terça-feira, 15 de abril de 2008

John Harris, “A Pobreza das Objecções à Clonagem Humana Reprodutiva” (Parte II)

«Copiando o Genoma Humano
Será errado ou até mau duplicar o genoma humano? Contrariamente à crença popular e à histeria que tem caracterizado as discussões sobre a clonagem, a clonagem humana reprodutiva é um processo do qual a humanidade possui uma experiência vasta e encorajadora. Os gémeos idênticos são clones naturais. Têm feito parte da natureza e da experiência humana desde os primórdios, e são bastante comuns. Mais ou menos três em cada mil nascimentos são de gémeos idênticos; isso significa que num país com o tamanho da Inglaterra haverá cerca de 200 mil. Onde está a evidência de que é cruel produzir genótipos idênticos? Onde está a evidência de que aos gémeos falta individualidade ou que são prejudicados pela existência de alguém que possui genes idênticos?
O genótipo não é fenótipo; os genes influenciam, mas não determinam os traços que as pessoas virão a ter. Qualquer pessoa que tente reproduzir-se a si própria dando origem a um clone estaria equivocada pois isso não é pura e simplesmente possível. Podem ser tolos, mas não serão necessariamente malvados. Temos o direito de impedir a malvadez, mas será que temos o direito de impedir a ingenuidade?

Dignidade Humana
Defende-se, por vezes, que a duplicação do genoma humano é contrária à dignidade humana. Esta ideia está frequentemente ligada à ética kantiana. Encontramos um exemplo típico nos textos de Axel Kahn:

A criação de clones humanos apenas pela vida da separação de sequências de células, está, de um ponto de vista filosófico, em óbvia contradição com o princípio expresso por Immanuel Kant: o da dignidade humana. Este princípio exige que um indivíduo – e que eu estendo para incluir a vida humana – nunca deve ser pensada como meio, mas sempre como fim. Criar vida humana com o propósito exclusivo de preparar material terapêutico não estaria claramente a favor da dignidade da vida criada. (1997a: 119)

A ideia de usar indivíduos como meios para fins de outros é por vezes designada de “instrumentalização” (Maclaren, 1997), mas é muito difícil separar usos legítimos e ilegítimos dos outros para alcançar fins próprios. O respeito pela dignidade humana exige que o indivíduo nunca seja usado exclusivamente como meio (ver Harris, 1997: 754; Kahn, 1997a: 320). Podemos então evitar instrumentalizar os outros se a sua participação nos nossos planos fizer também parte dos seus planos – ou seja, se tiverem consentido em ser usados por nós.
Quando, por exemplo, uma criança é concebida para vir a ser “filho ou herdeiro” ou para “tomar conta da quinta ou do negócio da família (como acontece frequentemente em inúmeras culturas), não é claro em que medida se aplica o princípio de Kant. Ou se atribuem aos pais outros objectivos que possam estar de acordo com o princípio de Kant, ou a eventual autonomia da criança – e o seu claro e substantivo interesse ou benefício na sua existência – tem precedência sobre a questão trivial dos motivos parentais (Harris, 1998: 121-31; 145-57).

A Preservação do Genoma Humano
“A preservação do genoma humano enquanto herança comum da humanidade” é condição necessária para a UNESCO (1997) e é usada como argumento contra a clonagem. Será que isso significa que o genoma humano deve ser “preservado intacto” – quer dizer, sem variação – ou será que quer dizer simplesmente que não nos devemos “reproduzir assexualmente”? Não se pode dizer que a clonagem tenha impacto na variabilidade do genoma humano; a clonagem apenas repete um genoma existente, mas isso não reduz a sua variabilidade, apenas não a aumenta. Mesmo que alguém no planeta viesse a usar a clonagem como o seu único método reprodutivo, isso não reduziria a variedade do genoma humano, apenas deixaria a variedade como está. Contudo, por causa dos custos e das dificuldades técnicas, para não referir o facto da reprodução sexual oferecer usualmente outros incentivos aos que a usam, é improvável que os níveis de clonagem venham alguma vez a ser tão elevados que possam ameaçar a lotaria dos genes humanos e a sua variabilidade.

O Direito dos Pais
Defende-se, por vezes, que os filhos têm “direito a ter dois pais” ou “direito a serem o produto da mistura dos genes de dois indivíduos”. Se o direito a ter dois pais for compreendido como o direito a ter dois pais sociais, então esse direito só seria violado pela clonagem se a família identificada para a criar fosse monoparental. É claro que isto será tanto o resultado da clonagem como do uso de quaisquer outras técnicas reprodutivas (ou mesmo da reprodução sexual). Para além de que se um tal direito existe, então tem sido amplamente violado, o que tem originado “inúmeras” vítimas, não havendo evidências significativas de qualquer mal duradouro resultante da violação desse suposto direito. Com efeito, a existência trágica de tantas viúvas de guerra por esse mundo fora e o sucesso que a maioria delas alcança na educação dos seus filhos é um testemunho eloquente de que os temores manifestados relativamente à clonagem são exagerados.
Se, por outro lado, interpretarmos o direito a ter dois pais como o direito a ser o produto da mistura dos genes de dois indivíduos, então a suposição de que este direito é violado quando o núcleo da célula de um indivíduo é inserido no óvulo esvaziado de outro indivíduo é falsa no sentido em que é habitualmente entendida. Há pelo menos um sentido em que um direito expresso desta forma pode ser violado pela clonagem, mas não de um modo tal que conduza a uma objecção. Primeiro, é falso pensar que o clone é o filho genético do dador de núcleo. O clone é o irmão ou a irmã gémea do núcleo do dador e o produto genético do núcleo de ambos os pais dadores. Então este tipo de indivíduo clonado é, e será sempre, o filho genético de dois genótipos separados, de dois indivíduos geneticamente distintos, independentemente de números de vezes que possam vir a ser clonados.

