quinta-feira, 13 de março de 2008

Philippa Foot, "Eutanásia" (Parte VI)

«Cabe agora analisar o problema que mais nos incomoda quando pensamos na eutanásia. Pois se podemos fazer algo pelos animais, se lhes podemos fazer bem, aliviando-lhes o sofrimento e salvando-lhes a vida, de onde deriva o bem maior quando apenas a morte pode acabar com o sofrimento? Parece que a vida é um bem por direito próprio; todavia o sofrimento parece ser um mal com estatuto igual e pode fazer com que a vida não seja encarada com um bem. Será que apenas a vida sem dor é uma bênção quando diz respeito aos animais? Esta não é de todo uma sugestão despropositada quando falamos de animais, uma vez que, ao contrário dos seres humanos, não tomam o sofrimento como fazendo parte da rotina das suas vidas. Todavia, será talvez a ideia de vida natural que importa retratar aqui. Não diríamos que não fizemos nada por um animal quando simplesmente o mantivemos vivo, quer num estado inconsciente, quer em condições em que, embora consciente, esse animal não pudesse mover-se de modo natural; o que acontece de facto é que animais sujeitos a sofrimento severo de forma continuada não têm comportamentos normais. No fundo ao salvarmos a vida a um animal, e embora resgatando-o de uma vida repleta de sofrimento, não estamos a optar por lhe fazer bem. Obviamente que existem casos distintos, mas esse não é o problema. Não tentamos tornar possíveis novos juízos de valor, antes tentamos encontrar fundamentos para aqueles que fazemos.
Quando abordamos a questão da vida humana, a situação apresenta-se ainda mais problemática. Pois neste caso temos que tomar em consideração novos dados, tais como a visão que o próprio sujeito tem da sua vida. É discutível o facto deste dado colocar limitações extra quando tentamos encontrar uma solução: não deveríamos assumir como condição necessária para tomarmos o facto de a vida ser um bem para as pessoas, que elas a vejam como tal? Não é difícil observar a ideia de que podemos bem-fazer a alguém prolongando-lhe ou salvando-lhe a vida, apesar de esse alguém desejar a morte? Obviamente que esta pessoa pode possuir uma ideia bastante errada das suas expectativas, mas não nos detenhamos neste ponto e pensemos apenas nos casos em que é a vida, tal como este sujeito a conhece, que está em causa. Poderemos ter a pretensão de pensar que lhe estamos a fazer um bem apesar de ele desejar que a sua vida termine em vez de continuar? Parece não ser possível determiná-lo. O facto de não existir uma incompatibilidade simples entre vida enquanto bem e o desejo pela morte, está patente na possibilidade de alguém poder desejar a sua própria morte, não para o seu próprio bem, mas para o bem de outrem. E se tentarmos corrigir esta tese dizendo que a vida não pode ser um bem para aqueles que desejam morrer para o seu próprio bem, desviamo-nos do conceito crucial. Tal como Bishop Butler referiu há uns anos atrás, nem todos os fins são benevolentes ou promovem o interesse do próprio. Estará uma pessoa a desejar a morte para o seu próprio bem no sentido relevante do termo, por exemplo, se desejar vingar-se noutra usando a sua própria morte? Ou e se essa pessoa é orgulhosa e se recusa a suportar a dependência ou incapacidade apesar de ainda ter muitas coisas boas pela sua frente? A verdade é que, por vezes, o desejo pela morte é compatível com o facto de a vida constituir uma bênção e outras vezes não, o que é possível, pois a expressão “desejar a morte” engloba estados de espírito diversos que variam entre vontade de suicídio, depressões patológicas, até ao estado daqueles que surpreendentemente encontram alívio na ideia de um acidente fatal. Por um lado, uma pessoa pode ver a sua vida como um fardo, mas prosseguir com ela de forma mais ou menos natural; por outro lado, o desejo da morte pode assumir a forma de rejeição de tudo o que existe na vida, tal como acontece nos casos de depressão profunda. Parece ser correcto dizer que a vida não é uma bênção para aqueles que se encontram permanentemente na última situação. A esta questão voltaremos mais tarde.
Quando devemos dizer que a vida é um bem ou um benefício para alguém? Este é o dilema com que nos deparamos. Se dizemos que a vida enquanto tal é um bem, colocamos por terra os exemplos apresentados no início desta discussão. Estamos assim inclinados para pensar que a vida constitui um bem uma vez que implica coisas boas. Mas se assim é porque não é a vida igualmente má quando nos aporta momentos maus? E como pode ser um bem mesmo quando nos traz coisas más?
