quarta-feira, 30 de abril de 2008

Allen Buchanan et al “Por que não o melhor?” (Parte I)

«Ter os melhores filhos possíveis
“Sê tudo o que puderes chegar a ser”, anima o cartel de recrutamento dos jovens para exército dos EUA. Muitos pais partilham deste sentimento. Querem que os seus filhos sejam o melhor que puderem vir a ser. Para muitos pais, o projecto mais importante da sua vida é perseguir este objectivo, e sacrificam-se para o tornar realidade. E por que não haveriam os pais de aspirar a que os seus filhos possam vir a ser o melhor puderem?
Com efeito, os meios são relevantes. Essa a razão pela qual neste capítulo consideramos se os pais deveriam ter a liberdade de utilizar as técnicas de intervenção genética para produzir a melhor progenitura possível. Colocado desta forma, a questão suscita imediatamente uma grande indignação anti-eugénica: não significará a exploração genética e o aborto selectivo a eliminação de muitas vidas que mereceriam viver? E também a desvalorização a vida das pessoas com deficiência? Em qualquer caso, quem poderá dizer o que é o melhor (alguns pais possuem ideias bem peculiares)? Não estarão aqueles que são económica e socialmente privilegiados melhor situados para alcançar o “melhor”? Por acaso o “melhor” para alguns não significará o pior para outros? Não será mau que os pais pensem que os filhos são algo que foi por eles desenhado?
Estas objecções merecem atenção e voltaremos a elas a seguir, mas é importante compreender a suposição que está por detrás da pergunta original. Não deveriam os pais procurar o melhor – incluindo por via da genética – para os seus descendentes? Não esperamos que o façam?

Nada mais natural do que os pais procurarem o melhor para os seus filhos
Considera-se normalmente que os pais têm permissão, e alguns dirão a obrigação, de produzir os “melhores” filhos que seja possível. A sociedade espera que os mantenham tão saudáveis quanto possível. A sociedade espera que os mantenham distantes das drogas, da delinquência das ruas, dos jogos perigosos. Talvez exija que lhe ponham cintos de segurança e travões nas bicicletas. Até que se lhes exija que aumentem a resistência dos seus filhos a certas doenças, por exemplo, através de vacinas, mesmo que fazê-lo colida com as suas crenças religiosas. Se as técnicas genéticas dessem aos pais uma forma de melhorar a resistência dos seus filhos a certas doenças, e a intervenção apenas apresentasse riscos comparáveis aos das vacinas, deveriam os pais poder usá-las livremente ou até ser obrigados a fazê-lo?
Espera-se que tenham em conta os interesses nutricionais e dietéticos dos filhos. Aplaudimos os esforços paternos na educação dos seus filhos, nomeadamente e apesar dos seus protestos, moderando da ingestão de gorduras, o aumentando a fruta e as verduras na sua dieta, e restringindo o seu acesso à comida “artificial”. Afirmamos possuir alguns conhecimentos científicos sobre o que é “melhor” para os filhos, e encorajamos os pais a segui-los (embora as nossas principais campanhas educativas tenham os seus efeitos maiores nas camadas mais cultas e ricas da população). Ao mesmo tempo, dá-se aos pais uma margem de liberdade considerável para alcançar esses objectivos desde que os considerem ou não adequados. Para outros, os “bons” alimentos são aqueles com os quais cresceram, independentemente da sua origem étnica. Estas dietas apresentam benefícios e riscos variados para os filhos. De uma perspectiva alimentar, isto significa que lhes é permitido utilizar o que não é o melhor, desde que isso não seja tão mau que possa constituir negligência ou maus-tratos.
Os pais também procuram obter o melhor para os seus filhos – do seu ponto de vista – através do exercício físico e dos desportos. Alguns filhos inscrevem-se em equipas de principiantes de basebol, futebol, basquetebol, rugby ou hóquei. Frequentam aulas de ténis ou natação, participam em equipas de atletismo; no mínimo, estimula-se o desenvolvimento das suas capacidades através da prática do basquetebol ou do futebol nos parques ou na praia. O objectivo de alguns pais é ensinar os seus filhos a apreciar o exercício físico durante toda a vida, e procuram evitar os desportos de contacto em que podem vir a sofrer lesões graves; para eles, a ginástica não é mais do que uma dimensão da vida. Para outros, o contacto com os desportos é um combate ritualizado, uma preparação importante para os rigores da competição que é a vida. E para outros, o objectivo é desenvolver uma excelência atlética especial que dê aos seus filhos acesso a competições universitárias ou até profissionais; para eles, o desporto é um meio de melhoria ou de promoção. O investimento de alguns pais nas classes de ténis, patinagem ou natação para filhos talentosos, pode ser enorme.
É claro que os pais com meios investem frequentemente no desenvolvimento de outras capacidades para além das físicas: oferecem aos seus filhos aulas de violino, piano ou ballet, inscrevem-nos em clubes e torneios de xadrez, ou fomentam os seus conhecimentos informáticos ou o seu interesse pelas equipas de matemática e por concursos científicos. A estratégia geral de alguns pais é expor os seus filhos a inúmeras actividades para desenvolver uma ampla gama de capacidades e ampliar o número de opções em aberto para os seus filhos. Para outros, a estratégia chave é identificar destrezas ou talentos especiais e investir com frequência no desenvolvimento desses pontos fortes. Para alguns pais de origem modesta, o sacrifício económico que supõe o desenvolvimento das capacidades dos seus filhos é bastante alto; as famílias mais ricas podem facilmente permitir-se todo o investimento necessário. Há bolsas disponíveis para os filhos de famílias humildes com mais talento, pelo menos em algumas áreas do desenvolvimento artístico e desportivo, mas em geral o tamanho do investimento em “capital humano” recai sobre as famílias. Para os mais pobres, tanto nos Estados Unidos como em outras partes, procurar o melhor para filhos pode apenas querer dizer fazer o possível para garantir a sua sobrevivência.
Muitos pais também têm por objectivo fazer dos seus filhos os sujeitos mais prudentes e morais que possam chegar a ser. Para eles, ser o melhor significa possuir as virtudes necessárias para planificar a vida, suportar as suas vicissitudes e adaptar-se a elas. Significa também ter as virtudes necessárias para responder bem às necessidades dos outros, ater-se ao que está bem e tratar equitativamente os demais. Empenham-se de forma considerável para ensinar aos seus filhos a importância de realizar tarefas específicas e de ajudar os outros. Insistem em que os seus filhos procurem empregos que os estimulem para apreciar as exigências do trabalho e o valor do dinheiro, uma ética do trabalho. Obrigam os seus filhos a suportar inúmeras horas e anos de formação religiosa ou de participação em actividades de serviço à comunidade, modelando o seu sentido de pertença a essa comunidade, a sua capacidade para responder aos outros membros do grupo, e a sua consciência social e moral.
Também aqui aos pais se dá uma ampla margem de liberdade para procurar o que consideram melhor. A “garantia de liberdade” significa aqui apenas que há uma presunção a favor de não interferir no trabalho dos pais. Educar os filhos para que aceitem as limitações impostas por algumas seitas religiosas pode reduzir a sua preparação para outras formas de vida, mas os pais talvez acreditem que esta é uma forma de garantir que os seus filhos vivam uma “vida boa” tal como eles a consideram. Os tribunais estado-unidenses reconheceram, por exemplo, o direito da Antiga Ordem Amish a restringir a escolaridade dos seus filhos até aos 14 anos em vez dos 16 exigidos pela lei estatal (Wisconsin versus Yoder, 1972). As oportunidades educativas destas crianças foram trocadas pelo reforço dos direitos a seguir as práticas religiosas e a forma de vida comunitária.
Alguns consideram problemática a decisão do tribunal no caso Wisconsin versus Yoder (voltaremos a este caso neste mesmo capítulo); pensam que as oportunidades educativas não deveriam ser restringidas da forma que esta sentença permite, pois temem que os filhos que mais tarde desejem estabelecer uma forma de vida diferente estejam em desvantagem relativamente à sociedade em geral. Mas o tribunal sustentou que o dano imposto desta forma às crianças é pura conjectura, e é da mesma qualidade que os danos que geralmente impedimos que os pais imponham aos seus filhos. A sociedade proíbe danos que são o resultado da maldade ou da negligência, incluindo, se for necessário, o de reservar-se o direito de retirar a custódia dos filhos aos pais. Apesar da ampla margem de liberdade concedida aos pais, os filhos não são uma propriedade de que os pais possam dispor caprichosamente.
Deixando de lado a questão da negligência e dos maus-tratos, sem dúvida que os pais continuam a ter liberdade para procurar conseguir os melhores descendentes que possam. Interferir com isto seria considerado pela maioria como uma interferência com os elementos mais fundamentais da concepção que os pais têm de vida boa.»

