sexta-feira, 28 de março de 2008

James Ladyman, "Incomensurabilidade"

«A incomensurabilidade é um termo da matemática que significa “falta de medida comum”. Foi adoptado por Kuhn e por outro filósofo, chamado Paul Feyerabend (1924-94), defendendo ambos que as teorias científicas bem sucedidas são frequentemente incomensuráveis entre si no sentido em que não há uma forma neutra de comparar os seus méritos. Uma das ideias mais radicais que emergiu do trabalho de Kuhn é a de que o que conta como evidência num dado domínio pode depender do paradigma que lhe está subjacente. Se isto for correcto, como será possível comparar racionalmente paradigmas concorrentes? Kuhn defende que não há padrão mais elevado para comparar teorias do que o consentimento da comunidade relevante, e que “[a escolha] entre paradigmas concorrentes acaba por ser uma escolha entre modos de vida comunitários incompatíveis” (Kuhn, 1962: 94).
Assim, pode entender-se que Kuhn está a sugerir que o chamado progresso científico, em vez de se basear na evidência, não é mais do que o resultado da psicologia de massas, e que a confirmação empírica de uma hipótese é uma falsidade retórica. (Isto inspirou o que ficou conhecido como “o programa forte da sociologia do conhecimento”, que pretende explicar as mudanças das teorias científicas em termos de forças psicológicas e sociológicas.) Inúmeras pessoas usaram os argumentos de Kuhn para defender aquilo que os filósofos denominam de relativismo do conhecimento científico, que é a perspectiva de que “as verdades” das teorias científicas são total ou parcialmente determinadas por forças sociais. Uma forma simples de relativismo epistémico diria que, por exemplo, uma teoria particular da física ou da biologia só poderia ser considerada conhecimento porque aqueles que possuíam estatuto e influência no interior da comunidade dos físicos ou dos biólogos acreditavam nela.
A tese de que paradigmas concorrentes são incomensuráveis é defendida pela teoria da não-subordinação à observação; se é verdade que todas as observações estão contaminadas por teorias anteriores, então os méritos de cada paradigma não podem ser comparados através do recurso a testes experimentais porque os defensores dos paradigmas concorrentes estarão necessariamente em desacordo sobre o que é observado. Vimos que é este o caso dos argumentos entre Galileu e a Igreja sobre o facto da Terra mover-se ou não. A Revolução Copernicana é um exemplo de que, quando há mudança de paradigma, há igualmente mudança dos métodos que são apropriados para testar certos princípios teóricos, e o mesmo sucede com os problemas que a ciência deve resolver. Para o cientista moderno, um corpo permanecerá em repouso ou em movimento uniforme a menos que uma força intervenha para alterar esse estado, pelo que não há necessidade de explicar o que mantém, digamos, uma flecha no ar depois de ter saído do arco, mas há necessidade de explicar como a gravidade e a resistência do ar se combinam para impedir que continue a mover-se eternamente numa linha recta. Para um aristotélico, pelo contrário, há uma necessidade premente de explicar o que mantém a seta num estado não-natural de movimento depois de sair do arco.
É claro que, por vezes, diferentes pessoas classificam as coisas do mundo de formas radicalmente diferentes. Ocasionalmente parece que para avaliar as crenças das pessoas devemos compreender as asserções particulares que fazem relativamente à totalidade da sua prática linguística. Por vezes, alguns trabalhos anteriores na ciência só podem ser compreendidos à luz de teorias posteriores; por exemplo, a teoria do calor específico dos corpos desenvolvida por Pierre Laplace (1749-1827), de acordo com a qual o fogo é uma substância material, permitiu a Laplace calcular a velocidade de propagação das ondas sonoras de forma bastante precisa. Um físico contemporâneo pode imediatamente perceber o seu método apesar do facto do calor ser agora entendido como uma forma de energia associada à vibração das moléculas. Por outro lado, o raciocínio de um Renascentista como Paracelso (1493-1541) é praticamente incompreensível para um cientista moderno, uma vez que toda a sua forma de olhar para o mundo e o tipo de respostas que procura ser completamente estranho a uma observação moderna. Por exemplo, ele defende que uma planta cujas folhas possuam um padrão que se assemelhe a uma cobra fornecerá protecção contra venenos, e que bons médicos não devem ter barba vermelha. Com efeito, algumas destas afirmações não só parecem falsas como não são candidatos elegíveis à verdade ou à falsidade, porque devem a sua inteligibilidade a estilos de raciocínio esquecidos. Por isso, já não é possível responder a questões de antigos paradigmas porque, por vezes, acabamos a pensar que elas nem sequer fazem sentido.
