«Tenho impressão que a eutanásia – a ideia, senão a prática – está lentamente a ganhar aceitação na nossa sociedade. Os cínicos podem atribuir esse facto a uma tendência crescente de desvalorização da vida humana, mas não creio que esta seja a razão central. Bem publicitadas, histórias como a de Karen Quinlan, provocam em nós profundos sentimentos de compaixão. Pensamos para nós próprios, “Ela e a sua família ficariam melhor se ela morresse”. É uma consequência simples desta resposta humana verificar que se for melhor para uma pessoa (ou pessoas) que esteja morta, então deve ser correcto matá-la[1]. Ainda que respeite a compaixão que conduz a esta conclusão, acredito que é errada. Pretendo mostrar que a eutanásia é errada. É intrinsecamente errada, mas também o é considerada a partir do interesse próprio e dos efeitos práticos.
Antes de apresentar os meus argumentos a favor desta posição, devo definir “eutanásia”. Um aspecto essencial da eutanásia é implicar tirar uma vida humana, a própria ou a de outrem. Também a pessoa a quem é tirada a vida deve ser alguém que acredita estar a sofrer de alguma doença ou mal do qual se suspeita não ser razoavelmente possível esperar recuperação. Finalmente, a acção deve ser deliberada e intencional. Assim, eutanásia significa tirar intencionalmente a vida a alguém presumivelmente sem qualquer esperança de recuperação. Independentemente de se tratar da própria vida ou não, tirá-la significa igualmente eutanásia.
É importante ser claro acerca do carácter intencional ou deliberado do matar. Se, por engano, é dada uma injecção com uma droga errada a uma pessoa sem esperança e provoca a sua morte, será matar alguém por engano, mas não será eutanásia. A morte não pode ser o resultado de um acidente. Além do mais, se é dada uma injecção com uma droga a uma pessoa, mas que se crê ser necessária para tratar a sua doença ou melhorar a sua condição e se morre, então não é nem morte por engano nem eutanásia. A intenção era melhorar a saúde da pessoa, não matá-la. Do mesmo modo, quando a condição de um doente é tal que não é razoável esperar que procedimentos médicos e tratamentos o possam salvar, uma falha na implantação destes procedimentos ou tratamentos não é eutanásia. Se uma pessoa morre, será como resultado dos seus males ou doença e não porque falhou o tratamento.
O acto de interromper o tratamento de uma pessoa depois de compreender que esta tem poucas possibilidades de beneficiar dele, tem sido caracterizado por alguns como “eutanásia passiva”. Esta afirmação é enganadora e errada[2]. Nestes casos, a pessoa envolvida não é morta (primeiro aspecto essencial da eutanásia), nem a sua morte resulta da recusa de um tratamento adicional (terceiro aspecto essencial da eutanásia). O objectivo pode ser o de poupar a pessoa a um sofrimento adicional e injustificável, salvá-la de manipulações indignas, e evitar aumentar o fardo financeiro e emocional à família. Quando compro um lápis é para o usar a escrever, não para aumentar o produto interno bruto (PIB). Esta pode ser uma consequência inesperada da minha acção, mas não é o seu objectivo. O mesmo se passa com a interrupção do tratamento de um doente terminal. Quis a sua morte tanto quanto quis reduzir a despesa pública ao não usar os medicamentos. Trata-se de morte não intencional, pelo que a chamada “eutanásia passiva” não é de todo eutanásia.
1. O argumento da natureza
Todo o ser humano tem uma inclinação natural para continuar a viver. Os nossos reflexos e respostas habilitam-nos para lutar contra atacantes, afugentar animais selvagens e afastar-nos do trajecto dos camiões. No nosso dia-a-dia exercitamos a cautela e o cuidado necessários para nos protegermos. Os nossos corpos estão similarmente estruturados para sobreviver até ao nível molecular. Quanto nos cortamos, os nossos vasos capilares fecham-se, o nosso sangue coagula, e produz-se plasma para iniciar o processo de cura da ferida. Quando somos invadidos por bactérias, produzem-se anticorpos para combater os organismos invasores, e os seus restos são expulsos por células especializadas em trabalho de limpeza.