Robert Nozick, "Facto e valor" (Parte VIII)

«Consideremos o caso de placebos, substâncias químicas inertes e inofensivas usadas para efeitos terapêuticos. Damos um medicamento a uma pessoa dizendo-lhe que isso a ajudará na sua doença ou dor; ela acredita no que lhe é dito, e desse modo é ajudada na cura. Todavia, esta cura funciona com base na sua crença no efeito do medicamento, e não apenas através da acção bioquímica da substância no seu organismo; se lhe for administrada a mesma substância química, sem que ela tenha consciência que está a ser ajudada, então não receberá qualquer benefício. Será verdade que a substância presente naquele placebo pode ajudar o paciente, no caso de ele acreditar nos seus efeitos na hora de o tomar?
Como funciona este benefício? Recentemente descobriu-se que as endorfinas, substâncias que servem para aliviar a dor semelhantes à morfina, são naturalmente produzidas no organismo, e há provas de que um placebo exerce influência na produção de endorfinas.
* Suponhamos que quando uma pessoa acredita que está a receber um alívio para a dor ou outra ajuda, este facto estimula a produção de endorfinas ou outros agentes com potencial de cura, reforçando deste modo o seu alívio.
Consideremos o caso de alguém que conhece estes resultados científicos sobre o modo de actuação dos placebos; quando esta pessoa estiver com dores ser-lhe-á administrado um placebo e esse facto é transmitido ao paciente. Será a sua dor diminuída? Esta é uma questão empírica (para a qual, na minha perspectiva, há evidência de que a resposta é afirmativa). Ao lhe ser administrado o placebo, esta pessoa bem informada poderia perguntar, sabendo que um lhe vai ser dado: os placebos dão resultado em casos como este? Se esta substância funciona apenas no caso em que pessoa acredita que isso poderá (ou poderia?) ser possível, então ela também poderá querer saber se essa mesma substância funciona no seu caso em particular. (E poderia ela então perguntar se também funciona no caso de alguém que sabe que lhe foi dado um placebo, e que, na altura, tomou conhecimento se funcionaria ou não? E assim por diante.) Suponhamos – sem nos esquecermos de que se trata de uma questão empírica – que funciona neste caso, para aqueles que acreditam que poderá (ou pode) funcionar. (Talvez não tenha funcionado inicialmente, mas as pessoas foram informadas que, neste caso, funciona, que existem dados baseados em experiências que demonstram a sua eficácia, e assim, uma vez que acreditam no que lhes é transmitido, o placebo é de facto eficaz.) A suposição de que o placebo actua de forma eficaz seria infundada; resultaria da crença de que tais placebos são benéficos. Neste caso são produzidas endorfinas em virtude de uma crença reflexiva: a crença em que esta própria crença produzirá endorfinas. (Consideremos como uma descrição de conhecimento tal qual foi apresentada no Capítulo 3 deveria lidar com a questão no sentido de verificar se esta pessoa sabe ou não que está a ser ajudada pelo placebo.)
Até agora temos evitado a questão ontológica sobre a existência ou não do valor. Analisámos o que seria o valor se existisse valor (nomeadamente, unidade orgânica), como nos poderíamos posicionar face a esse valor e face às características valoráveis de outros, e de que modo poderíamos procurar e seguir valores. Sugerimos que poderiam ser listadas condições sobre o valor que o especificariam de forma singular, excluindo todas as dimensões excepto a dimensão do valor intrínseco. Todavia, em nenhuma parte deste trabalho demonstrámos, provámos ou argumentámos que essa mesma dimensão elegível é o valor ou explicámos por que é um elemento suficiente para constituir valor. (Embora as condições pudessem explicar por que é que o valor, se ele existe, é essa mesma dimensão e não outra qualquer.) A nossa discussão anterior, para usar o termo dos fenomenologistas, colocou entre parêntesis a questão ontológica sobre a existência do valor; a nossa teoria descreveu como seria viver num universo onde existisse valor, onde existissem verdades éticas. (Mas uma descrição completa de tal universo não constituiria condição suficiente para a existência de valor?)
Suponhamos que somos suficientemente desafortunados para viver num universo, idêntico a este, mas sem valor. As condições necessárias constitutivas de valor são satisfeitas, e algumas coisas possuem um grau elevado de unidade orgânica, a qual, (suponhamos) seria considerado valor se é que alguma coisa pode ser, porém nesse universo não existe qualquer forma de valor. (Seria isso “um infortúnio” porque essa situação é pior? Seria esse juízo de valor feito de acordo com um padrão de valor que é sustentável como verdadeiro neste universo descrito, ou apenas num outro qualquer?) Mesmo assim, porquê estar sujeito à contingência de viver num universo sem valores? Não poderíamos nós abandonar a tempo o que nos é prejudicial, e escolher viver como se o nosso universo de facto tivesse valores, não estando deste modo bem pior do que se o valor existisse – mesmo quando isso é avaliado pelo padrão de valor do outro mundo que contém de facto valores? Deste modo, parece que a existência de valor não é necessária, apenas necessitamos um modo coerente para constituir ou formar valor. Precisamos apenas que o valor seja possível. Assim nada que pudesse existir noutro universo faltaria no nosso; sendo que nós aqui poderíamos localizar, adoptar, e seguir o valor que aí existisse, transformando-o em realidade aqui. Neste mundo poderíamos tornar reais as unidades, as interpretações, entre outras, que se podem valorar no outro mundo. É desnecessário, tal como E.E. Cummings sugere, deslocarmo-nos até ao “inferno vizinho”; podemos trazer o seu valor até aqui.
Estas reflexões poderiam sugerir que a existência de valor reside na sua possibilidade, se o valor existe num outro qualquer mundo possível, então de modo a servir qualquer propósito teórico ou prático, também existe neste. Não é suficiente para que o valor tenha um papel na minha vida que eu saiba como ele seria? Todavia que diferença existe entre o aqui e o lá; que mais é considerado verdadeiro lá em virtude do qual a existência de valor é possível? (Terá aí o valor lugar no seguimento de certos factos, tais como o da unidade orgânica, e aqui não?) Mas no caso de não existir qualquer diferença, então por que isto não é evidência de que o valor não existe lá também (uma vez que em ambos os lugares não existirão condições suficientes para a existência de valor), e deste modo mostra que o valor é impossível?
Sabemos o que poderia constituir valor; apenas temos que lhe dar forma, o valorizar, procurá-lo e segui-lo, perfilando as nossas vidas de acordo com ele. Apenas temos que optar pela existência do valor. Para que o valor faça parte do nosso universo apenas precisamos de optar de forma reflexiva para que ele exista, precisamos da nossa imputação reflexiva face à existência de valor.
A escolha fundamental que nos é aberta sobre a existência ou não de valor não é ditada ou caracterizada como melhor por um qualquer padrão de valor pré-existente. Usando um termo de Kierkegaard, é um salto; mas a partir do momento que se dá o salto, ou melhor, nesse (ou em resultado desse) próprio salto, chegamos à conclusão de que essa é a melhor escolha.
** O valor não é algo estranho a nós, não algo completamente exterior, uma vez que nós (não só o temos mas) escolhemos que haja valor. Todavia, é fornecido um padrão externo, visto que, de igual modo, o carácter do valor não depende de nós. A separação fundamental reside entre aqueles que fazem ou a escolha pela existência dos valores e os que optam pelo contrário, quer escolhendo pela ausência de valor quer não admitindo a situação de escolha.
Se alguns não fazem a escolha da existência de valor, então podemos admitir que existem valores para nós e para eles não? De acordo com o discurso da mecânica quântica, poderá uma pessoa viver numa posição ou dimensão superior entre um mundo com valor e outro desprovido dele, através da sua escolha (de que exista ou não valor) reduzindo a onda tumultuosa do mundo em que habita? Porém, não vivemos todos no mesmo mundo? Uma prova de que isso é verdade, e que foi anteriormente discutida, é a motivação pela cobiça daqueles que buscam o mal e que não ficam satisfeitos mesmo quando atingem uma existência com algum valor. Perante esta perspectiva, a escolha de uma pessoa pela existência de valor afecta as restantes para que também estas vivem num mundo com valor, sejam quais forem as suas opções. Contudo, talvez estejamos a ir longe de mais. Talvez cada um de nós tenha que escolher que exista valor, se tal é possível, para o outro. Se alguém optar pela não existência de valor isso não destrói ou enfraquece a nossa relação com o valor – nós é que optámos pela sua existência.
Está claro que é melhor seguir a pista de ou procurar valores do que regularmos a nossa conduta, quer queiramos ou não, através de valores correctos com consequências punitivas; a primeira ligação com o valor é mais consistente em termos orgânicos e por isso mais valorável do que a segunda, a qual tem menor qualidade valorável. Pode, no entanto, alguém que opta pela existência de valor impor de forma legítima um castigo, no sentido de estabelecer a relação com o valor, sobre alguém que não faz a mesma escolha? A escolha da existência de valor também implica, se essa for a natureza do valor, que se veja esta relação punitiva como valorável.»

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Quando administramos a alguém uma substância inibidora de endorfinas juntamente com ou como um placebo, essa pessoa não acusa redução de dor. Porém, esta experiência está aberta à seguinte interpretação. Os placebos poderiam funcionar como um factor X que reduz as dores, diferente das endorfinas, no sentido em que o alívio de dor de uma pessoa ao receber um placebo é o produto de X e das endorfinas que o organismo produz naturalmente. O inibidor de endorfina faz desaparecer a última situação descrita, deixando o paciente apenas com X, e desse modo com um menor alívio da dor, embora o placebo não actue através das endorfinas.
** Talvez fosse útil considerar de que modo a nossa discussão sobre a escolha reflexiva da existência de valor pode esclarecer a noção obscura de “verdade subjectiva” proposta por Kierkegaard (Consultar a obra Concluding Unscientific Postscript, Princeton University Press, Princeton, 1944, Part II, cap. 2.). Contudo, ele manifesta o desejo de aplicar esse conceito à crença religiosa, à fé num Deus que tem poder de agir e produzir efeitos nas pessoas e no mundo e que o voltará a fazer. É difícil ver até que ponto o acto de alguém, até mesmo um acto reflexivo, poderia comportar esta ideia. Por outro lado, o valor é inerte; não possui qualquer poder de causalidade e pode apenas ser actuante através daqueles que têm dele uma percepção e o seguem. Assim é mais plausível entender a existência de valor como algo ligado à nossa escolha da existência de valor, do que entender a existência de um Deus cuja acção é visível ligada ao culto que fazemos de tal entidade. A perspectiva religiosa análoga à nossa sobre o valor teria que passar por uma teologia que promove a santidade do acto de adorar um ser passivo perfeito.

