domingo, 23 de março de 2008

Alfredo Marcos, "Ética Ambiental" (Parte IV)

«Apesar do biocentrismo ampliar de forma apreciável o âmbito da consideração moral e supor, nas suas versões mais completas, uma alteração filosófica profunda, foi criticado por ser limitado e individualista. A ênfase dada por Taylor ao valor dos organismos individuais, cada qual em prol do seu próprio fim, acaba por ter como efeito a fixação excessiva nas relações conflituosas. A sua ética corre o risco de deslizar para uma colecção de indicações procedimentais para a resolução justa de conflitos entre indivíduos. Deste modo, perde-se de vista as relações ecossistémicas de cooperação e dependência mútua. Segundo Taylor, não temos deveres directos para com os ecossistemas, as espécies ou seres naturais não vivos.
Tendo em conta as limitações do biocentrismo, Alguns pensadores, como Holmes Rolston ou Lawrence E. Jonhson
[1], optaram por filosofias mais holísticas e, em consequência, éticas mais inclusivas que reconheçam também a relevância moral de entidades supra-individuais, como os ecossistemas. Estas posições podem denominar-se de ecocentristas. O ecocentrismo inspira-se, obviamente, na ciência e na ecologia, e nas entidades e relações que estas nos ajudaram a conhecer e apreciar.
O ecocentrismo é algo mais de que uma teoria ética. Tal como o biocentrismo, constitui uma filosofia ambiental bastante abrangente: uma metafísica que nos fala do estatuto ontológico das espécies, dos ecossistemas, dos processos e das relações que ocorrem na natureza; uma epistemologia que tem que enfrentar o problema do trânsito do descritivo para o normativo, já que uma ética baseada na ciência, como a ecologia, tem que saber responder à objecção da falácia naturalista; uma estética que contribua para o reconhecimento do valor intrínseco de certas entidades naturais que apreciamos como belas; e uma filosofia política que discuta a legitimidade das acções a favor das entidades naturais e a justiça ambiental. Trata-se, em suma, de uma tentativa para sair dos esquemas intelectuais característicos da modernidade e de uma autêntica refundação filosófica da nossa cultura.
A gama de valores que se podem reconhecer nos seres vivos e nos ecossistemas é, para os ecocentristas, bastante extensa, e não está limitada aos valores mais materialistas ou economicistas. Por exemplo, Rolston
[2] refere os valores da natureza, desde os mais óbvios e materiais, já que é valiosa para a nossa sobrevivência, passando por valores económicos e lúdicos, até valores espiritualmente mais elevados, como os epistémicos ou estéticos. Mas, ainda assim, estes valores poderiam ser encarados como meramente instrumentais. Poderiam ser espirituais e elevados tanto quanto se quisesse, mas não deixariam de ser instrumentais. Relativamente a estes, os valores mais materiais e económicos sempre apresentam a vantagem de parecer mais objectivos e quantificáveis. Por isso, se reconhecemos na natureza apenas valores instrumentais, quando estes entram em conflito entre si, o que sucede com frequência, ganharão sempre os mais materiais, os aparentemente mais objectivos e quantificáveis. Deste modo, entre a preservação da harmonia nas relações ecossistémicas ou a beleza de uma paisagem ou a obtenção de um maior rendimento industrial, está claro para que lado cairá a decisão.
Os defensores de uma ética ecocêntrica partem da constatação dos danos que efectivamente provocamos nos seres vivos e nos ecossistemas. A própria magnitude destes danos, a exploração abusiva da natureza, é por si só uma indicação clara, para qualquer pessoa sensível, de que algo anda mal. Temos a intuição clara de que é assim, de que estamos a destruir entidades valiosas por si mesmas, independentemente do valor que possam ter para nós.
Mas há que reconhecer que é difícil estabelecer o valor intrínseco de entidades supra-individuais como os ecossistemas. Em qualquer caso, trata-se de uma questão empírica, quer dizer, será necessário mostrar que estas entidades possuem um grau de integração próximo do dos organismos individuais, que elas próprias são realmente unidades individuais, que também possuem fins próprios, e que também são “centros teleológicos de vida”.
Agora percebe-se com claridade em que medida a ética ambiental depende da ecologia. São necessários estudos empíricos que provem o grau de integração das entidades supra-individuais. Disso dependerá a sua consideração moral. É óbvio que os ecossistemas possuem valor indirecto na medida em que tornam possível a vida dos seres individuais, humanos e não humanos. Mas o ecocentrismo afirma algo mais, afirma que os ecossistemas também têm valor intrínseco e merecem consideração moral por si mesmos, e que os seres humanos têm deveres para com eles
[3].
Os ecocentristas defendem que o mesmo se pode dizer de outras entidades supra-individuais, como as espécies e as populações. Contudo, do meu ponto de vista, no caso das espécies não está em causa apenas uma questão empírica, mas igualmente problemas conceptuais complexos. Para muitos – entre os quais me incluo – as espécies, ao contrário dos organismos, os ecossistemas ou as populações, não são sequer entidades concretas, mas conceitos abstractos, que apenas podem possuir valor indirecto. Parece que um biocentrista que pretenda reconhecer valor intrínseco às espécies deveria começar por aceitar a sua condição de indivíduos. Todavia, o estatuto ontológico das espécies é, no mínimo, um assunto problemático.»

[1] L.E. Johnson: A Morally Deep World. Cambridge University Press, 1991; H. Rolston: Environmental Ethics. Temple University Press, 1988.
[2] H. Rolston: Environmental Ethics. Duties to an Values in Natural World. Temple University Press, 1988, pp. 3-26.
[3] Cfr. H. Rolston: Environmental Ethics. Duties to an Values in Natural World. Temple University Press, 1988, pp. 160 e ss.

Marcos, Alfredo (2001). Ética ambiental. Valladolid: Universidad de Valladolid, pp. 131-4 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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