Kuhn associa a mudança de paradigma a um “interruptor gestalt” do tipo que experienciamos quando vemos alternadamente uma dada figura ora como um coelho ora como um pato. A questão central dos interruptores gestalt é que são holísticos. De igual modo, as diferenças entre paradigmas ao nível dos conceitos, ontologia e assim por diante, são globais e sistemáticas. Teorias que pertencem a diferentes paradigmas são incomensuráveis, no sentido em que os termos e os conceitos das teorias científicas de diferentes paradigmas não são traduzíveis entre si; isto designa-se de incomensurabilidade de sentido. Kuhn defende que os temos científicos ganham o seu significado a partir da sua posição na estrutura da totalidade da teoria. Por exemplo, “massa” na teoria de Newton significa algo diferente de “massa” na teoria da relatividade de Einstein. Parece então que quando comparamos o estatuto de uma frase que inclui o termo massa nestas duas teorias, estamos realmente a comparar duas frases com diferentes sentidos. Na Revolução Copernicana, a ideia de movimento sofreu uma mudança radical. Será que podemos realmente dizer que os aristotélicos e Galileu possuem diferentes teorias sobre a natureza do movimento ou devemos dizer que apenas atribuem significados diferentes à palavra “movimento”? Segundo Kuhn, não há uma resposta definitiva para esta questão porque os termos científicos nem sempre possuem um significado fixo e preciso (…).
Antes do trabalho de Kuhn era amplamente aceite pelos filósofos que o significado de um termo, “átomo”, por exemplo, era determinado pelo que a teoria dizia sobre os átomos. Se isto é verdade, então diferentes teorias sobre os “átomos”, que dizem coisas diferentes sobre eles, referem-se efectivamente a coisas diferentes. Isto designa-se incomensurabilidade de referência, e são más notícias para o realismo, pois sugere que diferentes teorias sobre os “electrões” são de facto teorias sobre coisas diferentes, pelo que não há razão para acreditar que a ciência progrediu na compreensão da natureza essencial das coisas. Isto parece implicar que não há um modo único de ser do mundo, mas que o mundo em que viemos é um artefacto das nossas teorias sobre ele. De facto, Kuhn afirma que “quando os paradigmas mudam, o mundo muda com eles” (Kuhn, 1962: 111). Segundo esta perspectiva, as diferentes linguagens de diferentes teorias correspondem a diferentes mundos de diferentes teorias, e os defensores de paradigmas concorrentes habitam diferentes mundos; por exemplo, o mundo de Einstein é literalmente diferente do mundo de Newton. Consequentemente, não podemos dizer que Copérnico descobriu que Ptolomeu e outros filósofos anteriores estavam errados ao pensar que o sol andava à volta da Terra, porque a Terra de Copérnico era literalmente um objecto diferente do ponto de vista de Ptolomeu. Desta forma, Kuhn tem sido visto como um opositor da noção de verdade científica e até de realidade objectiva. Por isso, há algumas pessoas que defendem não só que o conhecimento científico é relativo, mas que a própria realidade é socialmente construída. Assim, por exemplo, diz-se por vezes que os físicos constroem literalmente os electrões nos seus laboratórios. Segundo esta perspectiva, designada de construtivismo social, um electrão possui o mesmo estatuto ontológico de, digamos, um partido político ou um estado-nação, no sentido em que ambos existem apenas porque o povo acredita que eles existem.»

Ladyman, James (2002). Understanding Philosophy of Science. London: Routledge, pp. 115-8 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente artigo.