terça-feira, 29 de abril de 2008

T. S. Marshall, "Cidadania e Classe Social" (Parte IV)

«Mas reduzir as classes não era um ataque ao sistema. Pelo contrário, procurava, amiúde de forma bastante consciente, que o sistema de classes fosse menos vulnerável ao ataque aliviando as suas consequências menos defensáveis. Elevou o nível mais baixo da cave do edifício social, e pode ser que o tenha feito de uma forma mais higiénica do que antes. Mas continuou a ser uma cave, e os pisos altos não foram afectados, pelo que os benefícios recebidos pelos mais desfavorecidos não emanaram de um enriquecimento do estatuto da cidadania. Onde foram oficialmente dados pelo Estado, isso foi feito com medidas que, como tenho dito, ofereciam alternativas aos direitos de cidadania, em vez de os aumentar. Mas a maior parte da tarefa ficou nas mãos da caridade privada, e a ideia geral, embora não universal, das organizações caritativas era que aqueles que recebiam a sua ajuda não possuíam qualquer direito a reclamá-la.
Ainda assim é verdade que a cidadania, mesmo nas suas formas iniciais, era um princípio de igualdade, e que durante esse período se desenvolveu como instituição. Partindo do pressuposto que todos os homens eram livres e, em teoria, capazes de usufruir de direitos, enriqueceu-se o corpo dos direitos de que podiam desfrutar. Mas estes direitos não conflituaram com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, pelo contrário, necessários à manutenção dessa forma particular de desigualdade. A explicação reside no facto do núcleo da cidadania nesta fase estar composto por direitos civis e os direitos civis serem indispensáveis para a economia competitiva de mercado, por darem a cada pessoa, como parte do seu estatuto individual, a capacidade de empenhar-se como unidade independente na luta económica o que tornava possível negar-lhe protecção social com base no facto de estar equipada com os meios necessários para se proteger a si própria. […]
[…] [E]sse estatuto era claramente uma ajuda, não uma ameaça, para o capitalismo e a economia de livre mercado, porque estava dominado pelos direitos civis, que conferiam a capacidade legal par lutar pelas coisas que queriam possuir, mas que não garantiam a posse de qualquer delas. Um direito de propriedade não é um direito a possuir uma propriedade, mas um direito a adquiri-la quando for possível, e a protegê-la quando se possuir. […] De igual modo, o direito à liberdade de expressão carece de substância quando, por falta de educação, nada se pode dizer que valha a pena ou quando não se tem os meios necessários para se fazer ouvir. É claro que estas desigualdades não se devem a um defeito dos direitos civis, mas a uma falta de direitos sociais, e, em meados do século XIX, estes ainda não estavam desenvolvidos. […]
Também teve um efeito integrador ou, pelo menos, foi um elemento importante do processo de integração. […] [A]s sociedades pré-feudais estavam vinculadas por sentimentos e a pertença a elas baseava-se numa ficção, referia-se ao parentesco ou à ilusão de uma descendência comum. A cidadania requer um vínculo de união distinto, um sentimento de pertença a uma comunidade baseada na lealdade para com uma civilização que se percebe como património comum. É uma lealdade de homens livres, dotados de direitos e protegidos por um direito comum. O seu desenvolvimento foi estimulado por uma luta para ganhar esses direitos desfrutá-los uma vez obtidos, como se verifica claramente no século XVIII, que assistiu não só ao nascimento dos direitos civis modernos, mas também à consciência nacional moderna. As classes altas conceberam os instrumentos da democracia moderna que conhecemos, e logo os se transmitiram, passo a passo, às mais baixas: ao jornalismo político para as elites intelectuais seguiu-se o jornalismo para todos aqueles que sabiam ler, as reuniões, as campanhas de propaganda e o associativismo para a defesa de causas públicas. Nem as medidas repressivas nem os impostos puderam deter essa corrente, e com ela chegou um nacionalismo patriótico que expressava a unidade subjacente a essas explosões. A profundidade e a extensão do nacionalismo são difíceis de avaliar, mas não há dúvida quanto ao vigor da sua manifestação externa. […]
Essa consciência nacional em desenvolvimento, esse despertar da opinião pública, e esses primeiros sentimentos de pertença a uma comunidade e a um património comum não produziram efeitos materiais na estrutura de classes e na desigualdade social pela razão simples e evidente de que, até aos finais do século XX, a massa dos operários não possui poder político efectivo. Naquela época o sufrágio havia sido consideravelmente ampliado, mas os que acabavam de receber o direito ao voto ainda não haviam aprendido a usá-lo. Os direitos políticos de cidadania, ao contrário dos civis, representavam uma ameaça potencial para o sistema capitalista, embora fosse provável que aqueles que os estendiam cautelosamente até abaixo na escala social não compreendessem o tamanho do perigo. Não teria sido lógico esperar a previsão das inúmeras mudanças que derivariam do emprego pacífico do poder político sem necessidade de uma revolução violenta e sanguinária. A sociedade planificada e o Estado de bem-estar ainda não se aproximavam no horizonte nem estavam na mente dos políticos. A solidez dos fundamentos da economia de mercado e o sistema contra-factual parecia capaz de resistir a qualquer ataque. De facto, de acordo com certos indícios poderia esperar-se que as classes trabalhadoras, uma vez educadas, aceitassem os princípios básicos do sistema e estivessem satisfeitas por confiar a sua protecção e o seu progresso aos direitos civis de cidadania, que não pareciam perigosos para o capitalismo competitivo. Esta forma de ver as coisas foi estimulada pelo facto de que um dos principais feitos do poder político nos finais do século XIX ter sido o reconhecimento do direito à negociação colectiva, o que significava que o progresso social alcançava-se através da ampliação dos direitos civis, e não da criação de direitos sociais, quer dizer, através da utilização do contrato no mercado aberto, e não da fixação de um salário mínimo e da segurança social.
[…] Para os operários, estes direitos civis converteram-se num meio de elevar o seu estatuto económico e social, quer dizer, de estabelecer a aspiração de que eles, enquanto cidadãos, desfrutavam de certos direitos sociais. Mas os direitos sociais estabeleceram-se através do exercício do direito político, porque aqueles implicavam um direito absoluto a um certo nível de civilidade que dependia apenas do cumprimento dos deveres gerais de cidadania. O seu conteúdo não depende do valor económico do reclamante individual; portanto, há uma diferença significativa entre uma negociação colectiva genuína, através da qual as forças no mercado livre procuram o equilíbrio, e o emprego de direitos civis colectivos para apresentar reclamações básicas relativas à justiça social. Assim, a aceitação da negociação colectiva não foi um mera ampliação natural dos direitos civis, porque representou a transferência de um importante processo a partir da esfera política da cidadania para a sua esfera civil. Mas “transferência” é, talvez, um termo equívoco porque quando isto ocorria os trabalhadores não possuíam nem haviam aprendido a utilizar o direito político do sufrágio. Desde então obtiveram-no e usam-no de forma plena. Assim, o sindicalismo criou um sistema secundário de cidadania industrial paralelo e complementar ao sistema de cidadania política.»

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte II)