Devemos frisar a ideia de que a questão foi aqui abordada atendendo à dualidade do bem e do mal, e não na perspectiva da felicidade ou infelicidade, e que não se resolve através da negação (que faz sentido) de que a infelicidade constitui o mal e a felicidade o único bem. Neste ensaio não foi dada outra perspectiva sobre a natureza dos bens ou dádivas além dos da própria vida. A questão é que em qualquer perspectiva sobre os bens e os males da vida, parece que, por mais males que a vida tenha, ela é sempre vista como um bem.
Será talvez prudente rever os juízos de valor com os quais a nossa teoria deve acertar. Pensamos que a vida é um bem para aquele que sofre bastante? Claro que o fazemos. E sê-lo-á também para os deficientes profundos? Também o poderá ser, pois se uma pessoa se encontra completamente paralisada, talvez ajudada por respirador artificial, talvez capaz de mover objectos através de um tubo que sai da boca, não o vamos privar do direito à vida, se ele afirma que alguém lhe salvou a vida. O mesmo se aplica aos deficientes mentais. Existem muitos casos, nomeadamente aqueles que sofrem da síndrome de Down (Mongolismo), para os quais uma vida simples repleta de carinho é possível. E o que dizer da senilidade? Quebrará esta a ligação natural entre o bem e a vida? Precisamos de distinguir entre diferentes formas de senilidade. Algumas deixam traços de vida que nos permitem admitir que a continuidade da mesma é um benefício, outras não. Algumas destas pessoas que são afectadas por este problema vagueiam por enfermarias praticamente inconscientes, apesar de conseguirem empreender alguns movimentos e engolir a comida que lhes é posta na boca. Prolongar este tipo de condição quer nos idosos, quer em deficientes mentais profundos não constitui um benefício ou a prestação de um serviço. Obviamente que só no caso de haver sofrimento poderíamos desejar que morresse para o seu próprio bem.
Temos a impressão, no entanto, que só o facto de estarem vivos nestas circunstâncias, mesmo sem sofrimento, não é um bem, e que devemos fazer uma distinção semelhante àquela que fizemos quando abordámos a questão dos animais. Onde, porém, traçar o limite no caso humano? O que devemos ponderar no caso da vida humana comum? Se privássemos do direito à vida apenas os muito doentes ou muito senis, seria correcto descrevê-lo em termos de operacionabilidade. Todavia é difícil encontrar o sentido desta palavra tal como Panin o utilizou quando escreveu que aqueles homens já não estavam operacionais, e atendendo a que se tinham arrastado até aos postos de trabalho na floresta. O que há de especial nas vidas daqueles prisioneiros que nos faz colocá-los do outro lado da linha separadora e que os distingue daqueles que se encontram gravemente doentes ou sofrem de deficiências mentais ou físicas? Não é o facto de se encontrarem privados da liberdade, pois a vida em cativeiro pode ser boa. Nem tão pouca a natureza pouco comum das suas vidas. De certa forma a vida que os prisioneiros levavam assemelhava-se mais à de outros homens do que a dos pacientes enfiados no respirador artificial.
A solução apresentada para o problema é a de que existe uma ligação conceptual entre vida e bem no caso dos seres humanos, tal como no caso dos animais e até mesmo das plantas. Em todo o caso, porém, não é a simples condição de estar vivo que determina, ou vale por si só para determinar o bem, mas antes a ideia de a vida poder atingir um nível de normalidade. Foram apresentados argumentos no sentido de que é enquanto partes integrantes da vida comum que os momentos bons podem ser considerados relevantes na questão de avaliarmos se a hipótese de salvarmos a vida a alguém é ou não benéfica. As vidas comuns, mesmo as mais difíceis, possuem um mínimo de bens essenciais, mas quando estes estão ausentes, a ideia de vida deixa de estar associada à de bem. E uma vez que é desta forma que os elementos benéficos que formam a vida de uma pessoa são relevantes para determinar se preservar-lhe a vida constitui uma vantagem, não existe razão alguma para ter em linha de conta o equilíbrio entre o bem e o mal. Devemos acrescentar que, de uma certa maneira, os males são relevantes quando eliminam a possibilidade de obtermos as coisas boas comuns, mas por outro lado, também o são quando invadem uma vida da qual, por qualquer razão, o bem está ausente. Assim, por exemplo o elo entre o bem e a vida pode ser quebrado uma vez que a percepção que fazemos dele foi reduzida a um nível muito inferior, como nos casos de senilidade agravada ou de dano cerebral. Neste tipo de contexto, não há noção de boa ou má vida, mas uma vez instalado o sofrimento, temos a tendência de esperar um fim rápido.»

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