvolvimentos recentes desta visão alternativa da ética das virtudes e depois passarei para a discussão da resposta que uma tal proposta pode oferecer para as questões levantadas por Singer.
Nem Hume nem Hutcheson focalizam a sua atenção no “cuidado” com os outros como motivo: as suas discussões sobre a moralidade centraram-se, sobretudo, nos conceitos de benevolência e simpatia. Mas a ética do cuidado recentemente proposta por Carol Gilligan, Nel Noddings e outros enraíza-se de forma clara na tradição do sentimentalismo moral e é naturalmente (e tipicamente) encarada como uma forma de ética das virtudes, uma vez que avalia as acções humanas por referência à quantidade (do motivo interior) de cuidado que expressam ou exibem
[2]. E eu encaro esta versão da ética das virtudes como a mais prometedora (e interessante) forma actual de sentimentalismo. Dito de forma bastante directa, uma ética do cuidado defende que um acto é moralmente correcto se não exibe a ausência (ou o seu oposto) de cuidado e errado se exibe. (Lavar os dentes pode não revelar cuidado, mas o essencial é que também não mostra, exibe, ou reflecte falta de cuidado para com os outros.)
Todavia, quando Noddings escreveu com originalidade sobre o cuidado, tinha em mente um tipo de cuidado com os outros que ocorria, digamos, nas relações íntimas ou nas relações face a face. O cuidado com o destino de (grupos) de pessoas de que apenas ouvimos falar não se inclui nesta rubrica; e uma vez que a moralidade ocorre de facto nas nossas relações com outras pessoas distantes e desconhecidas, Noddings defende que a ética do cuidado representa apenas uma parte limitada – embora importante e antes negligenciada – da moralidade. Aqueles que vieram depois, contudo, procuraram mostrar que o cuidado com as pessoas que estão longe de nós pode e deve ser incluído na abordagem ética do cuidado (nesse conjunto inclui-se Virgínia Held e eu próprio); Noddings parece estar convencida, tendo em conta os seus trabalhos mais recentes, que uma tal ampliação da ética do cuidado é bastante acertada.
Deste modo, quando falo de acções que exibem uma atitude de cuidado ou que são inconsistentes com ela, o cuidado de que estou a falar inclui atitudes para com pessoas distantes e desconhecidas e não apenas para com aqueles que conhecemos ou que amamos. O termo “cuidado” é o parâmetro da descrição de uma atitude global/estado motivacional, que assume em ambos a preocupação com as pessoas que conhecemos (intimamente) e a preocupação com aqueles que estão distantes o que corporifica algum tipo de proporcionalidade ou cálculo entre estas preocupações. Uma ética do cuidado defenderá que é virtuoso preocuparmo-nos mais com os que estão próximos e que nos são queridos, do que com estrangeiros que conhecemos apenas por descrição; mas insistirá que um indivíduo ideal ou um cuidador virtuoso estará substancialmente preocupado com todos os que estão distantes (incluindo os animais). O problema de saber o que constitui um ideal ou a proporcionalidade ou o cálculo moralmente exigido entre estas duas preocupações, é algo complexo e difícil, e a nossa discussão sobre o que se segue constituirá uma tentativa, pelo menos parcial, de lidar com ele. Singer parece defender que as razões que temos para nos preocuparmos com aqueles que estão distantes são as mesmas que temos para nos preocupar com aqueles que nos são íntimos; mas há aqui algo de contra-intuitivo. A ideia de que possuímos obrigações morais especiais (ou mais fortes) para com os que estão próximos ou que nos são mais queridos, é familiar e eticamente apelativa para o senso comum. Mas espero agora mostrar em que medida uma ética do cuidado, que até agora só assumiu estas obrigações especiais com base na plausibilidade intuitiva de uma tal presunção, pode, pelo menos em parte, dizer algo para as justificar.»

[1] Philosophy and Public Affairs 1, 1972, pp. 229-43.
[2] Veja-se, por exemplo, Carol Gilligan, In a Different Voice: Psychological Theory and Women’s Development, Cambridge: Harvard University Press, 1982; e Nel Nodings, Caring: A Feminine Approach to Ethics and Moral education, Berkeley: Univrstiy of California Press, 1984. Noddings encara as suas ideias como uma continuação do sentimentalismo moral do século dezoito; mas esta relação tem sido igualmente referida por outros.

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