«1. Estados, Nações e Culturas nas Democracias Liberais
Alguns teóricos mantêm que os governos modernos podem e devem evitar apoiar qualquer cultura societária ou identidade etnocultural concreta. De facto, alguns mantêm que é precisamente isto que distingue as “nações cívicas” liberais das “nações étnicas” anti-liberais. As nações étnicas consideram um dos seus objectivos mais importantes a reprodução de uma cultura e de uma identidade etnonacional concreta. As nações cívicas, pelo contrário, são neutras relativamente às identidades etnoculturais dos seus cidadãos e definem a pertença nacional meramente em termos de adesão a certos princípios de democracia e justiça. Segundo esta perspectiva, as nações cívicas tratam a cultura da mesma forma que a religião, quer dizer, como algo que as pessoas são livres de cultivar na sua vida privada, mas que não é assunto de Estado. Da mesma forma que o liberalismo exclui a proclamação de uma religião oficial, também não pode haver uma cultura oficial que goze de um estatuto privilegiado com relação a outras lealdades culturais possíveis.
Michael Walzer, por exemplo, afirma que o liberalismo implica “um claro divórcio entre o Estado e a etnicidade”. O estado liberal ergue-se sobre os diversos grupos étnicos e nacionais do país “negando-se a apoiar os seus estilos de vida ou a assumir um interesse activo na sua reprodução social”. No seu lugar, o Estado “é neutro relativamente à língua, à história, à literatura e ao calendário” desses grupos. O exemplo mais claro de nação cívica é os Estados Unidos, cuja neutralidade etnocultural se reflecte no facto de não existir uma língua oficial constitucionalmente reconhecida
[1]. Mas isto é enganador. O certo é que o governo americano promove de forma activa uma língua e uma cultura comuns. Assim, é um requisito legal que as crianças aprendam inglês e história americana nas escolas; constitui um requisito para os imigrantes (até à idade de cinquenta anos) aprender inglês e história americana a fim de adquirir a cidadania estado-unidense o domínio do inglês é um requisito de facto para todos os candidatos a um emprego na administração pública; os trâmites judiciais e outras actividades governamentais desenvolvem-se exclusivamente em inglês; por fim, a legislação produzida, bem como os formulários burocráticos, estão habitualmente disponíveis apenas em inglês. Todos os âmbitos do governo americano (federal, estatal e municipal) têm insistido na existência de um interesse governamental legítimo em apoiar uma língua comum. O Supremo Tribunal tem apoiado repetidamente essa declaração apoiando leis que tornam obrigatório o ensino e o uso do inglês nas escolas e na função pública. De facto, como Gerald Johnson salientou, “uma das pequenas ironias da história é que nenhum os impérios poliglotas do velho mundo se atreveu a impor tão cruelmente uma única língua à sua população como o fez a república liberal com a sua ‘dedicação ao tema de que todos os homens foram criados iguais’”[2].
Em resumo, os Estados Unidos têm promovido deliberadamente a integração naquilo que denomino de “cultura societária” baseada na língua inglesa. Chamei-as de “culturas societárias” para sublinhar que não só implicam recordações ou valores partilhados, como também instituições e práticas sociais comuns. Ronald Dworkin afirmou que os membros de uma cultura possuem “um vocabulário misto de tradição e convenção”
[3], mas isto não nos oferece uma imagem abstracta ou etérea das culturas. No caso de uma cultura societária, esse vocabulário comum é o vocabulário do quotidiano da vida social integrado em praticas que incluem a maior parte das áreas da actividade humana. No mundo moderno, a integração de uma cultura na vida social significa que esta deve integrar-se nas instituições, quer dizer, nas escolas, nos meios de comunicação, no direito, na economia, no governo, etc.
Uma cultura societária é, por conseguinte, uma cultura territorialmente concentrada com base numa língua comum usada numa ampla gama de instituições sociais, tanto na vida pública como na privada. A participação nesse tipo de cultura proporciona o acesso a formas de vida significativas através de toda uma série de actividades humanas, incluindo a vida social, educativa, religiosa e económica e o tempo de lazer, tanto na esfera privada como na pública. O governo americano tem apoiado deliberadamente a integração numa cultura societária deste tipo, quer dizer, tem estimulado os cidadãos para conceber as suas oportunidades vitais como se estivessem vinculadas à participação em instituições societárias comuns que operam em inglês. Como discuto mais adiante, isto fez parte de um projecto de “construção nacional” com o qual todas as democracias ocidentais se comprometeram. Contrariamente ao que Walzer afirmou, o governo americano não foi “neutro” relativamente à língua e à cultura. Também não poderia. A ideia de que o governo americano podia ter sido neutro com relação os grupos etnoculturais é obviamente falsa. A política governamental teve necessariamente que determinar que os americanos se integrassem numa cultura societária inglesa, alemã ou espanhola.
Um dos factores determinantes da sobrevivência de uma cultura é se a sua língua é uma língua governamental, quer dizer, se a sua língua se usa nas escolas públicas, nos tribunais, nos órgãos legislativos, nas agências de política social, nos serviços sanitários, etc. Quando o governo decide a língua do sistema público de educação está a proporcionar o que talvez seja a principal forma de apoio que precisam as culturas societárias, já que garante a transmissão para as gerações futuras tanto da língua como das tradições e convenções que lhe estão associadas. Pelo contrário, é difícil que as línguas sobrevivam nas sociedades modernas industrializadas a menos que tenham um uso público. Dada a extensão da educação homologada, a existência de alfabetização para o trabalho e a interacção generalizada com as agências governamentais, qualquer língua que não seja pública se tornará tão marginal que provavelmente só sobreviverá no seio de uma pequena elite ou de forma ritualizada, não como uma língua viva e no desenvolvimento que subjaza a uma cultura florescente. As decisões governamentais sobre a língua nas escolas e nos serviços públicos são de facto decisões sobre as culturas societárias que poderão existir num país. Nos Estados Unidos tomou-se deliberadamente a decisão de apoiar apenas uma cultura societária anglófona.
As decisões relativas à imigração e à naturalização também afectam a viabilidade das culturas societárias. A imigração pode fortalecer uma cultura na medida em que se regulem os fluxos e se incentive (ou exija) que os imigrantes aprendam a língua e a história nacionais. Mas se os imigrantes no seu estado multinacional se integram na cultura maioritária, as minorias nacionais ver-se-ão progressivamente superadas em número e incapacitadas para a vida pública. Além de que os estados incentivam frequentemente os imigrantes (ou os migrantes de outras partes do país) a fixarem-se em territórios tradicionalmente ocupados por minorias nacionais, reduzindo-as a uma minoria até no âmbito do seu próprio território histórico. Por exemplo, consideremos o caso americano. Quando o sudoeste foi incorporado no Estados Unidos na Guerra com o México em 1848 havia nessa zona muito poucos anglófonos. O número de mexicanos (“chicanos”) e de tribos índias que residiam no território durante séculos era muito superior. Se os chicanos tivessem podido controlar a imigração na região, provavelmente teriam adoptado uma política que incentivasse ou obrigasse os imigrantes a integrarem-se na sua cultura societária, preservando assim o seu estatuto dominante na região (por exemplo, teriam podido ir buscar imigrantes ao México e não à Europa). Se tivesse sido esse o caso, o sudoeste actual seria como o Quebec ou a Catalunha, uma região dominada por uma minoria nacional linguisticamente distinta. É claro que o governo federal americano tinha o desejo contrário. O seu objectivo era estabelecer o domínio da cultura societária anglófona por todo o território. Consequentemente, favoreceu a imigração massiva para a região e exigiu aos colonos e imigrantes a aprendizagem do inglês. Podemos discutir os méritos desta decisão, mas o importante é que tinha de tomar-se uma decisão deliberada, num sentido ou noutro, sobre a(s) cultura(s) societária(s) que devia(m) dominar a região. Tinha que tomar-se uma decisão sobre quem seria aceite como imigrante, sobre quantos imigrantes seriam admitidos na zona e sobre a língua que deveriam aprender, isto é, decisões que tinham uma profunda repercussão para a viabilidade das diversas culturas societárias.
Poderiam multiplicar-se os exemplos de decisões político-administrativas que implícita ou explicitamente apoiam determinados grupos etnoculturais. Por exemplo, as decisões sobre as celebrações públicas e sobre o currículo escolar reflectem habitualmente e ajudam a perpetuar uma determinada cultura nacional. De igual modo, os limites das subunidades políticas podem desenhar-se de tal maneira que fortaleçam as minorias nacionais criando unidades regionais em que constituam uma maioria; também podem desenhar-se de forma que debilitem as minorias, garantindo que os grupos dominantes formem uma maioria em todas as subunidades. Uma vez mais, podemos debater os méritos das diversas decisões sobre as fronteiras, mas não existe uma forma “neutra” que evite ter que decidir se se permite que um grupo etnocultural constitua uma maioria no seio de uma jurisdição particular
[4].
Isto mostra-nos que a analogia entre religião e cultura é errada. Um estado pode não ter uma igreja oficial, mas o Estado não pode evitar estabelecer, pelo menos parcialmente, uma cultura quando decide sobre a língua que se há-de usar na administração, a língua e a história que as crianças devem aprender na escola, quem serão admitidos como imigrantes e que língua e história deverão aprender para se converterem em cidadãos, se as subunidades se desenharão com o fim de criar distritos controlados por minorias nacionais, etc. Estas decisões políticas determinam directamente a viabilidade das culturas societárias. Por conseguinte, a ideia de que os estados liberais ou as “nações cívicas” são neutras relativamente às identidades etnoculturais é um mito. O que distingue as nações cívicas das étnicas? A diferença fundamental diz respeito aos termos de admissão à nação. As nações “étnicas”, como a Alemanha, definem a pertença em termos de descendência comum, de forma que as pessoas de um grupo étnico ou racial distinto (por exemplo, os trabalhadores turcos na Alemanha) não podem adquirir cidadania, independentemente do tempo de residência no país. As nações “cívicas”, como os Estados Unidos, estão em princípio abertas a qualquer indivíduo que viva no território desde que aprenda a língua e a história da sociedade. Estes estados definem a pertença em termos de participação numa cultura societária comum, aberta a todos, mais do que por razões étnicas. Por conseguinte, o nacionalismo étnico é exclusivo, enquanto que o nacionalismo cívico é inclusivo. Esta é uma diferença crucial, mas ambos supõem a politização dos grupos etnoculturais. Ambos constroem a pertença nacional enquanto participação na cultura societária comum e ambos executam as políticas públicas para manter e perpetuar essa cultura societária. A execução da política pública para promover a cultura ou culturas societárias particulares é um traço inevitável de todo o estado moderno.»


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[1] Michael Walzer, “Comment”, in Gutmann, Amy (ed.) Multiculturalism and the Politics of Recognition, Princeton, Princeton University Press, 1992, pp. 100-1. Cfr também M. Walzer, What it Means to be an American, New York, Marsilio, 1992, p. 9; William Pfaff, The Wrath of nations: Civilization and the Furies of Nationalism, New York, Simon and Shuster, 1993, p. 162; Michel Ignatieff, Blood and Belonging: Journeys into the New Nationalism, New York, Farras, Straus&Giroux, 1993.
[2] Gerald Johnson, Our English Heritage, Westport, Greenwood Press, 1973, p. 119.
[3] Ronald Dworkin, A Matter of Principle, London, Harvard University Press, 1985, p. 231.
[4] Para uma discussão detalhada deste ponto, veja-se o meu Multicultural Citizenship: a Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, OUP, 1995, cap. 5.

