quarta-feira, 30 de abril de 2008

Robert Nozick, "Facto e valor" (Parte VIII)

«Consideremos o caso de placebos, substâncias químicas inertes e inofensivas usadas para efeitos terapêuticos. Damos um medicamento a uma pessoa dizendo-lhe que isso a ajudará na sua doença ou dor; ela acredita no que lhe é dito, e desse modo é ajudada na cura. Todavia, esta cura funciona com base na sua crença no efeito do medicamento, e não apenas através da acção bioquímica da substância no seu organismo; se lhe for administrada a mesma substância química, sem que ela tenha consciência que está a ser ajudada, então não receberá qualquer benefício. Será verdade que a substância presente naquele placebo pode ajudar o paciente, no caso de ele acreditar nos seus efeitos na hora de o tomar?
Como funciona este benefício? Recentemente descobriu-se que as endorfinas, substâncias que servem para aliviar a dor semelhantes à morfina, são naturalmente produzidas no organismo, e há provas de que um placebo exerce influência na produção de endorfinas.
* Suponhamos que quando uma pessoa acredita que está a receber um alívio para a dor ou outra ajuda, este facto estimula a produção de endorfinas ou outros agentes com potencial de cura, reforçando deste modo o seu alívio.
Consideremos o caso de alguém que conhece estes resultados científicos sobre o modo de actuação dos placebos; quando esta pessoa estiver com dores ser-lhe-á administrado um placebo e esse facto é transmitido ao paciente. Será a sua dor diminuída? Esta é uma questão empírica (para a qual, na minha perspectiva, há evidência de que a resposta é afirmativa). Ao lhe ser administrado o placebo, esta pessoa bem informada poderia perguntar, sabendo que um lhe vai ser dado: os placebos dão resultado em casos como este? Se esta substância funciona apenas no caso em que pessoa acredita que isso poderá (ou poderia?) ser possível, então ela também poderá querer saber se essa mesma substância funciona no seu caso em particular. (E poderia ela então perguntar se também funciona no caso de alguém que sabe que lhe foi dado um placebo, e que, na altura, tomou conhecimento se funcionaria ou não? E assim por diante.) Suponhamos – sem nos esquecermos de que se trata de uma questão empírica – que funciona neste caso, para aqueles que acreditam que poderá (ou pode) funcionar. (Talvez não tenha funcionado inicialmente, mas as pessoas foram informadas que, neste caso, funciona, que existem dados baseados em experiências que demonstram a sua eficácia, e assim, uma vez que acreditam no que lhes é transmitido, o placebo é de facto eficaz.) A suposição de que o placebo actua de forma eficaz seria infundada; resultaria da crença de que tais placebos são benéficos. Neste caso são produzidas endorfinas em virtude de uma crença reflexiva: a crença em que esta própria crença produzirá endorfinas. (Consideremos como uma descrição de conhecimento tal qual foi apresentada no Capítulo 3 deveria lidar com a questão no sentido de verificar se esta pessoa sabe ou não que está a ser ajudada pelo placebo.)
Até agora temos evitado a questão ontológica sobre a existência ou não do valor. Analisámos o que seria o valor se existisse valor (nomeadamente, unidade orgânica), como nos poderíamos posicionar face a esse valor e face às características valoráveis de outros, e de que modo poderíamos procurar e seguir valores. Sugerimos que poderiam ser listadas condições sobre o valor que o especificariam de forma singular, excluindo todas as dimensões excepto a dimensão do valor intrínseco. Todavia, em nenhuma parte deste trabalho demonstrámos, provámos ou argumentámos que essa mesma dimensão elegível é o valor ou explicámos por que é um elemento suficiente para constituir valor. (Embora as condições pudessem explicar por que é que o valor, se ele existe, é essa mesma dimensão e não outra qualquer.) A nossa discussão anterior, para usar o termo dos fenomenologistas, colocou entre parêntesis a questão ontológica sobre a existência do valor; a nossa teoria descreveu como seria viver num universo onde existisse valor, onde existissem verdades éticas. (Mas uma descrição completa de tal universo não constituiria condição suficiente para a existência de valor?)
Suponhamos que somos suficientemente desafortunados para viver num universo, idêntico a este, mas sem valor. As condições necessárias constitutivas de valor são satisfeitas, e algumas coisas possuem um grau elevado de unidade orgânica, a qual, (suponhamos) seria considerado valor se é que alguma coisa pode ser, porém nesse universo não existe qualquer forma de valor. (Seria isso “um infortúnio” porque essa situação é pior? Seria esse juízo de valor feito de acordo com um padrão de valor que é sustentável como verdadeiro neste universo descrito, ou apenas num outro qualquer?) Mesmo assim, porquê estar sujeito à contingência de viver num universo sem valores? Não poderíamos nós abandonar a tempo o que nos é prejudicial, e escolher viver como se o nosso universo de facto tivesse valores, não estando deste modo bem pior do que se o valor existisse – mesmo quando isso é avaliado pelo padrão de valor do outro mundo que contém de facto valores? Deste modo, parece que a existência de valor não é necessária, apenas necessitamos um modo coerente para constituir ou formar valor. Precisamos apenas que o valor seja possível. Assim nada que pudesse existir noutro universo faltaria no nosso; sendo que nós aqui poderíamos localizar, adoptar, e seguir o valor que aí existisse, transformando-o em realidade aqui. Neste mundo poderíamos tornar reais as unidades, as interpretações, entre outras, que se podem valorar no outro mundo. É desnecessário, tal como E.E. Cummings sugere, deslocarmo-nos até ao “inferno vizinho”; podemos trazer o seu valor até aqui.
Estas reflexões poderiam sugerir que a existência de valor reside na sua possibilidade, se o valor existe num outro qualquer mundo possível, então de modo a servir qualquer propósito teórico ou prático, também existe neste. Não é suficiente para que o valor tenha um papel na minha vida que eu saiba como ele seria? Todavia que diferença existe entre o aqui e o lá; que mais é considerado verdadeiro lá em virtude do qual a existência de valor é possível? (Terá aí o valor lugar no seguimento de certos factos, tais como o da unidade orgânica, e aqui não?) Mas no caso de não existir qualquer diferença, então por que isto não é evidência de que o valor não existe lá também (uma vez que em ambos os lugares não existirão condições suficientes para a existência de valor), e deste modo mostra que o valor é impossível?
Sabemos o que poderia constituir valor; apenas temos que lhe dar forma, o valorizar, procurá-lo e segui-lo, perfilando as nossas vidas de acordo com ele. Apenas temos que optar pela existência do valor. Para que o valor faça parte do nosso universo apenas precisamos de optar de forma reflexiva para que ele exista, precisamos da nossa imputação reflexiva face à existência de valor.
A escolha fundamental que nos é aberta sobre a existência ou não de valor não é ditada ou caracterizada como melhor por um qualquer padrão de valor pré-existente. Usando um termo de Kierkegaard, é um salto; mas a partir do momento que se dá o salto, ou melhor, nesse (ou em resultado desse) próprio salto, chegamos à conclusão de que essa é a melhor escolha.
** O valor não é algo estranho a nós, não algo completamente exterior, uma vez que nós (não só o temos mas) escolhemos que haja valor. Todavia, é fornecido um padrão externo, visto que, de igual modo, o carácter do valor não depende de nós. A separação fundamental reside entre aqueles que fazem ou a escolha pela existência dos valores e os que optam pelo contrário, quer escolhendo pela ausência de valor quer não admitindo a situação de escolha.
Se alguns não fazem a escolha da existência de valor, então podemos admitir que existem valores para nós e para eles não? De acordo com o discurso da mecânica quântica, poderá uma pessoa viver numa posição ou dimensão superior entre um mundo com valor e outro desprovido dele, através da sua escolha (de que exista ou não valor) reduzindo a onda tumultuosa do mundo em que habita? Porém, não vivemos todos no mesmo mundo? Uma prova de que isso é verdade, e que foi anteriormente discutida, é a motivação pela cobiça daqueles que buscam o mal e que não ficam satisfeitos mesmo quando atingem uma existência com algum valor. Perante esta perspectiva, a escolha de uma pessoa pela existência de valor afecta as restantes para que também estas vivem num mundo com valor, sejam quais forem as suas opções. Contudo, talvez estejamos a ir longe de mais. Talvez cada um de nós tenha que escolher que exista valor, se tal é possível, para o outro. Se alguém optar pela não existência de valor isso não destrói ou enfraquece a nossa relação com o valor – nós é que optámos pela sua existência.
Está claro que é melhor seguir a pista de ou procurar valores do que regularmos a nossa conduta, quer queiramos ou não, através de valores correctos com consequências punitivas; a primeira ligação com o valor é mais consistente em termos orgânicos e por isso mais valorável do que a segunda, a qual tem menor qualidade valorável. Pode, no entanto, alguém que opta pela existência de valor impor de forma legítima um castigo, no sentido de estabelecer a relação com o valor, sobre alguém que não faz a mesma escolha? A escolha da existência de valor também implica, se essa for a natureza do valor, que se veja esta relação punitiva como valorável.»

