sexta-feira, 25 de abril de 2008

Harry Frankfurt, "A Igualdade como Ideal Moral" (Parte V)

«Com bastante frequência, a defesa do igualitarismo baseia-se menos num argumento do que numa suposta intuição moral: a desigualdade económica, considerada como tal, parece simplesmente algo incorrecto. Bastantes pessoas consideram inequivocamente óbvio o facto de alguns usufruírem de benefícios económicos maiores do que outros, tomado em si mesmo, ser moralmente ofensivo. Contudo, suspeito que em muitos dos casos que manifestam possuir essa intuição relativamente às manifestações de desigualdade não estão a responder à desigualdade, mas a outra característica que essas situações enfrentam. Creio que aquilo que por intuição lhes parece moralmente objectável, nos tipos de situações habitualmente referidas como exemplos de desigualdade económica, não é o facto de alguns dos indivíduos nessas situações terem menos dinheiro que outros, mas o facto daqueles que têm menos terem demasiado pouco.
Quando pensamos nas pessoas cuja situação é bastante pior do que a nossa, é muito comum que nos sintamos moralmente perturbados com as suas circunstâncias. Sem dúvida que o que nos toca directamente neste tipo de casos não é uma discrepância quantitativa, mas uma condição qualitativa; não é o facto dos recursos económicos daqueles cuja situação é pior sejam de magnitude inferior aos nossos, mas o facto destas pessoas serem pobres. As meras diferenças de quantidade de dinheiro que têm as pessoas não são, em sim mesmas, angustiantes. Depois de tudo, tendemos a não nos comover com as desigualdades entre os acomodados e os ricos; a nossa consciência de que a situação dos primeiros é bastante pior do que as dos segundos não nos perturba em absoluto de um ponto de vista moral. E se acreditamos que a vida de alguma pessoa é rica e satisfatória, que ela própria está realmente conforme com a sua situação económica e que não sofre ressentimentos nem arrependimentos que podiam ser aliviados com mais dinheiro, não estamos em geral muito interessados – de um ponto de vista moral – em comparar a quantidade de dinheiro que têm com a quantidade que outros possuem. As discrepâncias económicas em casos deste tipo não nos parecem assuntos com um interesse moral relevante. O facto de algumas pessoas terem muito menos que outras não é moralmente perturbador quando está claro que têm bastante.
Parece claro que o igualitarismo e a teoria da suficiência são logicamente independentes: mas não se pode supor que as considerações que apoiam o primeiro proporcionam apoio também para a segunda. Sem dúvida, os defensores do igualitarismo acreditam, muitas vezes, que têm oferecido fundamentos para a sua posição quando, na realidade, o que têm oferecido é apenas um apoio pertinente para a teoria da suficiência. Assim, muitas vezes, quando procuram ganhar a aceitação do igualitarismo, chamam a atenção para as disparidades entre as condições de vida características dos ricos e as características dos pobres. Agora, parece inegável que contemplar estas disparidades provoca frequentemente a convicção de que seria moralmente desejável redistribuir os recursos disponíveis com vista a melhorar as circunstâncias dos pobres. E, de facto, isto daria lugar a um grau maior de igualdade económica. Sem dúvida, o carácter irrefutável do apelo moral para melhorar a situação dos pobres atribuindo-lhes recursos tirados daqueles cuja situação é melhor nem sequer tende a mostrar que o igualitarismo é, como ideal moral, irrefutável de forma similar. Demonstrar que a pobreza é fortemente indesejável não contribui em absoluto para demonstrar o mesmo da igualdade. O que faz com que alguém seja pobre num sentido moral pertinente – em que a pobreza se entende como uma situação que nos faz naturalmente recuar – não é que os seus bens económicos sejam apenas de magnitude inferior aos possuídos por outros.
Ronald Dworkin constitui um exemplo típico desta confusão. Dworkin afirma que o ideal de igualdade económica requer que “nenhum cidadão tenha menos que uma parte proporcionalmente igual de recursos de uma comunidade para que os outros possuam mais daquilo que lhe falta”
[1]. Sem dúvida, para defender a sua afirmação de que os Estados Unidos ainda não alcançaram este ideal, refere-se a circunstâncias que não são uma prova específica da desigualdade, mas da pobreza:

Creio que é evidente que os Estados Unidos ainda não alcançaram [o ideal de liberdade]. Uma minoria considerável de estado-unidenses está cronicamente desempregada ou recebe salários abaixo de qualquer linha de pobreza realista, está incapacitada de diversas maneiras ou angustiada com necessidades especiais; e a maioria destas pessoas faria o trabalho necessário para ganhar um salário decente se tivesse a oportunidade e a capacidade (p. 208).

A principal preocupação de Dworkin – o que na realidade se considera de suma importância moral – não é que a nossa sociedade permita uma situação em que uma minoria considerável de estado-unidenses tenha porções mais pequenas que outros de recursos que ele supõe, parece, que deveriam estar disponíveis para todos. A sua preocupação respeita sobretudo ao facto dos membros desta minoria não ganharem salários decentes.
A força da denúncia de Dworkin não deriva do argumento que a nossa sociedade não provê a alguns indivíduos o mesmo que a outros, mas um argumento bastante diferente, a saber, que a nossa sociedade não provê a cada indivíduo “a oportunidade de desenvolver-se e de levar uma vida que possa ser considerada valiosa tanto para si próprio como para [a comunidade] (p. 211). Dworkin sente-se consternado, fundamentalmente, não por causa da evidência dos Estados Unidos permitirem a desigualdade económica, mas com a evidência de não garantirem que todos tenham o suficiente para levar “uma vida de eleição e de valor” (p. 212); por outras palavras, por não cumprirem para todos o ideal da suficiência. O que o perturba não é o facto de estarem generalizadas certas relações quantitativas, mas que prevaleçam certas situações qualitativas. Preocupa-o principalmente o valor da vida de certas pessoas, mas não se representa a si próprio, de forma errada, como alguém que se preocupa sobretudo com a magnitude relativa dos seus bens económicos.
Parece-me que as discrepâncias conhecidas entre os princípios que professam os igualitaristas e a forma como, em geral, conduzem a sua própria vida confirma a minha sugestão que as situações que envolvem a desigualdade são moralmente inquietantes apenas quando violam o ideal de suficiência. O problema não é que alguns igualitaristas aceitem hipocritamente os elevados rendimentos e as oportunidades especiais para os quais, segundo as teorias morais que defendem, não há justificação. É, pelo contrário, que muitos igualitaristas (incluindo muitos defensores académicos desta teoria) não estão realmente preocupados com a questão da situação económica não ser igual à dos demais. Acreditam que eles próprios têm dinheiro apenas suficiente para o que é importante para eles e, portanto, não estão demasiado preocupados com o facto de algumas pessoas serem consideravelmente mais ricas do que eles. Sem dúvida, muitos igualitaristas considerariam que é algo bastante mau e censurável, relativamente à sua própria vida, preocupar-se com comparações económicas deste tipo. Além de que apesar das consequências das teorias a que reclamam adesão, sentiriam-se consternados com a possibilidade dos seus filhos crescerem com essas preocupações.»

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[1] R. Dworkin, “Why liberals should care about equality”, no seu A Matter of Principle, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1985, p. 206. Os números entre parêntises referem-se às páginas deste ensaio.

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