domingo, 27 de abril de 2008

T. S. Marshall, "Cidadania e Classe Social" (Parte III)

«3. A influência prematura da cidadania na classe social

Até aqui o meu objectivo foi esboçar as grandes linhas do desenvolvimento da cidadania na Inglaterra até ao final do século XIX. Com este propósito, dividi a cidadania em três elementos: civil, político e social. Procurei demonstrar que os direitos civis que apareceram em primeiro lugar foram estabelecidos quase na sua forma moderna antes da aprovação em 1832 do primeiro Acto Reformador. Os direitos políticos vieram logo a seguir, e a sua extensão foi um dos aspectos mais notórios do século XIX, embora o princípio da cidadania política universal só tivesse sido reconhecido em 1918. Os direitos sociais, por outro lado, diminuíram quase até desaparecerem no século XVIII e nos princípios do século XIX, mas, com o desenvolvimento da educação elementar pública, começou o seu ressurgimento, e só no início do século XX se tornaram comparáveis aos outros elementos da cidadania.
Até agora nada disse da classe social; por isso devo explicar de seguida que a classe social ocupa um lugar secundário na minha argumentação. […] O tempo disponível não me permitiria fazer justiça a este assunto. Interessei-me sobretudo pela cidadania, particularmente pela sua influência na desigualdade social. Analisarei a natureza da classe social apenas quando isso for relevante para os meus objectivos. Se me demorei na narração dos factos do final do século XIX isso deve-se à minha convicção de que o impacto da cidadania na desigualdade social depois dessa data foi fundamentalmente diferente do que havia sido até então, como provavelmente todos reconhecerão. E é precisamente a exacta natureza da diferença o que merece ser investigado. Assim, antes de prosseguir, procurarei retirar algumas conclusões gerais sobre o impacto da cidadania na desigualdade social durante o primeiro destes dois períodos.
A cidadania é aquele estatuto que se concede aos membros de pleno direito de uma comunidade. Os seus beneficiários são iguais no que respeita a direitos e obrigações. Embora não exista um princípio universal que determine quais são os direitos e obrigações, nas sociedades em que a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam a imagem de uma cidadania ideal em função da qual o êxito pode ser medido e para a qual se dirigem as aspirações. As conquistas que se produzem na direcção assim traçada proporcionam uma medida mais acabada da igualdade, um enriquecimento do conteúdo desse estatuto e um aumento do número daqueles que dele desfrutam. Pelo contrário, a classe social é um sistema de desigualdade que, tal como a cidadania, pode basear-se num corpo de ideais, crenças e valores. Parece, pois, razoável que o impacto da cidadania na classe social possa manifestar-se sob a forma de um conflito entre princípios opostos. E se estou certo em afirmar que a cidadania se desenvolveu como instituição em Inglaterra mais ou menos a partir da segunda metade do século XVII, é evidente que a sua evolução coincide com o auge do capitalismo, que não é um sistema de igualdade, mas de desigualdade. Impõe-se por isso uma explicação mais detalhada. Como é possível que estes princípios opostos possam crescer e progredir num mesmo território? O que permitiu que se reconciliassem e chegassem a ser, pelo menos durante algum tempo, aliados em vez de antagonistas? A pergunta é pertinente, porque sabemos que durante o século XX a cidadania e o sistema de classes do capitalismo estiveram em guerra.
Neste ponto torna-se necessário um escrutínio mais próximo da classe social. Embora não pretenda examinar as suas muitas e variadas formas, há uma clara distinção entre dois tipos de classe que é particularmente relevante para a minha argumentação. O primeiro baseia-se numa hierarquia de estatuto, e a diferença entre ambos expressa-se nos direitos legais e em certos costumes estabelecidos que possuem um carácter vinculativo de lei. Na sua forma extrema, um sistema deste tipo divide a sociedade numa série de comunidades humanas hereditárias: patrícios, plebeus, servos, escravos, etc. A classe é, agora e sempre, uma instituição por direito próprio, e a estrutura no seu conjunto tem o carácter de um projecto, uma vez que está dotada de sentido e finalidade, e se aceita como uma ordem natural. A civilização expressa, em cada nível, esse sentido e essa ordem, e as diferenças ente os níveis sociais não são diferenças quanto ao nível de vida, porque não existe um padrão comum para as medir. Também não existem direitos – pelo menos com algum significado – que todos partilhem
[1]. O impacto da cidadania num sistema semelhante acabaria por ser profundamente perturbador e inclusivamente destrutivo. Os direitos de que se investiu o estatuto geral de cidadania extraíram-se do sistema do estatuto hierárquico de classe social, privando-o daquilo que nele era substantivo. A igualdade que o conceito de cidadania implica, embora limitada no seu conteúdo, socavou a desigualdade do sistema de classes que era, em princípio, total. A justiça nacional e o direito comum para todos tinha que debilitar e, possivelmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal, como direito universal inato, tinha que acabar com a servidão. Não é necessária muita subtileza para compreender que a cidadania e o feudalismo medieval são incompatíveis.
O segundo tipo de classe social não é tanto uma instituição por direito próprio, mas um produto secundário de outras instituições, embora possamos continuar a chamar “estatuto social” como forma de ampliar o termo para além do seu estrito sentido técnico. As diferenças de classe nem se estabelecem nem se definem mediante as leis ou os costumes sociais (no sentido medieval da expressão), mas resultam da interacção de vários factores relacionados com as instituições de propriedade, de educação e de estrutura da economia nacional. As culturas de classe reduzem-se ao mínimo; por isso podemos calcular, embora admitindo que de forma pouco satisfatória, os distintos níveis de bem-estar económico relativamente a um modelo comum de vida. As classes operárias, em vez de herdarem uma cultura distintiva, por mais simples que fosse, alimentam-se da imitação barata e grosseira de uma civilização que se tornou nacional.
Mas ainda assim a classe funciona. A desigualdade social considera-se necessária e estrutura a distribuição do poder. Todavia, não existe um modelo absoluto de desigualdade que atribua a priori um valor apropriado a cada nível social. Deste modo, a desigualdade, embora necessária, pode chegar a ser excessiva. Como salientou Patrick Colquhoun numa passagem bastante citada: “sem uma grande dose de pobreza não haveria ricos, porque os ricos são os descendentes do trabalho, ainda que o trabalho só possa proceder de um estado de pobreza […] Portanto, a pobreza é um ingrediente necessário e indispensável da sociedade, sem a qual as nações e as comunidades não teriam alcançado um estado de civilização”
[2]. Mas Colquhoun, embora aceite a pobreza, deplora a “indigência” ou, deveríamos dizer, a miséria. Por “pobreza” entende a situação daquele que, por falta de recursos económicos, tem de trabalhar duramente para viver. Por “indigência” entende a situação de um família que carece do mínimo necessário para viver decentemente. O sistema de desigualdade que permitia a existência da primeira como força impulsionadora produzia inevitavelmente uma certa dose da segunda. Colquhoun, como outros humanistas, lamentavam-na; por isso procuravam os meios para aliviar o sofrimento que provocava, mas nunca questionaram a justiça do sistema de desigualdade no seu conjunto. Em defesa dessa injustiça poderíamos alegar que, embora a pobreza pudesse ser necessária, não era necessário que uma família particular permanecesse pobre, ou pelo menos tão pobre quanto o era. Quanto mais se considera a riqueza como uma prova contundente do mérito, mais se tende a julgar a pobreza como prova do fracasso, mas a penalização para o fracasso pode parecer maior do que o delito. Nestas circunstâncias, é natural que os aspectos mais desagradáveis da desigualdade se tratem, irresponsavelmente, como uma doença, como um fumo negro expelido sem qualquer controlo pelas chaminés das nossas fábricas. Com o tempo, quando nasce a consciência social, a redução das classes, como a do fumo, converte-se numa meta que deve perseguir-se, sempre que tal seja compatível com a eficácia contínua da máquina social.»
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[1] Veja-se a admirável caracterização de R. H. Tawney em Equality, pp. 121-2.
[2] A Treatise on Indigence (1806), pp. 7-8.

David B. Hershenov, “Um Argumento a favor da Clonagem Humana Limitada” (Parte II)

«Espero que o leitor seja complacente com a infelicidade das pessoas envolvidas nos quatro tipos de casos considerados. O que têm estes casos em comum e o que falta aos anteriores casos repugnantes? Os quatro casos positivos reproduzem todos a procriação normal. Quer dizer, uma nova criança é concebida deliberadamente e trazida a este mundo em virtude de uma decisão de dois parceiros voluntários (os pais), recebendo a criança metade do ADN de ambos. Tanto a procriação sexual normal como a forma de clonagem advogada respeitam este critério. Os quatro tipos de clonagem desejável diferem da procriação sexual normal apenas porque os pais decidem voltar a usar o ADN que anteriormente decidiram fundir para criar a primeira criança. Mas nenhum dos casos repugnantes envolve uma decisão de clonagem feita pelos pais do clone ou, se é que eles têm algum voto na matéria, a prática é desagradável para os adultos que, não sendo os pais genéticos do ser clonado, acabam por se apossar do clone, talvez porque procurassem o material genético que deu origem ao clone. O que também distingue as duas categorias de clonagem é que a forma preferencial envolve infertilidade ou, no mínimo, a incapacidade de conceber bebés saudáveis. Somos complacentes com aqueles que querem fazer o que a grande maioria dos outros casais faz: combinar o seu material genético com a pessoa amada para dar origem a uma nova vida.
Portanto, a nossa análise breve sugere algumas condições necessárias para a clonagem: (1) não se deve permitir que as pessoas se clonem a si mesmas; (2) não se deve permitir que as pessoas se apoderem do “produto” do processo de clonagem a não ser que sejam os pais genéticos do clone; (3) os pais genéticos do clone se confrontarem com a incapacidade ou a improbabilidade deles próprios conceberem uma criança; (4) e ambos os pais genéticos devem poder discutir livremente a possibilidade de iniciar um processo de clonagem. Combinando estas condições necessárias, podemos formular o princípio prometido da forma seguinte: Um clone pode ser criado apenas por um par de pessoas que, não sendo de outra maneira capazes de conceber em conjunto uma descendência saudável, decidem livremente conceber e educar uma criança que receberá metade do seu material genético de ambos.
Este princípio faria do par que iniciasse a clonagem os pais do clone resultante e não os seus irmãos mais velhos. Uma tal forma de clonagem “pró-familia” e “pró-pais”, que alivia a infelicidade da infertilidade, será provavelmente a única forma de clonagem desejável dado o actual ambiente político. Seria este princípio que nos permitiria construir uma barreira para o declive ardiloso da clonagem. Outros poderão querer evitar o declive ardiloso por nunca se aproximarem do topo da montanha, mas eu penso que eles fazem isso porque não possuem um argumento contra os casos de clonagem que recebem a nossa simpatia. O seu único argumento contra o alívio que a clonagem proporciona nestes casos é o de que permitir a clonagem aumenta a probabilidade de ocorrência dos casos repulsivos que consideramos no início. Mas eu acredito que é preferível possuir uma linha de princípios bem delineada onde fundar as nossas políticas ainda que isso nos conduza de alguma forma ao assustador declive – desde que evitemos aquelas áreas que são inerentemente erradas, quer dizer, moralmente erradas mesmo que não se vá mais além. O princípio recomendado faz justamente isso. Todos os casos desagradáveis falham no facto de não envolverem os pais genéticos do clone na iniciação livre do processo de clonagem e permitirem a posse do clone resultante nas situações em que não está disponível outra forma segura de conceber uma criança mais saudável. De facto, muitos dos casos mencionados nem sequer envolvem o consentimento dos pais do clone uma vez que a decisão é feita pelo seu filho para se clonar a si próprio e tomar o controlo do(s) irmão(s) resultante(s). Não só podem as pessoas tornar-se pais sem o terem escolhido, como podem nem sequer ter consciência de se terem tornado pais.