A eutanásia viola o objectivo natural da sobrevivência. Significa literalmente agir contra a natureza, porque todos os seus processos estão inclinados para a sobrevivência. A eutanásia derrota estes mecanismos subtis de uma forma que, num caso particular, a doença ou os ferimentos não o fazem.
É possível, embora não seja necessário, apelar à religião revelada para sustentar esta conexão[3]. O ser humano enquanto tutor do seu corpo age contra Deus, que é o seu real proprietário, quando termina com a sua vida. Também viola os mandamentos divinos que declaram a santidade da vida e impedem que dela possamos dispor sem uma razão verdadeiramente irresistível. Mas porque este apelo persuade apenas aqueles que estão preparados para aceitar que a religião tenha acesso a verdades reveladas, não seguirei esta linha argumentativa.
É suficiente, acredito, reconhecer que a organização do corpo humano e os padrões das nossas respostas comportamentais mostram que a manutenção da vida é um objectivo natural. Podemos, por isso, e com base apenas na razão, reconhecer que a eutanásia nos coloca contra a nossa própria natureza[4]. Além de que, ao fazê-lo, a prática da eutanásia violenta a nossa dignidade, já que esta decorre da procura dos nossos fins. Considerando que um dos nossos objectivos é a sobrevivência, e que, no entanto, agimos para o eliminar, então é a nossa própria dignidade que sofre. Ao contrário dos animais, temos consciência através da razão da nossa natureza e dos nossos fins. A eutanásia implica agir como se esta dupla natureza – inclinação para a sobrevivência e consciência dela como um fim – não existisse. Logo, nega a nossa natureza humana básica e requer que nos olhemos a nós e aos outros como algo menos do que totalmente humanos.
2. O argumento do interesse próprio
Os argumentos supra referidos são, acredito, suficientes para mostrar que a eutanásia é intrinsecamente errada. Mas há razões para a considerar errada quando avaliada de acordo com parâmetros que não os da razão. Uma vez que a morte é final e irreversível, a eutanásia implica que as nossas acções ocorram contra os nossos interesses se a praticarmos ou permitirmos que outros a pratiquem em nós.
A medicina actual possui elevados padrões de excelência e um recorde provado de sucesso, mas não possui um conhecimento perfeito e completo. É possível um diagnóstico errado, do mesmo modo que é possível um prognóstico errado. Como consequência, pode dar-se o caso de acreditarmos que estamos a morrer de uma doença, quando na realidade e de facto, podemos não estar. Podemos pensar não haver hipóteses possíveis de recuperação, quando na realidade e de facto, até podem ser bastante boas. Nestas circunstâncias, se a eutanásia fosse permitida, morreríamos desnecessariamente. A morte é final e a hipótese de erro é demasiado grande para aprovar a prática da eutanásia.
De igual modo, é sempre possível que um procedimento experimental ainda não testado permita a recuperação. Devemos manter esta opção em aberto, o que a eutanásia impede. Além de que acontecem em muitos casos remissões espontâneas. Sem razão aparente, um doente simplesmente recupera quando todos à sua volta, incluindo os seus médicos, esperavam que morresse. A eutanásia apenas garantiria as suas expectativas não deixando lugar para recuperações “miraculosas” que acontecem frequentemente.
Finalmente, sabendo que podemos dispor da nossa vida em qualquer altura (ou pedir a outros que o façam) pode levar-nos facilmente a desistir. A vontade de viver é forte em todos nós, mas pode ser enfraquecida pela dor, pelo sofrimento e por sentimentos de impotência. Se permitirmos que sejamos mortos num período difícil, não teremos mais hipóteses de reconsiderar. Recuperar de uma doença grave implica que a possamos combater, e tudo o que possa enfraquecer a nossa determinação sugerindo que não há saídas fáceis é, em última análise, contrário aos nossos interesses. Podemos ainda estar inclinados a aceitar a eutanásia por causa das nossas preocupações com os outros. Se encaramos a nossa doença e o nosso sofrimento como um fardo financeiro e emocional para a nossa família, podemos sentir que morrer tornará as suas vidas melhores[5]. A simples presença desta possibilidade pode impedir-nos de sobreviver quando tal é possível.
