terça-feira, 1 de abril de 2008

Adrian Oldfield, "Cidadania e Comunidade: Republicanismo Cívico e Mundo Moderno (Parte I)

«[No pensamento liberal], a cidadania é um “estatuto”, um estatuto que se procura e que, uma vez atingido, deve ser mantido. Uma diferença fundamental entre o mundo ocidental moderno e as épocas anteriores, radica na dificuldade de saber quem pode legitimamente considerar-se cidadão. Há uma certa distância entre o mundo de Hobbes e de Locke […] e o nosso mundo, em que, pelo menos do ponto de vista retórico, todos os seres humanos – homens, mulheres e crianças - têm direitos de cidadania, ainda que os últimos só os possam exercer plenamente quando atingirem a maioridade. […]
A função do domínio político é servir os interesses e propósitos dos indivíduos, e proteger os cidadãos no exercício dos seus direitos, esforçando-se por os manter intactos na procura dos interesses e propósitos individuais e colectivos que os cidadãos possam ter. Os arranjos políticos são, por isso, encarados em termos utilitaristas. Na medida em que proporcionam a protecção exigida pelos cidadãos e pelos grupos, para que possam exercer os seus direitos e perseguir os seus propósitos, os cidadãos pouco mais têm a fazer do que escolher os seus líderes. O dever dos cidadãos é tolerar as decisões obrigatórias tomadas pelos líderes políticos. Quando outros tipos de arranjos políticos ameaçam esta situação, os cidadãos passar a ter o dever se defender. Se os arranjos políticos deixarem, por qualquer razão, de assegurar a liberdade e a segurança, os cidadãos têm o direito de reclamar a sua alteração, no exercício do seu direito de resistência. Segundo esta perspectiva, um dos direitos dos cidadãos é o de serem politicamente activos, participando na vida pública de formas mais substantivas do que apenas escolher os líderes políticos. Contudo, porque é um direito, os cidadãos, partindo do pressuposto que possuem os recursos e a oportunidade, escolhem quando participar e até se participam. Escolher não participar não anula o seu estatuto de cidadãos.
Para os seus defensores, a maior vantagem do individualismo liberal - uma perspectiva que baseia as relações entre os cidadãos e a sociedade nos direitos individuais – é não postular qualquer tipo de concepção de vida boa. Defende os procedimentos e as regras, e a manutenção de um enquadramento institucional, dentro do qual os indivíduos, com os seus interesses e propósitos dados ou escolhidos, perseguem as suas próprias concepções de vida boa. A justiça é vista como um “remédio”, que assegura a possibilidade de que cada indivíduo perseguir a sua própria concepção de vida boa sem prejudicar, de formas inaceitáveis, os projectos de vida de outros.
Por detrás de um tal argumento está a visão do indivíduo como agente autónomo. Os indivíduos escolhem por si os seus próprios projectos de vida e solicitam que o estado os autorize e os proteja adequadamente. Esta responsabilidade individual pela escolha e pela concretização dos seus projectos de vida, contribui para o necessário desenvolvimento moral dos indivíduos. A perspectiva que baseia as relações entre os cidadãos e a sociedade nos direitos individuais constrói-se sobre a autonomia e responsabilidade dos agentes. Mas enquanto as formas de vida colectiva, por exemplo, relações de boa vizinhança, relações de classe e nação, não integrarem de forma substantiva a concepção de vida boa do agente, não serão encaradas por este como instrumentos necessários para que possa perseguir qualquer projecto que tenha escolhido. O que se exige ao indivíduo é que respeite a autonomia dos outros, bem como um conjunto mínimo de deveres cívicos para a manutenção do estado – votar, pagar impostos e, quando o próprio estado estiver a ser ameaçado, prontidão para ocorrer em seu auxílio através de alguma forma de serviço militar…
