domingo, 30 de março de 2008

Isaiah Berlin, "Dois Conceitos de Liberdade" (Parte II)

«Alguns filósofos com uma visão optimista da natureza humana e uma crença na possibilidade de harmonizar os interesses humanos - filósofos como Locke, Adam Smith ou, em alguns estados de espírito, Mill, acreditavam que a harmonia e o progresso sociais eram compatíveis com a possibilidade de reservar uma grande área para a vida privada, que nem ao Estado nem a qualquer outra autoridade seria permitido invadir. Hobbes e aqueles que concordavam com suas ideias, especialmente pensadores conservadores ou reaccionários, argumentavam que, se os homens deviam ser impedidos de se destruir uns aos outros e de tornar a vida social uma selva ou um deserto, então precisavam ser instituídas maiores salvaguardas para os manter nos seus devidos lugares; consequentemente, ele queria aumentar a área de controlo centralizado e diminuir a do indivíduo. Mas ambos os lados concordavam que alguma parte da existência humana deveria permanecer independente da esfera de controlo social. Invadir essa área reservada, embora pequena, seria despotismo. O mais eloquente de todos os defensores da liberdade e privacidade, Benjamin Constant, que não se esquecera da ditadura jacobina, declarou que, no mínimo, a liberdade de religião, opinião, expressão e propriedade tinha de ser garantida contra uma invasão arbitrária. Jefferson, Burke, Paine, Mill compilaram diferentes classificações de liberdades individuais, mas o argumento para manter a autoridade em cheque é sempre substancialmente o mesmo. Devemos preservar um mínimo de liberdade pessoal, se não quisermos "degradar ou negar a nossa natureza". Não podemos permanecer totalmente livres e devemos abrir mão de alguma liberdade própria para preservar o resto. Mas a rendição total do eu é a derrota do eu. Qual deve ser então esse mínimo? Aquele de que um homem não pode abrir mão sem ofender a essência da sua natureza humana. Qual é essa essência? Quais são os padrões nela implicados? Isso tem sido e será talvez sempre uma questão para infinitos debates. Mas, qualquer que seja o princípio que norteie a área de não-interferência a ser traçada - seja o da lei natural, o dos direitos naturais, da utilidade, das manifestações de um imperativo categórico, da santidade do contrato social ou o de qualquer outro conceito com que os homens têm procurado esclarecer e justificar as suas convicções -, a liberdade nesse sentido significa livrar-se de; ausência de interferência além da fronteira mutável, mas sempre reconhecível. “A única liberdade que merece esse nome é a de procurar o nosso bem à nossa maneira", disse o mais célebre dos seus defensores[1]. Pode a coação justificar-se nesse caso? Mill não tinha dúvidas que sim. Como a justiça exige que todos os indivíduos tenham direito a um mínimo de liberdade, todos os outros indivíduos devem ser necessariamente impedidos, através da força se for preciso, de privar alguém da liberdade. Na verdade, toda a função da lei era a prevenção exactamente desses choques: o Estado era reduzido ao que Lassalle descreveu desdenhosamente como as funções de um vigia ou de um guarda de trânsito.
O que tornava a protecção da liberdade individual tão sagrada para Mill? No seu famoso ensaio, ele declara que, a menos que o indivíduo tenha permissão para viver como deseja na "parte [da sua conduta] que interessa unicamente a si mesmo"