3. O argumento dos efeitos práticos
Os médicos e as enfermeiras estão, na sua grande maioria, empenhados em salvar vidas. Uma vida perdida é, para eles, quase um fracasso pessoal, um insulto às suas capacidades e ao seu conhecimento. A eutanásia como prática pode alterar isto e exercer uma influência corruptora sobre os médicos e as enfermeiras, de tal forma que pode levar a que não se empenhem o suficiente. Podem decidir que o doente “estaria melhor morto” e desencadear o processo necessário para que tal acontecesse. Esta atitude pode conduzir a uma triagem de tal forma que tratariam apenas os casos menos graves. O resultado seria um decréscimo global da qualidade dos cuidados médicos prestados.
Finalmente, a eutanásia enquanto política seria como um declive ardiloso. Um doente aparentemente sem esperança poderia ser autorizado a terminar com a sua própria vida. Depois seria permitido a outros que o fizessem se não fosse capaz. O juízo dos outros passaria a ser o factor dominante. Nesta altura, a eutanásia já não seria pessoal e voluntária, uma vez que outros estariam a agir “em nome” do doente de uma forma que considerassem adequada. Este facto poderia conduzir a que se achassem no direito de agir em nome de outros doentes sem a sua permissão. Como se vê, então, um pequeno passo separa a eutanásia voluntária (auto-infligida ou autorizada), da eutanásia administrada a um doente que não deu o seu consentimento, e da eutanásia involuntária conduzida como parte de uma política social[6]. Ainda recentemente psiquiatras e sociólogos defenderam que definimos como “doença mental” aquelas formas de comportamento que desaprovamos[7]. Isto permite que fechemos todos aqueles que exibam este tipo de comportamentos. A categoria do “doente sem esperança” fornece-nos a possibilidade de um abuso ainda maior. Justificado por uma política social, daria à sociedade e aos seus representantes, a autoridade necessária para eliminar todos aqueles que pudessem ser considerados demasiado “doentes” para funcionar normalmente. Os perigos da eutanásia são demasiado grandes para que possamos correr o risco de a aprovar sob qualquer forma. O primeiro passo escorregadio poderia conduzir a uma queda séria e aparentemente inofensiva.
Espero que tenha sido bem sucedido na tentativa de mostrar que a benevolência que nos inclina a aprovar a eutanásia é despropositada. A eutanásia é intrinsecamente errada porque viola a natureza e a dignidade dos seres humanos. Mas mesmo aqueles que estão convencidos disto podem ser persuadidos de que os perigos pessoais e sociais potenciais e inerentes à eutanásia são suficientes para proibir a sua aprovação seja como prática individual, seja como política social.
O sofrimento é sem dúvida algo terrível e temos um dever claro de confortar aqueles que precisam e atenuar o seu sofrimento tanto quanto nos for possível. Mas o sofrimento é um aspecto natural da vida humana que não deve ser ignorado. Podemos procurar para nós e para os outros uma morte mais fácil, como defende Arthur Dyck[8]. Mas a eutanásia não é, contudo, apenas uma morte fácil. É uma morte errada. A eutanásia não é apenas morrer. É assassínio.»
[1] Para uma defesa sofisticada desta posição, cfr. Ph. Foot, “Euthanasia”, Philosophy & Public Affairs, vol. 6 (1977), pp. 85-112. Foot não subscreve a conclusão radical de que a eutanásia voluntária e involuntária, é sempre correcta.
[2] J. Rachels rejeita esta distinção entre eutanásia activa e passiva como moralmente irrelevante. Cfr. “Active e Passive Euthanasia”, New England Journal of Medicine, Vol. 292, pp. 78-80. Cfr. crítica de Foot, pp. 100-103.
[3] Para uma defesa desta posição cfr. J. V. Sullivan, “The Immorality of Euthanasia”, in Marvin Kohl, ed., Beneficent Euthanasia (Buffalo, New York, Prometheus Books, 1975), pp. 34-5.
[4] Esta ideia é defendida por R. V. MacIntyre, “Voluntary Euthanasia: The ultimate perversion”, Medical Counterpoint, Vol. 2, pp. 26-29.
[5] Cfr. MacIntyre, p. 28.
[6] Cfr. Sullivan, “The Immorality of Euthanasia”, pp. 34-44, para uma defesa mais extensa desta posição.
[7] Cfr., por exemplo, Thomas S. Szasc, The myth of mental illness, rev. ed. (New York: Harper and Rove, 1974).
