sexta-feira, 4 de abril de 2008

Isaiah Berlin, "Dois Conceitos de Liberdade" (Parte IV)

«II A noção de liberdade positiva

O sentido "positivo" da palavra "liberdade" provém do desejo que o indivíduo nutre de ser o seu próprio senhor. Desejo que a minha vida e as minhas decisões dependam de mim mesmo, e não de forças externas de qualquer tipo. Desejo ser o instrumento dos meus próprios actos de vontade, e não dos de outros homens. Desejo ser um sujeito, e não um objecto; ser movido pela razão, por objectivos conscientes, que, são meus, e não por causas que me afectam como que de fora. Desejo ser alguém, e não ninguém; um agente - decidindo, e não deixando que outros decidam -, guiado por mim mesmo e não influenciado pela natureza externa ou por outros homens como se eu fosse uma coisa, um animal ou um escravo incapaz de desempenhar um papel humano, isto é, de conceber metas e políticas próprias e de realizá-Ias. Isso é pelo menos parte do que quero dizer quando afirmo que sou racional e que é a minha razão que me distingue como ser humano do resto do mundo. Acima de tudo, desejo ser consciente de mim mesmo como alguém que age, tem vontade e pensa, responsável pelas minhas escolhas e capaz de explicá-Ias a partir das minhas ideias e dos meus propósitos. Sinto-me livre na medida em que acredito que isso seja verdade, e escravizado na medida em que sou convencido do contrário.
A liberdade que consiste em ser o meu próprio senhor e a liberdade que consiste em não ser impedido por outros homens de escolher como agir podem parecer, diante das circunstâncias, conceitos não tão distantes entre si do ponto de vista lógico - nada mais do que as formas negativa e positiva de dizer mais ou menos a mesma coisa. No entanto, as noções "positiva" e "negativa" de liberdade desenvolveram-se historicamente em direcções divergentes, nem sempre por passos logicamente respeitáveis, até entrarem por fim em conflito directo uma com a outra.
Um modo de tornar isso claro é tratar do momentum independente que a metáfora do auto-domínio, inicialmente talvez bem inofensiva, adquiriu. "Sou o meu próprio senhor"; "Não sou escravo de nenhum homem"; mas não posso ser (como os platónicos ou os hegelianos tendem a dizer) um escravo da natureza? Ou das minhas paixões" desenfreadas"? Essas não são algumas das espécies do idêntico género "escravo" - algumas políticas ou legais, outras morais ou espirituais? Os homens não experimentaram a libertação da escravidão espiritual ou da escravidão à natureza, e ao longo desse processo não se tornaram conscientes, de um lado, de um eu que domina e, de outro, de algo dentro deles que é controlado? Esse eu dominante é identificado de diversas formas: com a razão, com a minha "natureza mais elevada", com o eu que calcula e visa o que o satisfará a longo prazo, com o meu eu "real", "ideal" ou "autónomo", ou com o meu eu "na sua melhor forma"; que é então contrastado com o impulso irracional, os desejos não controlados, a minha natureza "mais baixa", a busca de prazeres imediatos, o meu eu "empírico" ou "heterónomo", varrido por todo assomo de desejo e paixão, precisando ser rigorosamente disciplinado se quiser algum dia elevar-se à plena altura de sua natureza "real". No presente, os dois eus podem ser representados como que divididos por uma lacuna ainda maior; o eu real pode ser concebido como algo mais amplo que o individual (como o termo é normalmente compreendido), como um "conjunto" social do qual o indivíduo é um elemento ou aspecto: uma tribo, uma raça, uma Igreja, um Estado, a grande sociedade dos vivos e mortos e dos nascituros. Essa identidade é então identificada como o eu "verdadeiro" que, impondo a sua vontade colectiva ou "orgânica" única sobre seus recalcitrantes "membros", alcança a sua própria liberdade "mais elevada" e, portanto, também a deles. Os perigos de se usarem metáforas orgânicas para justificar a coerção de alguns homens por outros, a fim de alçá-los a um nível "mais elevado" de liberdade, têm sido frequentemente apontados. Mas o que confere a esse tipo de linguagem a sua plausibilidade é o facto de que reconhecemos ser possível, e às vezes justificável, coagir os homens em nome de alguma meta (vamos dizer, a justiça ou a saúde pública) que eles próprios procurariam atingir se fossem mais esclarecidos, mas que não o fazem porque são cegos, ignorantes ou corruptos. Isso torna fácil que eu me imagine a coagir outros para o seu bem, no interesse deles, e não no meu. Estou assim a afirmar que sei, mais do que eles próprios, do que eles verdadeiramente precisam. O que isso - quando muito - acarreta é que eles não me resistiriam se fossem racionais, tão sábios quanto eu e compreendessem os seus interesses como eu os compreendo. Mas afirmaria muito mais do que isso. Posso declarar que eles visam realmente àquilo a que, no seu estado ignorante, conscientemente resistem, porque existe dentro deles uma entidade oculta – a sua vontade racional latente ou o seu "verdadeiro" propósito - e que essa entidade, embora desmentida por tudo o que eles manifestamente sentem, fazem e dizem, é o seu eu "real", do qual o pobre eu empírico no espaço e tempo talvez pouco ou nada saiba; e que esse espírito interior é o único eu que merece ter os seus desejos considerados
[1]. Uma vez adoptada essa visão, estou em posição de ignorar os desejos reais dos homens ou das sociedades, de amedrontá-los, oprimi-los, torturá-los em nome e no interesse dos seus eus "reais", com base no conhecimento seguro de que tudo o que é a verdadeira meta do homem (a felicidade, o desempenho do dever, a sabedoria, uma sociedade justa, a auto-realização) deve ser idêntico à sua liberdade - a escolha livre do seu eu "verdadeiro", ainda que frequentemente submerso e desarticulado.»

............................................................................
[1] "O ideal da verdadeira liberdade é o máximo de poder para todos os membros da sociedade humana sem distinção alguma, a fim de que desenvolvam o melhor de si mesmos", disse T. H. Green em 1881 (Lecture on liberal legislation and freedom of contact, p. 200 in T. H. Green, Lectures on the principles of political obligation and other writings, ed. Paul Harris e John Morrow, Cambridge, 1986). À parte a confusão de liberdade com igualdade, isso acarreta que se um homem escolhesse um prazer imediato - que (na visão de quem?) não o tornaria capaz de desenvolver o melhor de si mesmo (qual dos eus?) - o que ele estaria a exercer não seria a "verdadeira" liberdade: e que, se privado dessa liberdade, ele não perderia nada de muito importante. Green era um liberal genuíno, mas muitos tiranos poderiam usar essa fórmula para justificar seus piores actos de opressão.

Sem comentários: