domingo, 6 de abril de 2008

Jürgen Habermas, "Três Modelos Normativos de Democracia (Parte V)

«Com essas descrições estruturais do processo democrático fica traçado o itinerário para se chegar a uma concepção normativa do Estado e da sociedade. Pressupõe-se apenas uma administração pública, do tipo que se formou no início do mundo moderno com o sistema de Estados europeus e que se desenvolveu mediante um entrelaçamento funcional com a economia capitalista. Segundo a concepção republicana, a formação da opinião e vontade políticas dos cidadãos consiste no meio pelo qual se constitui a sociedade como um todo politicamente organizado. A sociedade centra-se no Estado; pois na prática da autodeterminação política dos cidadãos a comunidade torna-se consciente de si mesma como um todo e age efectivamente sobre si mesma através da vontade colectiva dos cidadãos. A democracia é sinónimo de auto-organização política da sociedade. Resulta daí uma compreensão da política que se volta polemicamente contra o Estado. Nos escritos políticos de Hannah Arendt é possível depreender a rota de colisão da argumentação republicana contra a cidadania burguesa de uma população despolitizada e contra a busca de legitimação por parte de partidos cuja referência primária é o Estado. Seria necessário revitalizar a esfera da opinião pública até ao ponto em que uma cidadania regenerada pudesse (re)apropiar-se, na forma da autogestão descentralizada, do poder burocraticamente autonomizado do Estado.
Segundo a concepção liberal, não há como eliminar essa separação entre o aparato estatal e a sociedade, mas apenas superar a distância entre ambos pela via do processo democrático. As débeis conotações normativas comportadas pela ideia de um equilíbrio de poder e de interesses necessitam, em todo o caso, do complemento representado pelo Estado. A formação democrática da vontade de cidadãos interessados em si mesmos, entendida de forma minimalista, constitui não mais que um elemento no interior de uma constituição que tem por tarefa disciplinar o poder do Estado mediante dispositivos normativos como os direitos fundamentais, a separação de poderes e a vinculação da administração à lei. Por meio da competição entre os partidos políticos, de uma parte, e entre o governo e a oposição, de outra, essa constituição deve fazer o Estado levar adequadamente em conta os interesses sociais e as orientações valorativas da sociedade. Essa compreensão da política centrada no Estado pode dispensar uma suposição pouco realista, a saber: a de que os cidadãos em conjunto são capazes de acção colectiva. Ela não se orienta pelo input de uma formação política e racional da vontade, mas sim pelo output favorável no balanço da actividade estatal. A rota de colisão dessa argumentação tem o seu alvo no potencial perturbador de um poder estatal que impeça a circulação social autónoma entre pessoas privadas. O centro do modelo liberal não é a autodeterminação democrática dos cidadãos deliberantes, mas sim a normatização (em termos de Estado de Direito) de uma sociedade centrada na economia que, mediante a satisfação das expectativas de felicidade de pessoas privadas empreendedoras, deve garantir um bem comum entendido, no fundo, de modo apolítico.
A teoria do discurso, que associa ao processo democrático conotações normativas mais fortes do que o modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, assume, por sua vez, elementos de ambas as partes e combina-os de uma forma nova e distinta. Em consonância com o republicanismo, ele reserva uma posição central para o processo político de formação da opinião e da vontade, sem, no entanto, entender o Estado de Direito como algo secundário. Em vez disso, a teoria do discurso concebe os direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito como uma resposta consequente à pergunta sobre como institucionalizar as condições exigentes de comunicação do procedimento democrático. A teoria do discurso não faz depender a realização de uma política deliberativa de uma cidadania colectivamente capaz de acção, mas da institucionalização dos procedimentos correspondentes do processo deliberativo. Ela não opera por muito tempo com o conceito de um todo social centrado no Estado, que se imagina em linhas gerais como um sujeito de acção orientado para metas. Tampouco situa o todo num sistema de normas constitucionais que inconscientemente regulam o equilíbrio do poder e o compromisso de interesses diversos de acordo com o modelo de funcionamento do mercado. Ela dispensa inteiramente as figuras do pensamento da filosofia da consciência, inclinadas a atribuir a prática da autodeterminação dos cidadãos a um sujeito social global ou então a referir o império impessoal das leis a sujeitos particulares que competem entre si. No primeiro caso, a cidadania é considerada como um actor colectivo, que reflecte o todo e age por ele; no segundo caso, os actores privados agem como variáveis independentes em processos de poder que se desenvolvem de forma cega, porque para além dos actos de escolha individual não podem existir decisões colectivas tomadas de forma consciente, excepto num sentido metafórico.
Em face disso, a teoria do discurso conta com a intersubjectividade mais avançada presente em processos de entendimento mútuo que se cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de deliberações nas instituições parlamentares ou na rede de comunicação dos espaços políticos. Essas comunicações sem sujeito, internas e externas às corporações políticas e programadas para tomar decisões, formam arenas nas quais pode ocorrer a formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de temas relevantes para o todo social e sobre matérias carentes de regulamentação. A formação informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em decisões legislativas por meio das quais o poder gerado comunicativamente transforma-se em poder passível de ser empregue em termos administrativos. Assim como no modelo liberal, também na teoria do discurso os limites entre o Estado e a sociedade são respeitados; mas aqui a sociedade civil, enquanto base social de espaços públicos autónomos, distingue-se tanto do sistema de acção económica quanto da administração pública. Dessa compreensão democrática, resulta, por via normativa, a exigência de um deslocamento dos pesos que se aplicam a cada um dos elementos na relação entre os três recursos a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem a sua carência de integração e regulação, a saber: o dinheiro, o poder administrativo e a solidariedade. As implicações normativas são evidentes: a força da integração social que tem a solidariedade social, não obstante não poder ser mais extraída apenas das fontes da acção comunicativa, deve poder desenvolver-se com base em espaços públicos amplamente diversificados e autónomos e em procedimentos de formação democrática da opinião e da vontade políticas, institucionalizadas em termos de Estado de Direito; e, com base no campo do Direito, deve ser capaz de afirmar-se também contra os outros dois poderes – o dinheiro e o poder administrativo.»

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