II
Vimos que propriedade falta aos casos desagradáveis. Mas isso não significa que todos os atributos desagradáveis dos casos repugnantes sejam partilhados pelos nossos três tipos de cenários mais atraentes. Felizmente, não é este o caso – ou, pelo menos, as características desagradáveis em questão não são partilhadas na mesma medida pelos tipos de casos invocados. Desta forma, seremos capazes de desarmar os opositores da clonagem por causa de podermos defender que as suas objecções gerais não se aplicam aos casos de clonagem apoiados neste ensaio, ou então que se aplicam mas num grau bastante mais inferior.
Muitos dos opositores da clonagem, como Kass, sentem repulsa pela perspectiva dos filhos virem a ser criados e educados pelos irmãos em vez dos pais genéticos. Referimos que os receios do bioeticista James Nelson que imagina clones à procura dos seus pais genéticos e a reclamarem uma relação pais-filho apesar do facto da origem da criança decorrer de actos dos irmãos e não de actos dos pais que provavelmente nem sequer desejavam mais filhos. Mas dadas as condições necessárias para a clonagem que apresentei, estas objecções não são contundentes. Os únicos clones permitidos seriam os de pais inférteis, ou mais exactamente, daqueles que não podem ter filhos saudáveis através da reprodução sexual. Assim, os papéis, as lealdades e as obrigações da família tradicional permanecem os mesmos.
Também não precisamos partilhar do medo de Kass relativamente à possibilidade da reprodução assexuada dar origem a um aumento do número de pais solteiros a criarem os seus próprios clones. Podemos evitar isto porque o princípio advogado estipula que apenas os pais genéticos do possível clone podem decidir clonar. Uma vez que não se deve permitir que as pessoas se clonem a si próprias, nenhuma criança seria criada por pais solteiros excepto no caso de uma morte súbita. Ao não permitir que uma pessoa decida por si clonar-se a si mesma, evita não só os casos desagradáveis de clonagem narcísica e arrogante analisados, como nos liberta da preocupação do clone vir a ser responsabilidade do irmão mais velho ao qual faltará a devoção para com o bem-estar da criança que os pais normalmente possuem.»


David B. Hershenov, “An Argument for Limited Human Cloning” in Boonin, David & Oddie, Graham (ed.) (2005) What’s wrong? Applied Ethicist and their Critics. New York: Oxford University Press, pp. 688-91 (Adaptado e traduzido por Vítor João Oliveira)

sábado, 26 de abril de 2008

Iris Marion Young, “Imparcialidade e o Cívico Público. Algumas implicações das críticas feministas para a teoria moral e política” (Parte II)

«1. A oposição entre razão e afectividade

A ética moderna define a imparcialidade como a marca característica da razão moral. Enquanto característica da razão, a imparcialidade significa algo diferente da atitude pragmática de ser justo, considerando as necessidades e desejos dos outros assim como os próprios. A imparcialidade refere-se ao ponto de vista da razão que fica fora de qualquer interesse ou desejo. Não ser parcial significa ser capaz de ver o todo, como todas as perspectivas e interesses particulares de uma dada situação se relacionam entre si de um modo que, por causa da sua parcialidade, cada perspectiva não pode ver por si mesma. Quem realiza um raciocínio moral imparcial situa-se deste modo fora e acima da situação sobre a qual se está a raciocinar, sem colocar nada em jogo, ou então supõe-se que adopta uma atitude relativamente a uma situação como se estivesse fora e acima dela. Para a filosofia contemporânea questionar o ideal de imparcialidade leva a questionar a própria possibilidade da teoria moral. Contudo, defenderei que o ideal de uma razão normativa situada num ponto que transcende todas as perspectivas tem tanto de ilusório como de opressivo.
Na teoria moral moderna tanto a tradição utilitarista como a deontológica acentuam a imparcialidade na definição de razão moral
[1]. Restringirei aqui a minha discussão à razão deontológica por dois motivos. Ao contrário da deontologia, o utilitarismo não supõe que exista uma razão especificamente normativa. O utilitarismo define a razão na ética do mesmo modo que em qualquer outra actividade: a determinação do modo mais eficiente de alcançar um fim; no caso da ética, a felicidade da maioria. O que a mim me interessa são os esforços modernos para definir uma razão especificamente normativa. Em segundo lugar, interessa-me examinar como o compromisso com a imparcialidade tem como resultado uma oposição entre razão e desejo, e que esta oposição é mais evidente na razão deontológica.
O ideal de uma razão normativa imparcial continua a ser afirmado pelos filósofos como “o ponto de vista moral”. Como um observador ideal que se situaria numa nave espacial noutro planeta
[2] os filósofos morais e políticos começaram a raciocinar a partir de um ponto de vista que pretendem imparcial. Este ponto de vista é geralmente um constructo contrafáctico, uma situação de raciocínio que erradica as pessoas vivas do seu verdadeiro contexto de tomada de decisões morais transportando-as para uma situação em que poderiam existir. Tal como argumenta Michael Sandel, o ideal de imparcialidade requer a construção de um eu abstraído do contexto de qualquer pessoa real: o eu deontológico não está comprometido com qualquer fim particular, nem tem história particular nem pertence a qualquer comunidade, nem tem corpo[3].
Por que requer a racionalidade normativa a construção de um eu fictício numa situação fictícia de raciocínio? Porque esta razão, do mesmo modo que a razão científica da qual se pretende distinguir a deontológica, está impelida pelo que Theodor Adorno denomina “a lógica da identidade”
[4]. Segundo esta lógica da identidade, a razão não significa simplesmente possuir razões, ou possuir uma explicação, ou reflectir inteligentemente e considerar uma situação. Para a lógica da identidade da razão é ratio, a redução de princípios dos objectos do pensamento a uma medida comum, as leis universais.
A lógica da identidade consiste numa urgência inexorável de pensar as coisas juntas, numa unidade, de formular uma representação do todo, uma totalidade. Este desejo é pelo menos tão velho como Parménides, e a lógica da identidade começa com a antiga noção filosófica dos universais. Através de uma noção de uma essência, o pensamento constitui uma unidade com os particulares concretos. Sem dúvida que na medida em que a diferença qualitativa define a essência, o programa puro de identificar o pensamento fica incompleto. Os particulares concretos constituem uma unidade sob a forma universal, mas as próprias formas não podem ser reduzidas à unidade.
O ego cartesiano fundador da filosofia moderna realiza o projecto totalizante. Este cogito expressa em si mesmo a ideia de identidade pura como a auto-presença reflexiva da consciência relativamente a si própria. Ao ter sido fundado neste ponto de subjectividade transcendental, o pensamento, mais audaz que nunca, tenta compreender todas as entidades numa unidade consigo mesmo e num sistema unificado com os demais.
Mas todas as conceptualizações transportam as impressões e o fluxo da experiência de uma ordem que unifica e compara. O que Adorno considera perigoso não é a força unificadora dos conceitos per se. A lógica da identidade vai mais além dessa tentativa de ordenar e descrever os particulares da experiência. Constrói sistemas totais que procuram submergir a alteridade das coisas na unidade do pensamento. O problema que representa a lógica da identidade é que através dela o pensamento procura tê-la controlado, eliminar qualquer incerteza e imprevisibilidade, idealizar o facto corpóreo da imersão sensual num mundo que ultrapassa o sujeito, eliminar a alteridade. A razão deontológica expressa esta lógica da identidade eliminando a alteridade pelo menos de duas formas: a irredutível especificidade das situações e a diferença entre os sujeitos morais.
A exigência de imparcialidade por parte da razão normativa implica uma exigência de universalidade. Quem raciocina imparcialmente trata todas as situações de acordo com as mesmas regras, e quanto mais regras se podem reduzir à unidade de uma regra ou princípio, mais garantidas estarão a imparcialidade e universalidade. Na moralidade kantiana, para comprovar a correcção de um juízo não é necessário que aquele que raciocina imparcialmente deva olhar de fora do pensamento, mas apenas que terá que procurar a consistência e universalidade de uma máxima. Se a razão conhece as regras morais que se aplicam universalmente à acção e à escolha, então não haverá qualquer razão para que na construção dos juízos morais entrem os próprios sentimentos, interesses e inclinações. Esta razão deontológica não pode eliminar a especificidade e variabilidade das situações concretas a que as regras se devem aplicar; não obstante, ao insistir na imparcialidade e na universalidade da razão moral, deixa de ser racionalmente capaz de entender e avaliar os contextos morais particulares na sua particularidade
[5].
O ideal de uma razão moral imparcial também procura eliminar a alteridade na forma do sujeito moral diferenciado. A razão imparcial deve julgar a partir de um ponto de vista que fique fora das perspectivas particulares das pessoas implicadas que se encontram em interacção, capaz de totalizar estas perspectivas num todo ou vontade geral. Este é o ponto de vista de um Deus transcendente e solitário
[6]. O sujeito imparcial não precisa reconhecer outros sujeitos cuja perspectiva deveria ser considerada e com quem podia desenvolver alguma discussão[7]. Deste modo, a pretensão de imparcialidade pode ter como resultado o autoritarismo. Ao dizer de alguém que é imparcial, recorre-se a autoridade para decidir sobre um tema, em vez daqueles cujos interesses e desejos são manifestos. A partir do ponto de vista imparcial, não é necessário consultar alguém, já que o ponto de vista imparcial já assume qualquer perspectiva possível[8].
No discurso moral moderno ser imparcial significa especialmente ser desapaixonado: que os sentimentos não afectem em nada os próprios juízos. A ideia de imparcialidade procura, pois, eliminar a alteridade num sentido diferente, no sentido da experiência sensual, emocional e do desejo que ligam ao concreto das coisas, que apreendo na sua relação particular comigo. Por que requererá a ideia de imparcialidade a separação entre razão moral e desejo, afectividade e relação corporalmente sensorial com as coisas, as pessoas e as situações? Porque a imparcialidade pode alcançar a sua unidade expulsando da razão o desejo, a afectividade e o corpo.
É típico da lógica da identidade gerar a dicotomia em vez da unidade. O movimento de subsumir os particulares numa categoria universal cria uma distinção entre o dentro e o fora. Dado que cada entidade ou situação particular guarda semelhanças ao mesmo tempo que diferenças relativamente a outras identidades e situações particulares, e dado que não são completamente idênticas nem absolutamente distintas, o prémio por as recolher dentro de uma categoria ou princípio implica necessariamente que sejam expulsas algumas das propriedades destas entidades ou situações. Dado que o envolvimento totalizante deixa ser um remanescente, o projecto de reduzir os particulares a uma unidade deve fracassar. Não satisfeita com a admissão da derrota no que à diferença diz respeito, a lógica da identidade mostra a diferença entre oposições normativas dicotómicas: essência-acidente, bom-mau, normal-desviante. Sem dúvida que as dicotomias não são simétricas, mas situam-se dentro de uma hierarquia: o primeiro termo designa a unidade positiva do interior, o segundo termo, que tem menos valor, designa o exterior que sobra
[9].
Para a razão deontológica o movimento de expulsão que a dicotomia gera produz-se deste modo. Como já havia discutido, chega-se ao constructo de um ponto de vista imparcial realizando uma abstracção da particularidade concreta da pessoa em situação. O que exige a abstracção da particularidade do ser corpóreo, das suas necessidades e inclinações e dos sentimentos que se vinculam à particularidade experimentada das coisas e dos eventos. A razão normativa define-se como imparcial, e a razão define a unidade do sujeito moral, tanto no sentido de conhecer os princípios universais da moralidade como no sentido do que têm em comum todos os sujeitos. Por esta razão opõem-se ao desejo e à afectividade na medida em que isto é o que diferencia e particulariza as pessoas. Na secção seguinte discutirei um movimento similar de expulsão das pessoas do cívico público com vista a manter a unidade deste.
Seguem-se muitos problemas de expulsão do desejo e do sentimento da razão moral. Como todos os sentimentos, inclinações, necessidades, desejos, são igualmente irracionais, todos eles são igualmente inferiores
[10]. Em contraste com isto, a filosofia moral pós-moderna procurava critérios que permitissem distinguir interesses bons de maus, entre sentimentos nobres e baixos. O importante na ética de Aristóteles, por exemplo, era precisamente distinguir entre bons e maus desejos, e cultivar os bons. Além disso, as instituições morais contemporâneas continuam a distinguir entre bons e maus sentimentos, desejos racionais e irracionais. Como defende Lawrence Blumm, a oposição que estabelece a razão deontológica entre dever moral e sentimento não reconhece o papel dos sentimentos de simpatia, compaixão e interesse no momento de dar razões e motivações para a acção moral[11]. A nossa experiência da vida moral ensina-nos, para além disso, que sem o impulso da privação ou da cólera, por exemplo, não se realizariam muitas escolhas morais.
Deste modo, como consequência da operação entre a razão e o desejo, as decisões morais que se fundamentam em considerações de simpatia, preocupação e valorização de necessidades diferenciadas são definidas como não racionais, não “objectivas”, meramente sentimentais. Então, na medida em que as mulheres exemplificam ou são identificadas com esses estilos de tomada de decisão moral, são excluídas da racionalidade moral
[12]. A racionalidade moral de qualquer grupo cujas experiências ou cujos estereótipos os associe ao desejo, a necessidade e a afectividade são para além do mais suspeitos.
Ao expulsar pura e simplesmente o desejo, a afectividade e a necessidade, a razão deontológica em última instância reprime-os e coloca a moralidade em oposição à felicidade. A função do dever é dominar a natureza interna, não conformá-la às melhores direcções. Como todos os desejos são igualmente suspeitos, não há qualquer forma de distinguir quais são os desejos bons e quais são os maus, quais ampliariam as capacidades e as relações das pessoas com as demais e quais atrofiariam a pessoa e fomentariam a violência. Ao ser excluído do entendimento, qualquer desejo, sentimento ou necessidade torna-se inconsciente, sem que por isso deixe de motivar a acção e a conduta. Por isso, a tarefa da razão é controlar e censurar o desejo.»

