«Um limbo de privação de direitos
O estatuto legal dos suspeitos da Al-Qaida que estão presos na Base Naval da Baía de Guantanamo, em Cuba, é um exemplo paradigmático desta aproximação híbrida guerra-direito à ameaça do terrorismo. De acordo com o modelo da guerra, não possuem os direitos habituais dos suspeitos de crimes – a presunção da inocência, o direito a um julgamento para determinação de culpa, a oportunidade de provar que as autoridades apanharam a pessoa errada. Mas, de acordo com o modelo do direito, são considerados combatentes ilegítimos. Uma vez que não são forças militarizadas, não possuem os direitos dos prisioneiros de guerra e estão sujeitos a punição criminal. Inicialmente o governo americano declarou que os prisioneiros da Baía de Guantanamo não tinham direitos à luz das Convenções de Genebra. Por causa dos protestos internacionais, Washington recuou rapidamente e anunciou que os prisioneiros da Baía de Guantanamo seriam efectivamente tratados de forma decente como prisioneiros de guerra – mas também deixaram claro que esses prisioneiros não tinham qualquer direito a esse tratamento. Não sendo suspeitos de crimes nem prisioneiros de guerra, vivem num limbo de privação de direitos. A afirmação do Secretário da Defesa Rumsfeld de que os E.U.A podem continuar com a sua detenção mesmo que um tribunal militar os tenha ilibado, dramatiza ainda mais a situação.
Para perceber a excepcionalidade do seu estatuto, considere a analogia. Suponha que os E.U.A. declaram guerra ao Crime Organizado. São enviadas tropas para a Sicília e alguns mafiosos são presos e transportados para a Baía de Guantanamo, onde são mantidos prisioneiros indefinidamente sem julgamento, provavelmente para o resto das suas vidas. Não são acusados de qualquer crime, uma vez que foram presos não pelo que fizeram, mas pelo que poderiam fazer. Afinal “fizeram” juramentos de obediência aos maus da fita. Prendê-los está de acordo com o modelo da guerra: são soldados inimigos. Mas não são soldados porque não possuem uniforme; segundo a Convenção de Haia, falta-lhes uma “emblema distintivo fixo”. Isso torna-os em combatentes ilegítimos, pelo que não podem ser tratados como prisioneiros de guerra. Podem afirmar que isto é uma posição unilateral do Presidente americano que começou por os considerar, em primeiro lugar, combatentes – foi ele que disse que se tratava de uma guerra, não eles – e que, uma vez que não se consideram a eles próprios soldados, nunca lhes poderia ocorrer usar um emblema distintivo fixo. Têm razão neste ponto. Parece demasiado fácil para o Presidente privar qualquer pessoa no mundo da sua liberdade e dos seus direitos apenas por declarar que está em guerra com ela e depois, se resistir, afirmar que se trata de um combatente ilegítimo. Mas, segundo o modelo híbrido guerra-direito, os seus protestos seriam em vão.
Considere um outro exemplo, Em Janeiro de 2002, as tropas dos E.U.A. na Bósnia prenderam cinco Argelinos e um Iémen suspeitos de relações com a Al-Qaida e levaram-nos para a Baía de Guantanamo. Os seis foram presos na Bósnia, mas um tribunal da Bósnia libertou-os por falta de provas, e a Associação dos Direitos Humanos da Bósnia apresentou uma injunção para que quatro deles pudessem permanecer no país devido a procedimentos legais pendentes. Ironicamente, a Associação dos Direitos Humanos da Bósnia foi criada segundo os auspícios americanos dos acordos de paz de Daytona, e foi especificamente concebida para proteger as pessoas de situações deste tipo. Ruth Wedgwood, uma reconhecida especialista em Direito Internacional da Universidade de Yale e membro do Conselho para as Relações Externas, defendeu esta detenção segundo o modelo guerra-direito. “Eu penso que se deve apenas argumentar tratar-se de um caso de auto-defesa. Uma das regras fundamentais da lei militar é que alguém tem o direito primário de agir em auto-defesa. E se estas pessoas estavam a planear fazer explodir a embaixada dos E.U.A., devem ser considerados combatentes e capturados como combatentes de guerra.” Note-se que a argumentação da Professora Wedgwood refere-se ao que os homens que foram presos estavam a planear fazer, não ao que fizeram; note-se ainda que a decisão do tribunal da Bósnia sobre a inexistência de provas suficientes é irrelevante. Estas são características do modelo da guerra.