Uma perspectiva alternativa de relacionamento entre os indivíduos e a sociedade deve, se quiser ser levada a sério, acomodar-se ao facto de, no mundo ocidental, os indivíduos conceberem-se a si próprios como possuidores de direitos e como agentes autónomos, no sentido em que, de certa forma, são independentes da sociedade em que vivem e responsáveis pelas suas vidas. Os indivíduos autónomos são o objecto de qualquer teoria política, embora não sejam o único objecto.
Há diversas razões pelas quais é necessária uma visão alternativa. A primeira e mais óbvia é que a perspectiva baseada nos direitos não esgota verdadeiramente tudo o que está envolvido nas relações entre os indivíduos e a sociedade. Os sujeitos não se vêem a si próprios apenas como sujeitos de direitos, nem a sua atitude relativamente às formas de vida colectiva é meramente instrumental. Os sujeitos reconhecem, em particular, que possuem deveres mais extensos que o mínimo cívico exigido e que respeitam os outros, ao mesmo tempo que reconhecem uma identidade social – como pais e filhos, como membros de uma classe, de uma religião ou de uma etnia, como vizinhos e como amigos, como profissionais, ou mesmo porque reconhecem uma nacionalidade. Algumas destas identidades nacionais são seguramente escolhidas pelos indivíduos, mas um número significativo surge como o que é “recebido” na sua existência: seguramente reconhecido, mas adquirido involuntariamente e frequentemente imperecível. A renúncia à família, à fé ou ao país, nem sempre é uma opção, já que provoca um profundo mal-estar. Estas identidades sociais são tão expressivas como outras formas de vida colectiva e muitas implicam, explicitamente, um conjunto de deveres, o que impossibilita que os indivíduos possam encarar a vida colectiva como meramente instrumental.
Se uma dessas identidades sociais que implica um conjunto específico de deveres é a do cidadão, então uma das formas de vida colectiva será a comunidade política. Esta é a segunda razão para defender uma perspectiva alternativa: o reacender do interesse na ideia de comunidade. Existe um debate aceso entre liberais e comunitaristas e tem havido discussões incisivas sobre se existe ou não uma concepção significativa de comunidade no mundo moderno, que possa ser consistente com a autonomia continuada dos indivíduos. O tema da comunidade tem sido encarado de diversas formas e frequentemente pelas mesmas pessoas que têm manifestado preocupação por aquilo que consideram o vazio relativo da concepção de cidadania do individualismo liberal. Uma tese que tem sido defendida de forma consistente na bibliografia tem sido que o mundo moderno ou não tem ou perdeu qualquer sentido de comunidade. Para alguns não se trata verdadeiramente de uma perda, mas de um ganho palpável, sobretudo quando reflectiam sobre as comunidades fechadas e hierarquizadas do mundo pré-industrial. Fugir ao círculo mortal destas comunidades só podia beneficiar o indivíduo em termos de ganhos de liberdade e autonomia. Outros, contudo, lamentaram o declínio da solidariedade e da coesão social que as comunidades antigas alegadamente possuíam, sendo que este declínio seria o corolário do triunfo do indivíduo. Outros ainda olharam, por vezes com uma nostalgia doce e franca, para as comunidades políticas do mundo antigo como espaços em que a vida era efectivamente vivida como “um todo” e onde os indivíduos coexistiam de forma solidária. Estas pessoas rapidamente acordaram dessa nostalgia, concluíram que estavam simplesmente a dormir e que tais sonhos nada têm que ver com o mundo moderno. Mas precipitaram-se, porque se o pensamento político ocidental alguma vez considerou em conjunto os temas da cidadania e da comunidade, foi na tradição do republicanismo cívico, que tem origem no pensamento ético e político de Aristóteles. Esta tradição, reforçada e modificada por uma sucessão de pensadores políticos posteriores que vão de Maquiavel a Rousseau, passando pelo pensamento republicano inglês e americano dos séculos XVII e XVIII, é a que enfrenta de forma mais cogente os temas gémeos da cidadania e da comunidade.»

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