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[1] O utilitarismo de Bentham, por exemplo, supõe algo parecido com “um observador ideal” que vê e calcula a felicidade de cada indivíduo e pondera-a colocando-a em relação uma com as outras, calculando a soma geral da sua utilidade. O exemplo do calcular imparcial é como o do guardião do panóptico que Foucault considera expressar a razão normativa moderna. O observador moral eleva-se e é capaz de ver todas as pessoas individuais nas suas interacções mútuas, ao mesmo tempo que fica fora da observação destes. Veja-se Foucault, Vigiar e Punir
[2] Bruce Ackerman, Social Justice in the Liberal State, New Haven, Yale University Press, 1980.
[3] Michael J. Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge, CUP, 1982; Cfr. Benhabib, “The Generalized and the Concrete Other”, in Benhabib, Seyla (1992), Situating the Self: Gender, Community, and Postmodernism in Contemporary Ethics, New York, Routledge, pp. 148-77; veja-se também Th. Adorno, Negative Dialectics, New York, Continuum, 1973, pp. 238-9.
[4] Th. Adorno, “Introduction”, in Adorno, Negative Dialectics.
[5] Roberto Unger identifica o problema de aplicar os universais aos particulares na teoria normativa moderna. Veja-se Knowledge and Politics, New York, The Free Press, 1974, pp. 133-44.
[6] Thomas A. Spragens, Jr, The Irony of Liberal Reason, Chicago, University of Chicago Press, 1981, p. 109.
[7] A posição original de Rawls dirigia-se à superação deste monologismo da deontologia kantiana. Dado que por definição na posição original cada qual raciocinam a partir de uma perspectiva abstracta, não obstante, de todas as particularidades da história, o lugar e a situação, a posição original é monológica no mesmo sentido que a razão kantiana. Defendi isto no meu ensaio “Toward a Critical Theory of Justice”, Social Theory and Practice, 7, 3, Outono 1981, pp. 279-301; veja-se também Sandel, Liberalism, pp. 59-64, e Benhabib, “The Generalized and the Concrete Other”, in Benhabib, Seyla (1992), Situating the Self: Gender, Community, and Postmodernism in Contemporary Ethics, New York, Routledge, pp. 148-77.
[8] Adorno, Negative Dialectics, pp. 242 e 295.
[9] Para esta descrição baseio-me numa leitura de J. Derrida, Of Grammatology, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1974, para além de Negative Dailectics, de Adorno. Diversos escritores chamaram a atenção para as semelhanças entre Derrida e Adorno a este respeito. Veja-se F. Dallmayr, Twilight of Subjectivity: Contributions to a Post-Structuralist Theory of Politics, Amherst, University of Massachussets Press, 1981, pp. 107-14 e 127-36; e M. Ryan, Marxism and Domination, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1982, pp. 73-81.
[10] Thomas A. Spragens, Jr, The Irony of Liberal Reason, pp. 250-56.
[11] Lawrence A. Blum, Friendship, Altruism and Morality, London, Routledge and Kegan Paul, 1980.
[12] Esta é uma das objecções à afirmação de que exista uma “voz diferente” que tenha sido suprimida; veja-se Benhabib, “The Generalized and the Concrete Other”; Veja-se também Lawrence Blum, “Kant’s and Hegel’s Moral Rationalism: A Feminist Perspective”, Canadian Journal of Philospohy, 12, Junho 1982, pp. 287-302.

David B. Hershenov, “Um Argumento a favor da Clonagem Humana Limitada” (Parte I)

«Acredito ser possível apresentar um princípio bastante útil para distinguir casos de clonagem legítimos de ilegítimos. Depois de analisar diferentes tipos de casos, apresentarei este princípio como orientador das leis e políticas institucionais.
A minha esperança é que esta orientação venha a ser recebida pela maioria dos oponentes da clonagem como um compromisso bem-vindo porque regulará os casos mais repugnantes ao mesmo tempo que permitirá alguns mais apelativos. Não temos que aceitar a tese de Leon R. Kass segundo a qual “a única trincheira segura ao longo do declive ardiloso… é insistir na inviolável distinção entre clonagem animal e humana”.
[…] Se uma pessoa se clonar a si própria, o clone será efectivamente um gémeo idêntico mais novo. Muitos dos opositores da clonagem sentem repulsa pela possibilidade dos filhos virem a ser criados e educados por irmãos e não pelos verdadeiros pais genéticos. O bioeticista James Nelson imagina os clones à procura dos seus pais genéticos e a reclamarem uma relação pai-filho apesar da educação da criança ser mais o resultado da acção dos seus irmãos mais velhos e não dos seus pais que até poderiam nem sequer ter mais filhos. Será bastante injusto colocar os pais genéticos nesta situação. E seria horrível para a criança clonada procurar os pais e não ser por eles bem-vinda.
Ao longo de linhas similares, Leon R. Kass vai referindo como a clonagem perturbará os papéis e os deveres tradicionais:

“No caso da auto-clonagem, a “descendência” é, antes do mais, um gémeo de si próprio; pelo que o resultado pavoroso do incesto – ser pai de um dos irmãos – é aqui deliberado, embora sem o acto do coito. Mais ainda, todas as outras relações serão confundidas. O que significará pai, avô, tia, primo e irmã? Quem transportará esses laços e obrigações? Que identidade social manterá com um dos lados – do “pai” ou da “mãe” – necessariamente excluídos? Não é resposta dizer que a nossa sociedade, com os seus elevados índices de divórcios, segundos casamentos, adopções, filhos fora do casamento, e tudo o mais, já confunde a linhagem, as relações de parentesco e as responsabilidades para com os filhos (e outros), a não ser que queríamos discutir que isto é, do ponto de vista dos filhos, uma estado de coisas preferível.”

Kass também expressa o medo que a reprodução assexuada dê lugar a um aumento do número de pais solteiros a educar os seus clones. Kass queixa-se que:

“no caso da clonagem só há um “progenitor”. A situação habitual e triste das crianças com “um só pai” é aqui deliberadamente planeada e de forma vingativa… reprodução assexuada, que produz um filho de um só pai, representa um corte radical com a forma humana natural.”