Mais recentemente, dois cidadãos americanos alegadamente operacionais da Al-Qaida (José Padilla, depois Abdullah al Muhajir e Yasser Esam Hamdi) foram encarcerados em prisões militares americanas, sem qualquer acusação, sem oportunidade de consultar um advogado e sem julgamento. O Presidente descreveu Padilla como “um homem mau” que pretendia construir uma bomba nuclear “suja” e usá-la contra a América; e o Departamento de Justiça classificou ambos os homens como “combatentes inimigos” que podem permanecer presos para sempre. No entanto, como observou o especialista em direito militar, Gary Solis, “Até agora, o termo “combatente inimigo”, tal como tem sido usado pelo Procurador-geral, nunca apareceu no direito criminal dos E.U.A, no direito internacional ou no direito da guerra”. A frase foi usada em 1942 pelo Supremo Tribunal no caso Ex parte Quirin, só que tudo o que se dizia era que “um combatente inimigo que se infiltra sem uniforme nas nossas linhas com o objectivo de provocar uma guerra através da destruição da vida e da propriedade” não devia (…) beneficiar do estatuto de prisioneiro de guerra, mas (…) (seriam) culpados de violar o direito da guerra e sujeitos ao julgamento e punição por tribunais militares.” Por outras palavras, para o Tribunal, o estatuto de uma pessoa como combatente inimigo sem uniforme aproxima-o mais de um criminoso do que um combatente, e determina onde deve ser julgado (num tribunal militar em vez de num tribunal civil) mas não se deve ser julgado. Longe de permitir o encarceramento sem termo, Ex parte Quirin pressupõe que os criminosos têm direito a ser presentes a um juiz: sem isso como podem os suspeitos provar que o governo cometeu um erro? Quirin introduz de forma firme o conceito de “combatente inimigo” no modelo do direito. Pelo contrário, no modelo da guerra, os prisioneiros de guerra podem ser encarcerados sem serem julgados até que as hostilidades terminem. Mas os prisioneiros de guerra foram capturados com uniforme e apenas a sua indiscutível identificação como soldados inimigos justifica o seu encarceramento sem termo. Aparentemente, Hamdi e Padill apanharam o pior dos dois modelos – prisão sem termo e sem julgamento, como os prisioneiros de guerra, mas nenhuma certeza para além do facto do governo dos E.U.A. dizer que são “maus homens”. Este é o modelo híbrido guerra-direito. Combina a categoria dos “inimigos combatentes sem uniforme” de Quirin usado no modelo do direito para justificar o julgamento militar, e a prática do modelo da guerra do encarceramento sem termo e da ausência de julgamento.»
O estatuto legal dos suspeitos da Al-Qaida que estão presos na Base Naval da Baía de Guantanamo, em Cuba, é um exemplo paradigmático desta aproximação híbrida guerra-direito à ameaça do terrorismo. De acordo com o modelo da guerra, não possuem os direitos habituais dos suspeitos de crimes – a presunção da inocência, o direito a um julgamento para determinação de culpa, a oportunidade de provar que as autoridades apanharam a pessoa errada. Mas, de acordo com o modelo do direito, são considerados combatentes ilegítimos. Uma vez que não são forças militarizadas, não possuem os direitos dos prisioneiros de guerra e estão sujeitos a punição criminal. Inicialmente o governo americano declarou que os prisioneiros da Baía de Guantanamo não tinham direitos à luz das Convenções de Genebra. Por causa dos protestos internacionais, Washington recuou rapidamente e anunciou que os prisioneiros da Baía de Guantanamo seriam efectivamente tratados de forma decente como prisioneiros de guerra – mas também deixaram claro que esses prisioneiros não tinham qualquer direito a esse tratamento. Não sendo suspeitos de crimes nem prisioneiros de guerra, vivem num limbo de privação de direitos. A afirmação do Secretário da Defesa Rumsfeld de que os E.U.A podem continuar com a sua detenção mesmo que um tribunal militar os tenha ilibado, dramatiza ainda mais a situação.
Para perceber a excepcionalidade do seu estatuto, considere a analogia. Suponha que os E.U.A. declaram guerra ao Crime Organizado. São enviadas tropas para a Sicília e alguns mafiosos são presos e transportados para a Baía de Guantanamo, onde são mantidos prisioneiros indefinidamente sem julgamento, provavelmente para o resto das suas vidas. Não são acusados de qualquer crime, uma vez que foram presos não pelo que fizeram, mas pelo que poderiam fazer. Afinal “fizeram” juramentos de obediência aos maus da fita. Prendê-los está de acordo com o modelo da guerra: são soldados inimigos. Mas não são soldados porque não possuem uniforme; segundo a Convenção de Haia, falta-lhes uma “emblema distintivo fixo”. Isso torna-os em combatentes ilegítimos, pelo que não podem ser tratados como prisioneiros de guerra. Podem afirmar que isto é uma posição unilateral do Presidente americano que começou por os considerar, em primeiro lugar, combatentes – foi ele que disse que se tratava de uma guerra, não eles – e que, uma vez que não se consideram a eles próprios soldados, nunca lhes poderia ocorrer usar um emblema distintivo fixo. Têm razão neste ponto. Parece demasiado fácil para o Presidente privar qualquer pessoa no mundo da sua liberdade e dos seus direitos apenas por declarar que está em guerra com ela e depois, se resistir, afirmar que se trata de um combatente ilegítimo. Mas, segundo o modelo híbrido guerra-direito, os seus protestos seriam em vão.
