quinta-feira, 17 de abril de 2008

Ronald Dworkin, "Brincar de Deus: Genes, Clones e Sorte" (Parte IV)

«Para levar a sério a possibilidade que estamos agora a explorar - de que os cientistas conquistaram a capacidade de criar um ser humano com qualquer genótipo escolhido por eles ou pelos pais da criança -, poderíamos, então, representar a destruição das atitudes morais e éticas estabelecidas a partir de praticamente qualquer ponto. Não empregamos apenas a diferença entre sorte e escolha, mas as nossas atribuições de responsabilidade por situações ou acontecimentos, por exemplo, mas também nas nossas avaliações do orgulho, inclusive do orgulho daquilo que a natureza nos legou. E um fenómeno impressionante, então, que as pessoas se orgulhem de atributos físicos ou habilidades que não escolheram nem criaram, como a aparência física ou a força, mas não quando esses atributos podem ser vistos como resultados do trabalho de outras pessoas, do qual não participaram. A mulher que se entrega a um cirurgião plástico pode alegrar-se com o resultado, mas não pode orgulhar-se dele; seguramente não o mesmo orgulho que teria se tivesse nascido com essa beleza. O que aconteceria com o orgulho dos nossos atributos físicos, ou mesmo do que fizemos deles, se eles fossem os resultados inexoráveis, não da natureza, cujo orgulho temos permissão, por assim dizer, de compartilhar, mas da decisão dos nossos pais e dos geneticistas que contrataram?
Porém, o uso mais dramático da diferença fundamental entre a sorte e a escolha está na atribuição da responsabilidade pessoal e colectiva, e é nisso que parece maior o risco de insegurança moral. Agora aceitamos a nossa condição ao nascer por um parâmetro da nossa responsabilidade - temos de aproveitá-la da melhor forma possível -, mas não como uma possível área de culpa, a não ser naqueles casos especiais, de descoberta relativamente recente, nos quais o comportamento de alguém alterou o seu desenvolvimento embrionário, por meio do tabagismo, por exemplo, ou das drogas. Caso contrário, embora possamos culpar o destino pelo que somos, como o fez Richard Crookback, não podemos culpar mais ninguém. As mesmas diferenças aplicam-se, pelo menos para a maioria das pessoas, e para muitos filósofos da moral, também à responsabilidade social. Sentimo-nos mais responsáveis pela compensação das vítimas de acidentes industriais e de preconceitos raciais, como vítimas em ambos os casos, embora de maneiras diferentes, da sociedade geral, do que pela compensação daqueles que nascem com defeitos genéticos, dos atingidos por um raio ou outros acidentes que os advogados e as companhias de seguros chamam de "casos fortuitos". Como mudaria isso tudo se todos se tornassem iguais a essas pessoas devido a decisões de outrem, entre elas a decisão de alguns pais de não interferir, mas de deixar a natureza seguir seu rumo?
Certamente deve mudar. Mas como e porquê? Novamente, essas questões não são retóricas. Não lhes sei responder, e mal posso dar palpites. Mas essa é a questão. O terror que muitos de nós sentimos ao pensar na engenharia genética não é um medo do que está errado; pelo contrário, é o medo de perder o pulso sobre o que está errado. Não temos o direito - seria uma grave confusão - de pensar que até as mudanças mais avassaladoras na fronteira entre a sorte e a opção de algum modo desafiem a própria moralidade, de forma que um dia não haverá mais certo ou errado. Todavia temos o direito de estar apreensivos por as nossas covicções arraigadas, muitas delas, venham a ser solapadas, que venhamos a sofrer uma espécie de queda-livre moral, que tenhamos de pensar novamente contra um novo pano de fundo e com resultados incertos. Brincar de Deus é brincar com fogo.
Suponhamos que esta hipótese, pelo menos depois de corrigida e aprimorada, faça sentido e seja responsável pela poderosa vertigem emocional das pessoas à engenharia genética, que não é explicada pelos fundamentos mais discretos que examinamos primeiro. Teremos descoberto, então, não só uma explicação, mas uma justificativa da objecção, uma interpretação do "não brinque de Deus" que demonstra por que, pelo menos neste caso, não deveríamos ou deveríamos fazer? Penso que não. Teríamos descoberto um desafio que devemos enfrentar, em vez de um motivo para voltar atrás, pois a nossa hipótese não infere nenhum valor, derivado ou independente. Só revela motivos por que os nossos valores contemporâneos, de ambos os tipos, podem estar errados ou, pelo menos, mal analisados. Para sermos moral e eticamente responsáveis, não pode haver retomo depois que descobrirmos, como descobrimos, que alguns dos pressupostos mais fundamentais desses valores estão equivocados. Brincar de Deus é, de facto, brincar com fogo. Mas é isso que nós, os mortais, temos feito desde os tempos de Prometeu, o deus padroeiro da perigosa descoberta. Brincamos com fogo e assumimos as consequências, pois a alternativa é a cobardia perante o desconhecido.»

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