Há também a preocupação com a possibilidade do clone passar a ser responsabilidade de um irmão mais velho ao qual faltará a devoção para com o bem-estar da criança que habitualmente os pais têm. Em virtude daqueles que se clonarem a si próprios virem a ser geneticamente idênticos aos seus irmãos mais novos, será um erro pensar que isto significará que eles se preocuparão com os clones da mesma forma que se preocupam com os seus filhos. Os irmãos não foram historicamente moldados pela mesma pressão evolutiva dos seus pais, pelo que não possuem a preocupação e a afeição uns pelos outros que os seus pais inerentemente possuíam relativamente a eles.
Com um pouco de imaginação, o leitor pode acrescentar uma lista de cenários desagradáveis da clonagem. […] Mencionarei quatro tipos de cenários em que a clonagem é uma opção apelativa. A primeira, que considero a mais constringente do conjunto, envolve casais que se tornaram “inférteis enquanto casais” por causa da menopausa ou por alguma razão anormal, e que perdem o seu filho único – ou talvez todos os seus filhos. Não só é extremamente perturbador para os pais enterrar os seus filhos, como é doloroso assistir ao fim da linhagem da família. Imagino que o número de pais que perdem todos os seus filhos antes do nascimento de um neto não seja insignificante. E claro que em tempos de epidemia, este número aumentará de forma lamentável. E mesmo que em circunstâncias normais os números não sejam elevados, o sofrimento dos poucos que vivem estas situações garante uma resposta societária compreensiva. Contudo, se estes pais inférteis fossem autorizados a clonar o filho que perderam, isso diminuiria o seu sofrimento. E se a criança ainda não tivesse atingido a maioridade, nem sequer seria necessário o seu consentimento. Mas se a criança falecida tivesse atingido a maioridade, então deveria obter-se o seu consentimento através de um processo semelhante ao da doação de órgãos. Em todas as situações em que não fosse possível obter a posição da criança sobre a possibilidade dos seus pais a virem a clonar depois da morte, a posição de princípio poderia ser a de que os seus pais poderem escolher clonar o seu filho morto. De qualquer forma, os detalhes não são agora necessários.
Mais improvável que a morte prematura de um filho único, mas ainda assim constringente, seria o caso de uma criança doente que precisa de um transplante de medula-óssea. Assumirei apenas que o leitor não pensará ser errado os pais conceberem um outro filho através da procriação sexual normal para salvar o filho doente, desde que viessem a amar e a cuidar do novo filho. Agora suponha que os pais eram inférteis devido a idade avançada ou a um qualquer tipo de anormalidade, de tal forma que, na ausência de um qualquer doador disponível, a clonagem do filho doente seria o único recurso disponível. E mesmo que o casal fosse fértil, as hipóteses de compatibilidade entre os tecidos genéticos tornaria a clonagem na opção preferível.
A clonagem também surge como uma solução compreensível para o terceiro cenário. Este envolve pais que muito provavelmente passarão para os seus filhos uma doença fatal ou debilitante. Imagine que antes de tomarem consciência disto, concebem um filho que felizmente ganha a lotaria genética, batendo todas as probabilidades ao nascer saudável. Uma outra possibilidade é a probabilidade de passarem uma doença como a hemofilia ao filho homem e que por isso desejem clonar a sua filha única. Será que esta família deveria ser condenada a conformar-se com uma família tipo da China comunista só com um filho? Isto dificilmente será justo. A maioria dos americanos deseja, sente até que tem direito a pelo menos dois filhos. A clonagem permitiria que a família condenada por genes indesejáveis tentasse atingir um tamanho familiar aceitável.
Há um quarto cenário, que é basicamente a combinação do primeiro e do terceiro. Este envolveria um casal que, após ter tido um filho, perde a capacidade de produzir óvulos e espermatozóides viáveis, mas que continua a desejar aumentar a família. Permitir que clonassem o seu filho único tornaria possível ter um novo filho geneticamente aparentado – o que não sucederia no caso da doação de gâmetas ou da adopção.»

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte I)

«A democracia liberal não pode reduzir-se à ideia da regra das maiorias. A democracia liberal também inclui uma complexa série de regras e princípios para estruturar, dividir e limitar o poder. O mais destacado destes princípios é a protecção dos direitos individuais. De facto, são inúmeros os autores que defendem a democracia liberal como uma protecção constitucional dos direitos civis e políticos básicos dos indivíduos. É claro que muitas democracias liberais estão confrontadas também com grupos etnoculturais que reclamam a protecção constitucional de direitos de grupo. Estas exigências ouvem-se cada vez mais nos Estados Unidos, frequentemente sob a capa do multiculturalismo, mas sempre fizeram parte da vida política de outras democracias liberais, como o Canadá ou a Suiça. Neste ensaio quero examinar a ideia dos direitos de grupo com o fim de iluminar alguns aspectos importantes da teoria liberal democrática, não apenas no que se refere à relação entre direitos de grupo e direitos individuais, mas também no que afecta a natureza da cidadania e da comunidade política e a relação entre o liberalismo, o nacionalismo e o pluralismo cultural. A recente explosão dos conflitos étnicos no leste da Europa e na antiga União Soviética sugerem que o esclarecimento destas questões é imprescindível para a instalação da democracia nestes países.
Muitas pessoas defendem que a ideia de direitos de grupo é incompatível com a tradição liberal. Deste ponto de vista, os indivíduos constituiriam as unidades básicas da teoria liberal e os seus direitos e deveres não deveriam depender de ou variar em função da sua pertença a um grupo etnocultural. A atitude do estado liberal relativamente aos grupos etnoculturais deveria ser, asseguram, de neutralidade. Um estado neutro não deveria apoiar nem desincentivar a pertença a grupos etnoculturais, e de facto não os deveria reconhecer explicitamente, excepto para assegurar que os seus membros não são objecto de discriminação. Garantir reconhecimento legal aos grupos etnoculturais, diz-se, ameaça os princípios liberais da liberdade, da igualdade e da solidariedade.
Creio que isto é errado, tanto de um ponto de vista histórico como conceptual. São muitas as democracias liberais que concederam um reconhecimento legal aos grupos etnoculturais, algo frequentemente necessário para defender a liberdade individual e evitar graves injustiças. Para ver isto é preciso esclarecer algumas confusões comuns sobre a relação entre indivíduos, culturas e estados. Antes de poder avaliar adequadamente as questões normativas que afectam os direitos de grupo, devo primeiro fornecer uma explicação clara das práticas efectivas das democracias liberais relativamente aos grupos etnoculturais. Na primeira parte deste ensaio centrar-me-ei na descrição do modo como os estados liberais responderam historicamente à diversidade cultural. Na segunda parte dedicar-me-ei a questões mais explicitamente normativas e considerarei o modo como os direitos de grupo se vinculam aos princípios liberais básicos da liberdade e da igualdade.
Começarei a Secção I explicando por que não é possível aos Estados Unidos declararem-se neutros com relação aos grupos etnoculturais. Defenderei que a capacidade dos grupos etnoculturais para se manterem como tais depende directamente de uma gama de políticas governamentais que incluem questões como os direitos linguísticos, a política migratória, o desenho das fronteiras regionais e a fixação das celebrações oficiais. Depois disto estar reconhecido, a questão não será a de saber se os estados devem implicar-se na reprodução dos grupos o das identidades culturais, mas se deveriam fazê-lo. Na Secção 2 discuto o modo como os estados liberais abordaram historicamente a diversidade cultural. Defenderei que a formação histórica das democracias liberais comportou esforços deliberados de “construção nacional” que incluíam a consolidação e a difusão de uma cultura comum usada nas instituições sociais. Uma vez enfrentado este projecto de construção nacional, os grupos minoritários reagiram de formas diversas (Secção 3). Regra geral, os grupos de imigrantes voluntários aceitaram a integração nessa cultura comum. Sem dúvida que os grupos não imigrantes especialmente concentrados, cujo território histórico foi incorporado num estado mais amplo, resistiram tradicionalmente à integração, dando início às suas próprias formas de “construção nacional” com o fim de reter e consolidar a sua própria cultura societária, baseada na língua e nas instituições públicas. Chamarei a estes grupos “minorias nacionais”. As democracias liberais que contêm estes grupos não são, por conseguinte, estados-nação, mas estados multinacionais. Muitas democracias ocidentais são multinacionais neste sentido (por exemplo, a Espanha, o Canadá, a Bélgica e a Suiça), como o são também inúmeras democracias emergentes do leste. Em todos estes países, o modo como o nacionalismo acomodou as minorias converteu-se numa das questões mais importantes e difíceis
Como devem as democracias liberais responder às exigências de direitos de grupo para o auto-governo colocadas pelas minorias nacionais? Muitos teóricos liberais têm-se oposto a estes direitos. Manterei, todavia, que o nacionalismo das minorias pode ser compatível com os princípios liberais e que, de facto, pode ser tão legítimo como os projectos de construção nacional das maiorias (Secção 4). Os princípios liberais democráticos de liberdade individual e justiça social são mais facilmente acessíveis (e amiúde só podem ser alcançados) em unidades nacionais coesas que partilhem uma língua e uma cultura comuns. A teoria democrática liberal considera os indivíduos como cidadãos livres e iguais no contexto da sua própria sociedade nacional. Creio pessoalmente que este é um desejo compreensível e legítimo. As nações são, portanto, as unidades básicas da teoria liberal, pois são as unidades nas quais se alcançam os princípios liberais da liberdade e da igualdade (Secção 5).
Isto quer dizer que a teoria democrática liberal não é apenas uma teoria sobre a relação entre os indivíduos, por um lado, e os estados, pelo outro. Também deve incluir uma descrição explícita do estatuto legal e político dos grupos etnoculturais. Com efeito, nem todos os direitos de grupo são compatíveis com a tradição liberal. Concluirei discutindo diferentes tipos de direitos de grupo e explicando quais deles são compatíveis com os valores liberais de liberdade individual e justiça social (Secção 6).»