quarta-feira, 12 de março de 2008

David Luban, "A Guerra contra o Terrorismo e o fim dos Direitos Humanos (Parte V)

«Em oposição à conveniência
O argumento contra o modelo híbrido guerra-direito é igualmente claro. Os EUA simplesmente escolheram os elementos do modelo do direito e os elementos do modelo da guerra que mais convêm aos interesses Americanos e ignoraram os restantes. O modelo abole os direitos dos inimigos potenciais (e dos seus escudos inocentes) por decreto – não por causa de um princípio moral ou legal, mas apenas porque os EUA não querem que eles tenham direitos. Quanto mais direitos tiverem, maior o risco que representam. Mas o desejo urgente dos Americanos minimizarem os nossos riscos não faz desaparecer os direitos das outras pessoas. Chamar à nossa política Guerra contra o Terrorismo obscurece este aspecto.
A base teórica da objecção é que o modelo do direito e o modelo da guerra são apresentados em pacote, como se possuísse uma espécie de integridade intelectual. O modelo do direito emerge das relações dentro dos estados, enquanto o modelo da guerra emerge das relações entre os estados. O modelo do direito atribui um conjunto de valores de carácter comunitário àqueles que estão sujeitos à lei – pragmaticamente, os cidadãos de um estado, mas também os visitantes e estrangeiros que escolhem envolver-se em comportamentos que afectam um estado. Apenas porque a lei impõe valores básicos partilhados à comunidade, é que o estado pode condenar e punir a conduta dos criminosos. Os criminosos merecem a condenação e a punição porque as suas condutas violam normas que esperávamos que deviam partilhar, mas, pela mesma razão – a comunidade de valores atribuída – aqueles que estão sujeitos à lei gozam ordinariamente da presunção de inocência e da expectativa de segurança. O governo não pode pura e simplesmente apanhá-los e encarcerá-los sem se certificar que violaram a lei, nem os pode condenar sem desenvolver os procedimentos necessários para se assegurar que se trata da pessoa certa, nem pode, na luta contra o crime, colocar deliberadamente em perigo pessoas inocentes. São os nossos rapazes e a comunidade deve protegê-los da mesma forma que nos protege. A mesma comunidade de valores atribuída que justifica a condenação e a punição cria direitos de segurança e processuais legítimos.
A guerra é diferente. A guerra é o reconhecimento último de que os seres humanos não vivem numa comunidade única de valores partilhados. Se as normas conflituarem o suficiente, as comunidades representam de facto um perigo umas para às outras, e nada pode proteger os inimigos da comunidade excepto a força das armas. Isso faz com que os soldados inimigos sejam alvos legítimos; mas torna também os nossos soldados alvos legítimos, e logo que o inimigo deixa de constituir um perigo, deve ser imune à punição, porque se lutou de forma limpa, então não violou qualquer das normas que presumivelmente devia honrar. As nossas normas são, afinal de contas, nossas, não dele.
Uma vez que o modelo do direito e o modelo da guerra aparecem como que em pacotes conceptuais, não é correcto separá-los e recombiná-los apenas porque isso serve os interesses Americanos. Declarar que os Americanos podem lutar contra inimigos porque eles são combatentes, mas que se eles ripostarem não são combatentes, mas criminosos, transforma a moralidade internacional numa espécie de jogo de caras-ou-coroas, que passa a justificar tudo o que sirva para reduzir os riscos dos Americanos, independentemente dos custos que isso venha a representar para os outros. Esta é, em síntese, a crítica ao modelo híbrido guerra-direito.
Para que não haja dúvidas, o modelo do direito pode ser concebido para incorporar o modelo da guerra simplesmente por reescrever uma mão cheia de leis. O Congresso pode aprovar leis que permitam o encarceramento ou a execução de pessoas que representam uma ameaça de terrorismo significativa independentemente destas já terem feito algo errado. Pode fixar-se um baixo padrão de prova e pode eliminar-se a necessidade de julgamento. Finalmente, o Congresso pode autorizar o uso de força letal contra os terroristas independentemente do perigo que possa representar para pessoas inocentes, e pode isentar os militares de processos judiciais e julgamentos em virtude da existência de vítimas de danos colaterais. Estas leis violariam a Constituição, mas esta pode ser alterada para incorporar excepções anti-terroristas à Quarta, Quinta e Sexta Emendas. No final, teríamos um sistema legal que incluiria todas as características essenciais do modelo da guerra.
Seria, contudo, um sistema que encarcera pessoas pelas suas intenções e não pelas suas acções, e que oferece aos inocentes poucas protecções contra detenções erradas e mortes inadvertidas em resultado de danos colaterais. Os princípios de que as pessoas devem ser punidas pelas suas acções e não pelos seus pensamentos, já se foram, e os inocentes devem ser protegidos e não prejudicados pelos seus governos. Nesse sentido e em qualquer caso, mascarar a guerra com o direito parece apenas uma operação de cosmética, porque substitui o ideal da lei como protector dos direitos pelo objectivo mais problemático de proteger alguns inocentes através do sacrifício de outros. Esta hipotética legislação incorpora a guerra no direito apenas porque torna a lei tão parcial e impiedosa como a guerra. Já não se parece com o direito tal como os Americanos o conhecem.
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