«Direitos e Mérito
A igualdade, no sentido de igual consideração de necessidades igualmente relevantes, faz parte do nosso código moral. E desse modo somos levados a concluir, acertadamente devo dizer, que devemos impedir o dano aos outros se ao fazê-lo não estamos a sacrificar algo de importância moral comparável. Mas há um outro lado da moeda que Singer ignora. (…) Pode ser toscamente expresso pela noção de título. Este implica duas categorias amplas: os direitos e o mérito. Alguns exemplos servirão para mostrar o que estou a afrimar.
Qualquer um de nós pode ajudar os outros dando ou criando condições para que tirem partido dos seus corpos. Enquanto que a sua vida pode ser abreviada pela perda de um rim ou ser menos feliz por viver apenas com um olho, esses custos não são comparáveis à perda experimentada por alguém que morrerá por não ter um rim ou por ser completamente cega. Podemos até imaginar-se o caso de pessoas que, de alguma forma, serão efectivamente prejudicadas por não lhes concedermos favores sexuais. Talvez a ausência de um parceiro sexual possa dar origem a danos psicológicos ou até a violações. Mas suponha agora que está ao seu alcance impedir isto sem sacrificar algo de importância moral comparável. É obvio que estas relações não são agradáveis, mas de acordo com a regra moral do mal maior isso não é suficiente: para recusar de forma justificada, deve mostrar que a infelicidade que experimentaria é de importância moral comparável ao dano que está a impedir. Doutra forma, a regra diz que deve consentir.
Se alguma coisa é clara, é o facto do nosso código moral não exigir um tal heroísmo; o leitor tem o direito de conservar o seu segundo olho ou o seu rim, bem como o direito de não prestar favores sexuais a quem quer que seja que possa sofrer por deles não usufruir. A razão disto é expressa frequentemente em termos de direitos; é o seu corpo, logo tem direito a ele e isso ultrapassa qualquer dever de auxílio que possa existir. Dar um rim a um estranho é fazer mais do que é moralmente exigível, é sinal de heroísmo.
Os direitos morais são normalmente divididos em duas categorias. Os direitos negativos são direitos de não interferência. O direito à vida, por exemplo, é o direito a não ser morto. Os direitos de propriedade, o direito à privacidade e o direito de liberdade religiosa, também são direitos negativos, que exigem apenas que os outros sejam deixados em paz, sem interferência.
Os direitos positivos, todavia, são direitos de receptividade. Ao não dar os seus filhos para adopção, os pais estão a garantir-lhes diversos direitos positivos, incluindo o direito de serem alimentados, de serem vestidos e o direito a uma residência. Se concordei participar num negócio com o leitor, a minha promessa cria um direito de receptividade, pelo que se voltar atrás com a palavra dada, estarei a violar o direito da outra parte do negócio, ou seja, o seu direito.
Os direitos negativos também divergem dos direitos positivos por estes serem formais, pois dependem daquilo que o leitor é. Se os animais inferiores não possuem direito à vida ou a liberdade, é porque existe uma diferença relevante entre eles e nós. Mas os direitos positivos não são naturais, decorrem das promessas, dos acordos ou dos contratos celebrados pelas pessoas.
Normalmente, o dever de ajudar um estranho que passa necessidades não decorre de um direito que ele possui. Este direito seria positivo, mas uma vez que não foi celebrado qualquer contrato ou feita qualquer promessa, esse direito não existe. Uma excepção a esta situação será a de um nadador salvador que aceita cuidar dos filhos de alguém. Os pais de uma criança que acabasse por se afogar nesta situação seriam duplamente enganados. Em primeiro lugar, o nadador salvador não devia ter ignorado de forma cruel e negligente os interesses da criança, e, depois, não devia ter violado o direito dos pais que estava a auxiliar. Aqui, ao contrário do que defende Singer, podemos dizer que há direitos em jogo. Se existissem outros observadores também teriam agido de forma errada e cruel ao ignorar a criança, mas ao contrário do nadador salvador, não teriam violado o direito de alguém. Os direitos morais são um factor a ponderar, mas também existem obrigações. Não estou a defender que só os direitos interessam. Essa visão, tal como a regra moral do maior mal, troca a simplicidade pelo rigor. Com efeito, o nosso código moral implica que ajudemos aqueles que precisam, mas também que respeitemos os seus direitos negativos e positivos. Só que também temos o direito de invocar os nossos direitos para justificar não ajudar estrangeiros distantes ou quando isso representa para nós um custo substancial, como, por exemplo, dar um olho ou um rim. […]
O mérito é a segunda forma de título. Suponha o leitor, por exemplo, que um agricultor empreendedor consegue produzir, através do seu esforço, uma quantidade de alimento superior às suas necessidades durante o Inverno, enquanto que o seu vizinho preguiçoso passa o verão a pescar. Será que o nosso agricultor empreendedor deve ignorar o seu esforço e dar o que não precisa ao seu vizinho para que a sua família não sofra? Ora, o que mais uma vez parece evidente é a existência de mais do que um factor a ponderar. Não só devemos comparar as consequências do acto de dar, como temos de comparar as consequências do acto de não dar; devemos igualmente ponderar o facto de o agricultor merecer a quantidade excessiva de alimento por ela resultar do seu esforço do seu trabalho. Talvez o peso do seu mérito seja inferior ao peso da maior necessidade do seu vizinho preguiçoso, ou talvez não, mas isso nunca significará que o seu mérito seja completamente irrelevante!
O mérito também pode ser negativo. O facto de um criminoso nazi ter feito o que fez significa que merece ser punido, que temos o direito de o prender. Outras considerações como, por exemplo, o facto de ninguém poder ser dissuadido pelo seu sofrimento, ou por ser idoso e inofensivo, podem pesar contra a sua prisão e a favor da sua libertação; mas mais uma vez isso não significa que já não mereça ser punido.
O nosso código moral dá igual peso ao princípio do mal maior e ao do título. O primeiro enfatiza a igualdade, afirmando que, de um ponto de vista objectivo, qualquer sofrimento comparável, independentemente da vítima, é igualmente significativo. Obriga a que assumamos uma atitude imparcial relativamente a todos os efeitos das nossas acções, sendo, por isso, prospectivo. Contudo, quando estão em causa questões de título, a nossa atenção dirige-se ao passado. Saber se temos direito ao dinheiro, à propriedade, aos olhos ou a outra coisa qualquer, depende do modo como os adquirimos. Se isso aconteceu através do roubo e não pelo nascimento ou pela troca, então esse direito é suspeito. O mérito, como os direitos, é retrospectivo, o que enfatiza os esforços ou os crimes passados que garantem no presente a recompensa ou a punição.»
A igualdade, no sentido de igual consideração de necessidades igualmente relevantes, faz parte do nosso código moral. E desse modo somos levados a concluir, acertadamente devo dizer, que devemos impedir o dano aos outros se ao fazê-lo não estamos a sacrificar algo de importância moral comparável. Mas há um outro lado da moeda que Singer ignora. (…) Pode ser toscamente expresso pela noção de título. Este implica duas categorias amplas: os direitos e o mérito. Alguns exemplos servirão para mostrar o que estou a afrimar.
Qualquer um de nós pode ajudar os outros dando ou criando condições para que tirem partido dos seus corpos. Enquanto que a sua vida pode ser abreviada pela perda de um rim ou ser menos feliz por viver apenas com um olho, esses custos não são comparáveis à perda experimentada por alguém que morrerá por não ter um rim ou por ser completamente cega. Podemos até imaginar-se o caso de pessoas que, de alguma forma, serão efectivamente prejudicadas por não lhes concedermos favores sexuais. Talvez a ausência de um parceiro sexual possa dar origem a danos psicológicos ou até a violações. Mas suponha agora que está ao seu alcance impedir isto sem sacrificar algo de importância moral comparável. É obvio que estas relações não são agradáveis, mas de acordo com a regra moral do mal maior isso não é suficiente: para recusar de forma justificada, deve mostrar que a infelicidade que experimentaria é de importância moral comparável ao dano que está a impedir. Doutra forma, a regra diz que deve consentir.
Se alguma coisa é clara, é o facto do nosso código moral não exigir um tal heroísmo; o leitor tem o direito de conservar o seu segundo olho ou o seu rim, bem como o direito de não prestar favores sexuais a quem quer que seja que possa sofrer por deles não usufruir. A razão disto é expressa frequentemente em termos de direitos; é o seu corpo, logo tem direito a ele e isso ultrapassa qualquer dever de auxílio que possa existir. Dar um rim a um estranho é fazer mais do que é moralmente exigível, é sinal de heroísmo.
Os direitos morais são normalmente divididos em duas categorias. Os direitos negativos são direitos de não interferência. O direito à vida, por exemplo, é o direito a não ser morto. Os direitos de propriedade, o direito à privacidade e o direito de liberdade religiosa, também são direitos negativos, que exigem apenas que os outros sejam deixados em paz, sem interferência.
Os direitos positivos, todavia, são direitos de receptividade. Ao não dar os seus filhos para adopção, os pais estão a garantir-lhes diversos direitos positivos, incluindo o direito de serem alimentados, de serem vestidos e o direito a uma residência. Se concordei participar num negócio com o leitor, a minha promessa cria um direito de receptividade, pelo que se voltar atrás com a palavra dada, estarei a violar o direito da outra parte do negócio, ou seja, o seu direito.
Os direitos negativos também divergem dos direitos positivos por estes serem formais, pois dependem daquilo que o leitor é. Se os animais inferiores não possuem direito à vida ou a liberdade, é porque existe uma diferença relevante entre eles e nós. Mas os direitos positivos não são naturais, decorrem das promessas, dos acordos ou dos contratos celebrados pelas pessoas.
Normalmente, o dever de ajudar um estranho que passa necessidades não decorre de um direito que ele possui. Este direito seria positivo, mas uma vez que não foi celebrado qualquer contrato ou feita qualquer promessa, esse direito não existe. Uma excepção a esta situação será a de um nadador salvador que aceita cuidar dos filhos de alguém. Os pais de uma criança que acabasse por se afogar nesta situação seriam duplamente enganados. Em primeiro lugar, o nadador salvador não devia ter ignorado de forma cruel e negligente os interesses da criança, e, depois, não devia ter violado o direito dos pais que estava a auxiliar. Aqui, ao contrário do que defende Singer, podemos dizer que há direitos em jogo. Se existissem outros observadores também teriam agido de forma errada e cruel ao ignorar a criança, mas ao contrário do nadador salvador, não teriam violado o direito de alguém. Os direitos morais são um factor a ponderar, mas também existem obrigações. Não estou a defender que só os direitos interessam. Essa visão, tal como a regra moral do maior mal, troca a simplicidade pelo rigor. Com efeito, o nosso código moral implica que ajudemos aqueles que precisam, mas também que respeitemos os seus direitos negativos e positivos. Só que também temos o direito de invocar os nossos direitos para justificar não ajudar estrangeiros distantes ou quando isso representa para nós um custo substancial, como, por exemplo, dar um olho ou um rim. […]
O mérito é a segunda forma de título. Suponha o leitor, por exemplo, que um agricultor empreendedor consegue produzir, através do seu esforço, uma quantidade de alimento superior às suas necessidades durante o Inverno, enquanto que o seu vizinho preguiçoso passa o verão a pescar. Será que o nosso agricultor empreendedor deve ignorar o seu esforço e dar o que não precisa ao seu vizinho para que a sua família não sofra? Ora, o que mais uma vez parece evidente é a existência de mais do que um factor a ponderar. Não só devemos comparar as consequências do acto de dar, como temos de comparar as consequências do acto de não dar; devemos igualmente ponderar o facto de o agricultor merecer a quantidade excessiva de alimento por ela resultar do seu esforço do seu trabalho. Talvez o peso do seu mérito seja inferior ao peso da maior necessidade do seu vizinho preguiçoso, ou talvez não, mas isso nunca significará que o seu mérito seja completamente irrelevante!
O mérito também pode ser negativo. O facto de um criminoso nazi ter feito o que fez significa que merece ser punido, que temos o direito de o prender. Outras considerações como, por exemplo, o facto de ninguém poder ser dissuadido pelo seu sofrimento, ou por ser idoso e inofensivo, podem pesar contra a sua prisão e a favor da sua libertação; mas mais uma vez isso não significa que já não mereça ser punido.
O nosso código moral dá igual peso ao princípio do mal maior e ao do título. O primeiro enfatiza a igualdade, afirmando que, de um ponto de vista objectivo, qualquer sofrimento comparável, independentemente da vítima, é igualmente significativo. Obriga a que assumamos uma atitude imparcial relativamente a todos os efeitos das nossas acções, sendo, por isso, prospectivo. Contudo, quando estão em causa questões de título, a nossa atenção dirige-se ao passado. Saber se temos direito ao dinheiro, à propriedade, aos olhos ou a outra coisa qualquer, depende do modo como os adquirimos. Se isso aconteceu através do roubo e não pelo nascimento ou pela troca, então esse direito é suspeito. O mérito, como os direitos, é retrospectivo, o que enfatiza os esforços ou os crimes passados que garantem no presente a recompensa ou a punição.»
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