Qual o benefício da clonagem?
A clonagem reprodutiva pode ajudar algumas pessoas a ter filhos geneticamente aparentados que de outra forma não poderiam. Aparte isso, os objectivos estritamente reprodutivos da clonagem não são nem obviamente importantes nem urgentes; mas isso não equivale a afirmar que a proibição da clonagem é indiferente. Como sugerimos antes, devemos estar relutantes quanto à aceitação de restrições à liberdade humana, por mais triviais que sejam os seus propósitos, sem que tenham sido apresentadas razões suficientes para isso. O argumento deste capítulo mostrou que essas razões podem inexistir de facto.
Diz-se que uma razão maior para desenvolver a clonagem de animais é o facto de permitir, em particular, o estudo de doenças genéticas e, em geral, o desenvolvimento da genética. Ainda não é claro se a clonagem humana através da substituição do núcleo traz ou não grandes vantagens. Seguramente que permitirá que casais inférteis possam ter filhos geneticamente aparentados; oferece a possibilidade, como salientamos, de prevenir algumas doenças causadas pelo ADN mitocôndrico; e pode ajudar “portadores” de X ligado e de desordens autossómicas recessivas a terem os seus próprios filhos genéticos sem correr o risco de passar essas doenças. Também é possível que a chamada clonagem terapêutica possa vir ser usada para criar “peças sobressalentes”, através, por exemplo, da criação de células estaminais para terapias regenerativas e possivelmente para terapias que visam a extensão da vida humana (Harris, 2002a, 2002b, a publicar)

A Dolly acaba com a divisão entre células germinais e somáticas
Há implicações interessantes da clonagem por substituição do núcleo (que são evidentes desde que os sapos foram clonados através deste método na década de 60), e que aparentemente não foram noticiadas
[1]. Há actualmente uma moratória global sobre a manipulação da linha germinal humana, enquanto que as intervenções terapêuticas da linha somática são, em princípio, permitidas. Contudo, inserir o núcleo maduro de uma célula de um adulto num óvulo enucleado transforma a célula numa linha germinal de células. Isto possui três efeitos importantes. Primeiro, erradica a divisão clara entre linha germinal e linha somática do núcleo, porque cada núcleo da célula de um adulto é em princípio “traduzível” para a linha germinal do núcleo de uma célula através da transferência do seu núcleo, o que cria um clone. Segundo, permite que modificações da linha somática de células humanas se tornem em modificações da linha germinal. Suponha o leitor que está permanentemente a introduzir uma cópia normal do gene da adenosina deaminase em células da espinal-medula de um indivíduo que sofra de graves problemas de imunodeficiência (como o que afecta o chamado “rapaz bolha” que tem de viver numa bolha protectora com ar limpo) com óbvios efeitos terapêuticos benéficos. Isso é uma modificação da linha somática. Se uma célula geneticamente modificada da medula-espinal deste indivíduo fosse permanentemente clonada, o genoma modificado passaria para o clone através da linha germinal. Trata-se assim de um benefício que pereceria com o recipiente original, não passando para protecção do seu filho, mas que poderia ser dado às gerações futuras através da clonagem[2]. O terceiro efeito é que mostra que a propalada divisão moral entre linha germinal e terapia da linha somática é ainda mais ridícula do que era previamente suposto.

Imortalidade
É claro que alguns indivíduos podem desejar que a sua descendência não tenha apenas os seus genes, mas o seu genótipo. Contudo, não há forma de virem a fazer um indivíduo que fosse cópias de si mesmos. Depois de tantos anos, as influências ambientais seriam radicalmente diferentes, e uma vez que cada escolha, por mais insignificante que seja, dá origem a um ramo novo na árvore da vida com consequências imprevisíveis, o santo graal do uso da clonagem para alcançar a imortalidade estaria condenado a não ser mais do que uma busca infrutífera. Podemos concluir que as pessoas que se viessem a clonar a si mesmas deveriam ser tolas e mal informadas, mas é duvidoso que fossem imorais ou que as suas tentativas prejudicassem a sociedade ou os seus filhos de forma significativa.
A clonagem terapêutica associada à pesquisa de células estaminais pode permitir que o corpo humano se repare indefinidamente, conduzindo eventualmente a um tipo de imortalidade. Algumas pessoas temem isto; eu pela minha parte acredito que os perigos têm sido claramente exagerados, mas uma vez que esta possibilidade, hoje remota, não envolve a clonagem reprodutiva, não a explorarei aqui
[3]
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[1] A não ser por Pedro Lowenstein, que mo indicou.
[2] Estas possibilidades foram-me indicadas por Pedro Lowenstein, que trabalha actualmente nas implicações da terapia genética humana.
[3] Para saber mais sobre a questão da imortalidade, ver Harris (2000b, 2002c).

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