[8] A. Dyck, “Beneficent Euthanasia and Benemortasia”, Kohl, op. cit., pp. 117-29.
J. Gay-Williams, “The Wrongfulness of Euthanasia” in S. Satris (org.) (2000). Taking Sides: Clashing views on controversial Moral Issues. 7th Ed.. Connecticut: Dushkin/McGraw Hill, pp. 294-97 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Antes de apresentar os meus argumentos a favor desta posição, devo definir “eutanásia”. Um aspecto essencial da eutanásia é implicar tirar uma vida humana, a própria ou a de outrem. Também a pessoa a quem é tirada a vida deve ser alguém que acredita estar a sofrer de alguma doença ou mal do qual se suspeita não ser razoavelmente possível esperar recuperação. Finalmente, a acção deve ser deliberada e intencional. Assim, eutanásia significa tirar intencionalmente a vida a alguém presumivelmente sem qualquer esperança de recuperação. Independentemente de se tratar da própria vida ou não, tirá-la significa igualmente eutanásia.
É importante ser claro acerca do carácter intencional ou deliberado do matar. Se, por engano, é dada uma injecção com uma droga errada a uma pessoa sem esperança e provoca a sua morte, será matar alguém por engano, mas não será eutanásia. A morte não pode ser o resultado de um acidente. Além do mais, se é dada uma injecção com uma droga a uma pessoa, mas que se crê ser necessária para tratar a sua doença ou melhorar a sua condição e se morre, então não é nem morte por engano nem eutanásia. A intenção era melhorar a saúde da pessoa, não matá-la. Do mesmo modo, quando a condição de um doente é tal que não é razoável esperar que procedimentos médicos e tratamentos o possam salvar, uma falha na implantação destes procedimentos ou tratamentos não é eutanásia. Se uma pessoa morre, será como resultado dos seus males ou doença e não porque falhou o tratamento.
O acto de interromper o tratamento de uma pessoa depois de compreender que esta tem poucas possibilidades de beneficiar dele, tem sido caracterizado por alguns como “eutanásia passiva”. Esta afirmação é enganadora e errada[2]. Nestes casos, a pessoa envolvida não é morta (primeiro aspecto essencial da eutanásia), nem a sua morte resulta da recusa de um tratamento adicional (terceiro aspecto essencial da eutanásia). O objectivo pode ser o de poupar a pessoa a um sofrimento adicional e injustificável, salvá-la de manipulações indignas, e evitar aumentar o fardo financeiro e emocional à família. Quando compro um lápis é para o usar a escrever, não para aumentar o produto interno bruto (PIB). Esta pode ser uma consequência inesperada da minha acção, mas não é o seu objectivo. O mesmo se passa com a interrupção do tratamento de um doente terminal. Quis a sua morte tanto quanto quis reduzir a despesa pública ao não usar os medicamentos. Trata-se de morte não intencional, pelo que a chamada “eutanásia passiva” não é de todo eutanásia.
1. O argumento da natureza
Todo o ser humano tem uma inclinação natural para continuar a viver. Os nossos reflexos e respostas habilitam-nos para lutar contra atacantes, afugentar animais selvagens e afastar-nos do trajecto dos camiões. No nosso dia-a-dia exercitamos a cautela e o cuidado necessários para nos protegermos. Os nossos corpos estão similarmente estruturados para sobreviver até ao nível molecular. Quanto nos cortamos, os nossos vasos capilares fecham-se, o nosso sangue coagula, e produz-se plasma para iniciar o processo de cura da ferida. Quando somos invadidos por bactérias, produzem-se anticorpos para combater os organismos invasores, e os seus restos são expulsos por células especializadas em trabalho de limpeza.
A eutanásia viola o objectivo natural da sobrevivência. Significa literalmente agir contra a natureza, porque todos os seus processos estão inclinados para a sobrevivência. A eutanásia derrota estes mecanismos subtis de uma forma que, num caso particular, a doença ou os ferimentos não o fazem.
