quinta-feira, 10 de abril de 2008

Amartya Sen, "Igualdade de quê?" (Parte III)

«Diversidade humana e igualdade básica

Os seres humanos diferem uns dos outros de muitos modos distintos. Diferimos quanto a características externas e circunstanciais. Começamos a vida com diferentes quantidades de riqueza e responsabilidade herdadas. Vivemos em ambientes naturais diferentes - alguns mais hostis do que outros. As sociedades e comunidades às quais pertencemos oferecem oportunidades bastante diferentes quanto ao que podemos ou não podemos fazer. Os factores epidemiológicos da região em que vivemos podem afectar profundamente nossa saúde e bem-estar.
Mas além dessas diferenças nos ambientes natural e social e nas características externas, também diferimos ao nível das nossas características pessoais (por exemplo, idade, sexo, aptidões físicas e mentais). E estas são importantes para avaliar a desigualdade. Por exemplo, rendimentos iguais podem ainda acentuar mais a desigualdade do nosso potencial de fazer o que podemos valorizar fazer. Uma pessoa incapacitada não pode funcionar da mesma forma que uma pessoa "capaz", embora tenham ambas exactamente o mesmo rendimento. Portanto, a desigualdade em termos de uma variável (por exemplo, rendimento) pode conduzir-nos no sentido, bem oposto, da igualdade no âmbito de outra variável (por exemplo, o potencial para realizar funções ou o bem-estar).
As vantagens e desvantagens relativas que as pessoas têm, comparadas umas com as outras, podem ser julgadas em termos de muitas variáveis diferentes, por exemplo, os seus respectivos rendimentos, riquezas, utilidades, recursos, liberdades, direitos, qualidade de vida, e assim por diante. A pluralidade de variáveis que podemos focalizar (as variáveis focais) para avaliar a desigualdade interpessoal faz com que seja necessário enfrentar, a um nível bem elementar, uma decisão difícil relativamente à perspectiva a ser adoptada. Este problema da escolha do "espaço de avaliação" (quer dizer, a selecção das variáveis focais relevantes) é crucial para analisar a desigualdade.
As diferenças de focalização são particularmente importantes devido à diversidade humana generalizada. Se as pessoas fossem todas exactamente similares, a igualdade num espaço (por exemplo, rendimentos) tenderia a ser consistente com as igualdades noutros (por exemplo, saúde, bem, estar, felicidade). Uma das consequências da "diversidade humana" é que a igualdade num espaço tende a andar, de facto, junto com a desigualdade noutro.
Por exemplo, podemos não conseguir exigir a igualdade dos níveis de bem-estar e de outra "padronização" deste tipo - para usar uma expressão útil de Nozick - se tivermos exigido a igualdade de direitos libertários tal como são especificados por Nozick (1974). Se são aceites, desta forma, direitos iguais, então também devem ser todas as suas consequências, e isso incluiria todas as desigualdades geradas de rendimentos, utilidades, bem, estar e liberdades positivas para fazer isto ou ser aquilo.
Não estou a examinar aqui o quão convincente é esta defesa
[1]. A questão importante na presente discussão é a natureza da estratégia para justificar a desigualdade por meio da igualdade. A abordagem de Nozick é um exemplo lúcido e elegante desta estratégia geral. Se urna pretensão de que a desigualdade em algum espaço significativo é correcta (ou boa, ou aceitável, ou tolerável) vai ser defendida com razões (e não, digamos, atirando nos que discordam), a forma do argumento consiste em mostrar que esta desigualdade é urna consequência da igualdade em algum outro espaço - fundamentalmente mais importante. Dado o amplo acordo sobre a necessidade de haver uma igualdade na "base", e também a conexão desse amplo acordo com a necessidade de imparcialidade entre os indivíduos (discutida anteriormente), os argumentos cruciais têm de ser sobre a razoabilidade das "bases" escolhidas. Por isso, a pergunta "igualdade de quê?" não é, neste contexto, materialmente distinta da interrogação: "qual é o espaço correcto para a igualdade básica?". A resposta que damos a "igualdade de quê?" não somente endossará a igualdade naquele espaço escolhido (a variável focal relacionada com as exigências da igualdade básica), mas terá consequências de longo alcance sobre os padrões distributivos (incluindo as necessárias desigualdades) nos outros espaços. A "Igualdade de quê?" é de facto uma questão momentosa e fundamental.»


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[1] Algumas críticas a esta abordagem podem ser encontradas em Sen (1982b, 1984).

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