[2], a civilização não pode progredir; por falta de um livre mercado de ideias, a verdade não virá à luz; não haverá oportunidades para a espontaneidade, "a originalidade, o génio, a energia mental, a coragem moral. A sociedade será esmagada pelo peso da "mediocridade colectiva"[3]. "Tudo o que é rico e diversificado será esmagado pelo peso do costume, pela constante tendência humana à conformidade, que gera apenas faculdades "mirradas", seres humanos "mesquinhos e tacanhos", "acanhados e tolhidos". A "auto-afirmação pagã" é tão digna quanto a "negação cristã de si mesmo"[4]. "Todos os erros que [um homem] é propenso a cometer apesar de todos os conselhos e avisos são superados pelo mal de permitir que outros o sujeitem ao que consideram ser o seu bem."[5] A defesa da liberdade consiste na meta "negativa" de evitar a interferência. Ameaçar um homem de perseguição caso ele não se submeta a uma vida em que não escolhe os seus objectivos; fechar todas as portas à sua frente excepto uma, não importando a nobreza da perspectiva para a qual abre ou a benevolência dos motivos dos que arranjaram tal coisa, e pecar contra a verdade de que ele é um homem, um ser com uma vida própria a ser vivida. Essa é a liberdade como foi concebida pelos liberais no mundo moderno desde os dias de Erasmo (alguns diriam de Occam) aos nossos. Toda a reivindicação de liberdades civis e direitos individuais, todo protesto contra a exploração e a humilhação, contra o abuso da autoridade pública, ou a hipnose de massa do costume ou da propaganda organizada, nasce dessa concepção individualista e muito controversa acerca do homem.
É possível notar três factos sobre esta posição. Em primeiro lugar, Mill confunde duas noções distintas. Uma é que toda coerção, na medida em que frustra desejos humanos, é má em si mesma, embora possa ter de ser aplicada para prevenir outros males maiores; ao passo que a não-interferência, que é o oposto da coerção, é boa em si mesma, embora não seja o único bem. Essa é a concepção "negativa" da liberdade na sua forma clássica. A outra noção é que os homens devem procurar descobrir a verdade ou desenvolver certo tipo de carácter aprovado por Mill - crítico, original, imaginativo, independente, não conformista ao ponto da excentricidade, e assim por diante - e que a verdade pode ser encontrada, e esse carácter pode ser cultivado, apenas em condições de liberdade. Essas duas noções são visões liberais, mas não são idênticas, e a conexão entre elas é, quando muito, empírica. Ninguém afirmaria que a verdade ou a liberdade de expressão podem florescer quando o dogma esmaga todo e qualquer pensamento. Mas as evidências históricas tendem a mostrar (como, na verdade, foi afirmado por James Stephen no seu formidável ataque a Mill no seu livro Liberty, equality, fraternity) que a integridade, o amor à verdade e o individualismo inflamado crescem pelo menos tão frequentemente em comunidades de disciplina severa - como, por exemplo, entre os calvinistas puritanos da Escócia ou da Nova Inglaterra - ou sob a disciplina militar, quanto em sociedades tolerantes ou indiferentes; e, sendo assim, cai por terra o argumento de Mill sobre a liberdade como uma condição necessária para o crescimento do génio humano. Se as suas duas metas se revelassem incompatíveis, Mill seria confrontado com um dilema cruel, sem falar nas outras dificuldades criadas pela incoerência das suas doutrinas com o utilitarismo estrito, até na sua própria versão humanitária dessa doutrina
[6]


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[1] S. Mill, On liberty, capítulo 1; p. 226 in Collected works of John Stuart Mill,(ed.). M. Robson, Toronto/Londres, 1981, vol. 18.
[2] Ibid., p. 224.
[3] Ibid., capítulo 3, p. 268.
[4] Ibid., pp. 265-6.
[5] Ibid., capítulo 4, p. 277.
[6] Isso é apenas uma outra ilustração da tendência natural presente em todos os pensadores à excepção de uns poucos - de acreditar que todas as coisas que eles consideram boas devem estar intimamente conectadas, ou pelo menos ser compatíveis, umas com as outras. A história do pensamento, como a história das nações, está cheia de exemplos de elementos inconsistentes, ou pelo menos disparatados, unidos à força num sistema despótico, ou mantidos unidos pelo perigo de um inimigo comum. No seu devido tempo, o perigo passa, e surgem os conflitos entre os aliados, o que frequentemente rompe o sistema, às vezes para grande beneficio da humanidade.

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