É possível, embora não seja necessário, apelar à religião revelada para sustentar esta conexão[3]. O ser humano enquanto tutor do seu corpo age contra Deus, que é o seu real proprietário, quando termina com a sua vida. Também viola os mandamentos divinos que declaram a santidade da vida e impedem que dela possamos dispor sem uma razão verdadeiramente irresistível. Mas porque este apelo persuade apenas aqueles que estão preparados para aceitar que a religião tenha acesso a verdades reveladas, não seguirei esta linha argumentativa.
É suficiente, acredito, reconhecer que a organização do corpo humano e os padrões das nossas respostas comportamentais mostram que a manutenção da vida é um objectivo natural. Podemos, por isso, e com base apenas na razão, reconhecer que a eutanásia nos coloca contra a nossa própria natureza[4]. Além de que, ao fazê-lo, a prática da eutanásia violenta a nossa dignidade, já que esta decorre da procura dos nossos fins. Considerando que um dos nossos objectivos é a sobrevivência, e que, no entanto, agimos para o eliminar, então é a nossa própria dignidade que sofre. Ao contrário dos animais, temos consciência através da razão da nossa natureza e dos nossos fins. A eutanásia implica agir como se esta dupla natureza – inclinação para a sobrevivência e consciência dela como um fim – não existisse. Logo, nega a nossa natureza humana básica e requer que nos olhemos a nós e aos outros como algo menos do que totalmente humanos.
2. O argumento do interesse próprio
Os argumentos supra referidos são, acredito, suficientes para mostrar que a eutanásia é intrinsecamente errada. Mas há razões para a considerar errada quando avaliada de acordo com parâmetros que não os da razão. Uma vez que a morte é final e irreversível, a eutanásia implica que as nossas acções ocorram contra os nossos interesses se a praticarmos ou permitirmos que outros a pratiquem em nós.
A medicina actual possui elevados padrões de excelência e um recorde provado de sucesso, mas não possui um conhecimento perfeito e completo. É possível um diagnóstico errado, do mesmo modo que é possível um prognóstico errado. Como consequência, pode dar-se o caso de acreditarmos que estamos a morrer de uma doença, quando na realidade e de facto, podemos não estar. Podemos pensar não haver hipóteses possíveis de recuperação, quando na realidade e de facto, até podem ser bastante boas. Nestas circunstâncias, se a eutanásia fosse permitida, morreríamos desnecessariamente. A morte é final e a hipótese de erro é demasiado grande para aprovar a prática da eutanásia.
De igual modo, é sempre possível que um procedimento experimental ainda não testado permita a recuperação. Devemos manter esta opção em aberto, o que a eutanásia impede. Além de que acontecem em muitos casos remissões espontâneas. Sem razão aparente, um doente simplesmente recupera quando todos à sua volta, incluindo os seus médicos, esperavam que morresse. A eutanásia apenas garantiria as suas expectativas não deixando lugar para recuperações “miraculosas” que acontecem frequentemente.
Finalmente, sabendo que podemos dispor da nossa vida em qualquer altura (ou pedir a outros que o façam) pode levar-nos facilmente a desistir. A vontade de viver é forte em todos nós, mas pode ser enfraquecida pela dor, pelo sofrimento e por sentimentos de impotência. Se permitirmos que sejamos mortos num período difícil, não teremos mais hipóteses de reconsiderar. Recuperar de uma doença grave implica que a possamos combater, e tudo o que possa enfraquecer a nossa determinação sugerindo que não há saídas fáceis é, em última análise, contrário aos nossos interesses. Podemos ainda estar inclinados a aceitar a eutanásia por causa das nossas preocupações com os outros. Se encaramos a nossa doença e o nosso sofrimento como um fardo financeiro e emocional para a nossa família, podemos sentir que morrer tornará as suas vidas melhores[5]. A simples presença desta possibilidade pode impedir-nos de sobreviver quando tal é possível.
3. O argumento dos efeitos práticos
Os médicos e as enfermeiras estão, na sua grande maioria, empenhados em salvar vidas. Uma vida perdida é, para eles, quase um fracasso pessoal, um insulto às suas capacidades e ao seu conhecimento. A eutanásia como prática pode alterar isto e exercer uma influência corruptora sobre os médicos e as enfermeiras, de tal forma que pode levar a que não se empenhem o suficiente. Podem decidir que o doente “estaria melhor morto” e desencadear o processo necessário para que tal acontecesse. Esta atitude pode conduzir a uma triagem de tal forma que tratariam apenas os casos menos graves. O resultado seria um decréscimo global da qualidade dos cuidados médicos prestados.