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Quando administramos a alguém uma substância inibidora de endorfinas juntamente com ou como um placebo, essa pessoa não acusa redução de dor. Porém, esta experiência está aberta à seguinte interpretação. Os placebos poderiam funcionar como um factor X que reduz as dores, diferente das endorfinas, no sentido em que o alívio de dor de uma pessoa ao receber um placebo é o produto de X e das endorfinas que o organismo produz naturalmente. O inibidor de endorfina faz desaparecer a última situação descrita, deixando o paciente apenas com X, e desse modo com um menor alívio da dor, embora o placebo não actue através das endorfinas.
** Talvez fosse útil considerar de que modo a nossa discussão sobre a escolha reflexiva da existência de valor pode esclarecer a noção obscura de “verdade subjectiva” proposta por Kierkegaard (Consultar a obra Concluding Unscientific Postscript, Princeton University Press, Princeton, 1944, Part II, cap. 2.). Contudo, ele manifesta o desejo de aplicar esse conceito à crença religiosa, à fé num Deus que tem poder de agir e produzir efeitos nas pessoas e no mundo e que o voltará a fazer. É difícil ver até que ponto o acto de alguém, até mesmo um acto reflexivo, poderia comportar esta ideia. Por outro lado, o valor é inerte; não possui qualquer poder de causalidade e pode apenas ser actuante através daqueles que têm dele uma percepção e o seguem. Assim é mais plausível entender a existência de valor como algo ligado à nossa escolha da existência de valor, do que entender a existência de um Deus cuja acção é visível ligada ao culto que fazemos de tal entidade. A perspectiva religiosa análoga à nossa sobre o valor teria que passar por uma teologia que promove a santidade do acto de adorar um ser passivo perfeito.

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