Considere um outro exemplo, Em Janeiro de 2002, as tropas dos E.U.A. na Bósnia prenderam cinco Argelinos e um Iémen suspeitos de relações com a Al-Qaida e levaram-nos para a Baía de Guantanamo. Os seis foram presos na Bósnia, mas um tribunal da Bósnia libertou-os por falta de provas, e a Associação dos Direitos Humanos da Bósnia apresentou uma injunção para que quatro deles pudessem permanecer no país devido a procedimentos legais pendentes. Ironicamente, a Associação dos Direitos Humanos da Bósnia foi criada segundo os auspícios americanos dos acordos de paz de Daytona, e foi especificamente concebida para proteger as pessoas de situações deste tipo. Ruth Wedgwood, uma reconhecida especialista em Direito Internacional da Universidade de Yale e membro do Conselho para as Relações Externas, defendeu esta detenção segundo o modelo guerra-direito. “Eu penso que se deve apenas argumentar tratar-se de um caso de auto-defesa. Uma das regras fundamentais da lei militar é que alguém tem o direito primário de agir em auto-defesa. E se estas pessoas estavam a planear fazer explodir a embaixada dos E.U.A., devem ser considerados combatentes e capturados como combatentes de guerra.” Note-se que a argumentação da Professora Wedgwood refere-se ao que os homens que foram presos estavam a planear fazer, não ao que fizeram; note-se ainda que a decisão do tribunal da Bósnia sobre a inexistência de provas suficientes é irrelevante. Estas são características do modelo da guerra.
Mais recentemente, dois cidadãos americanos alegadamente operacionais da Al-Qaida (José Padilla, depois Abdullah al Muhajir e Yasser Esam Hamdi) foram encarcerados em prisões militares americanas, sem qualquer acusação, sem oportunidade de consultar um advogado e sem julgamento. O Presidente descreveu Padilla como “um homem mau” que pretendia construir uma bomba nuclear “suja” e usá-la contra a América; e o Departamento de Justiça classificou ambos os homens como “combatentes inimigos” que podem permanecer presos para sempre. No entanto, como observou o especialista em direito militar, Gary Solis, “Até agora, o termo “combatente inimigo”, tal como tem sido usado pelo Procurador-geral, nunca apareceu no direito criminal dos E.U.A, no direito internacional ou no direito da guerra”. A frase foi usada em 1942 pelo Supremo Tribunal no caso Ex parte Quirin, só que tudo o que se dizia era que “um combatente inimigo que se infiltra sem uniforme nas nossas linhas com o objectivo de provocar uma guerra através da destruição da vida e da propriedade” não devia (…) beneficiar do estatuto de prisioneiro de guerra, mas (…) (seriam) culpados de violar o direito da guerra e sujeitos ao julgamento e punição por tribunais militares.” Por outras palavras, para o Tribunal, o estatuto de uma pessoa como combatente inimigo sem uniforme aproxima-o mais de um criminoso do que um combatente, e determina onde deve ser julgado (num tribunal militar em vez de num tribunal civil) mas não se deve ser julgado. Longe de permitir o encarceramento sem termo, Ex parte Quirin pressupõe que os criminosos têm direito a ser presentes a um juiz: sem isso como podem os suspeitos provar que o governo cometeu um erro? Quirin introduz de forma firme o conceito de “combatente inimigo” no modelo do direito. Pelo contrário, no modelo da guerra, os prisioneiros de guerra podem ser encarcerados sem serem julgados até que as hostilidades terminem. Mas os prisioneiros de guerra foram capturados com uniforme e apenas a sua indiscutível identificação como soldados inimigos justifica o seu encarceramento sem termo. Aparentemente, Hamdi e Padill apanharam o pior dos dois modelos – prisão sem termo e sem julgamento, como os prisioneiros de guerra, mas nenhuma certeza para além do facto do governo dos E.U.A. dizer que são “maus homens”. Este é o modelo híbrido guerra-direito. Combina a categoria dos “inimigos combatentes sem uniforme” de Quirin usado no modelo do direito para justificar o julgamento militar, e a prática do modelo da guerra do encarceramento sem termo e da ausência de julgamento.»
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