Finalmente, a eutanásia enquanto política seria como um declive ardiloso. Um doente aparentemente sem esperança poderia ser autorizado a terminar com a sua própria vida. Depois seria permitido a outros que o fizessem se não fosse capaz. O juízo dos outros passaria a ser o factor dominante. Nesta altura, a eutanásia já não seria pessoal e voluntária, uma vez que outros estariam a agir “em nome” do doente de uma forma que considerassem adequada. Este facto poderia conduzir a que se achassem no direito de agir em nome de outros doentes sem a sua permissão. Como se vê, então, um pequeno passo separa a eutanásia voluntária (auto-infligida ou autorizada), da eutanásia administrada a um doente que não deu o seu consentimento, e da eutanásia involuntária conduzida como parte de uma política social[6]. Ainda recentemente psiquiatras e sociólogos defenderam que definimos como “doença mental” aquelas formas de comportamento que desaprovamos[7]. Isto permite que fechemos todos aqueles que exibam este tipo de comportamentos. A categoria do “doente sem esperança” fornece-nos a possibilidade de um abuso ainda maior. Justificado por uma política social, daria à sociedade e aos seus representantes, a autoridade necessária para eliminar todos aqueles que pudessem ser considerados demasiado “doentes” para funcionar normalmente. Os perigos da eutanásia são demasiado grandes para que possamos correr o risco de a aprovar sob qualquer forma. O primeiro passo escorregadio poderia conduzir a uma queda séria e aparentemente inofensiva.
Espero que tenha sido bem sucedido na tentativa de mostrar que a benevolência que nos inclina a aprovar a eutanásia é despropositada. A eutanásia é intrinsecamente errada porque viola a natureza e a dignidade dos seres humanos. Mas mesmo aqueles que estão convencidos disto podem ser persuadidos de que os perigos pessoais e sociais potenciais e inerentes à eutanásia são suficientes para proibir a sua aprovação seja como prática individual, seja como política social.
O sofrimento é sem dúvida algo terrível e temos um dever claro de confortar aqueles que precisam e atenuar o seu sofrimento tanto quanto nos for possível. Mas o sofrimento é um aspecto natural da vida humana que não deve ser ignorado. Podemos procurar para nós e para os outros uma morte mais fácil, como defende Arthur Dyck[8]. Mas a eutanásia não é, contudo, apenas uma morte fácil. É uma morte errada. A eutanásia não é apenas morrer. É assassínio.»
[1] Para uma defesa sofisticada desta posição, cfr. Ph. Foot, “Euthanasia”, Philosophy & Public Affairs, vol. 6 (1977), pp. 85-112. Foot não subscreve a conclusão radical de que a eutanásia voluntária e involuntária, é sempre correcta.
[2] J. Rachels rejeita esta distinção entre eutanásia activa e passiva como moralmente irrelevante. Cfr. “Active e Passive Euthanasia”, New England Journal of Medicine, Vol. 292, pp. 78-80. Cfr. crítica de Foot, pp. 100-103.
[3] Para uma defesa desta posição cfr. J. V. Sullivan, “The Immorality of Euthanasia”, in Marvin Kohl, ed., Beneficent Euthanasia (Buffalo, New York, Prometheus Books, 1975), pp. 34-5.
[4] Esta ideia é defendida por R. V. MacIntyre, “Voluntary Euthanasia: The ultimate perversion”, Medical Counterpoint, Vol. 2, pp. 26-29.
[5] Cfr. MacIntyre, p. 28.
[6] Cfr. Sullivan, “The Immorality of Euthanasia”, pp. 34-44, para uma defesa mais extensa desta posição.
[7] Cfr., por exemplo, Thomas S. Szasc, The myth of mental illness, rev. ed. (New York: Harper and Rove, 1974).
[8] A. Dyck, “Beneficent Euthanasia and Benemortasia”, Kohl, op. cit., pp. 117-29.
J. Gay-Williams, “The Wrongfulness of Euthanasia” in S. Satris (org.) (2000). Taking Sides: Clashing views on controversial Moral Issues. 7th Ed.. Connecticut: Dushkin/McGraw Hill, pp. 294-97 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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