domingo, 13 de abril de 2008

Amartya Sen, "Igualdade de quê?" (Parte VI)

«MEIOS E LIBERDADES
Foi sugerido antes que a classe de teorias normativas dos arranjos sociais que nos interessa exige - por razões que discutimos - a igualdade num ou noutro espaço. Esta igualdade serve como a "igualdade básica" do sistema e tem implicações sobre os padrões distributivos nos outros espaços. De facto, a igualdade básica pode ser directamente responsável pelas desigualdades nos outros espaços.
Pode ser útil discutir um ou dois exemplos da escolha de espaço e da sua importância. Na filosofia política e ética modernas, a voz mais influente nos anos recentes tem sido a de John Rawls (1971). A sua teoria da "justiça como equidade" fornece um exemplo interessante e importante da escolha do espaço e das suas consequências. No seu "Princípio da Diferença", a análise da eficiência e a da igualdade estão ambas relacionadas com a parcela individual de bens primários
[1].
Com esse sistema, a diversidade de riqueza e talentos herdados não geraria desigualdade de rendimento do mesmo modo que no sistema de Nozick, já que os bens primários - sobre cuja distribuição o Princípio da Diferença de Rawls impõe um requisito igualitário - incluem rendimentos entre os seus elementos constitutivos. Os rendimentos estão, portanto, directamente contempladas nas exigências rawlsianas de igualdade básica. Mas a relação entre bens primários (incluindo rendimentos), por um lado, e bem-estar, por outro, pode variar por causa das diversidades pessoais na possibilidade de converter bens primários (incluindo rendimentos) em realizações de bem-estar. Por exemplo, uma mulher grávida pode ter que superar desvantagens para viver confortavelmente e bem que um homem com a mesma idade não necessite superar, mesmo quando ambos têm exactamente o mesmo rendimento e outros bens primários.
De igual modo, a relação entre bens primários e as liberdades para cada um perseguir os seus objectivos - de bem-estar e outros - pode variar também
[2]. Somos diferentes não apenas em relação às nossas riquezas herdadas, mas também em relação às nossas características pessoais. Ao lado das variações puramente individuais (por exemplo, aptidões, predisposições, diferenças físicas), há também contrastes sistemáticos entre grupos (por exemplo, entre mulheres e homens em aspectos específicos tais como a possibilidade de gravidez e o cuidado neonatal dos bebés). Com o mesmo pacote de bens primários, uma grávida ou uma mulher com crianças para cuidar têm muito menos liberdade para perseguir as suas metas do que um homem sem tais incumbências. A relação entre bens primários, de um lado, e liberdade assim como bem-estar, de outro, pode variar com as variações interpessoais e intergrupais de características específicas[3].
As desigualdades em diferentes "espaços" (por exemplo, rendimentos, bens primários, liberdades, utilidades, outras realizações, outras liberdades) podem ser bastante diferentes umas das outras, dependendo das variações interpessoais nas relações entre variáveis distintas mas interconectadas. Uma consequência do facto básico da diversidade humana é tornar particularmente importante que nos certifique mos do espaço no qual a desigualdade vai ser avaliada. A pessoa 1 pode ter mais utilidade que 2 e 3, enquanto 2 tem mais rendimentos que 1 e 3, e 3 é livre para fazer muitas coisas que 1 e 2 não podem. E assim por diante. Mesmo quando os rankings são os mesmos, as distâncias relativas (quer dizer, a extensão da superioridade de uma posição sobre outra) podem ser bastante diversas em diferentes espaços.
Alguns dos problemas mais centrais do igualitarismo surgem precisamente por causa do contraste entre a igualdade nos diferentes espaços. A ética da igualdade tem de levar em conta adequadamente as nossas diversidades generalizadas, que afectam as relações entre os diferentes espaços. A pluralidade das variáveis focais pode fazer uma grande diferença precisamente devido à diversidade dos seres humanos.»


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[1] É o Princípio da Diferença que trata da distribuição de bens primários nos dois princípios rawlsianos da justiça como equidade. É importante observar - de forma que não se simplifique em excesso as questões - que (1) o primeiro princípio de Rawls, que tem prioridade, lida com as liberdades pessoais (e as exigências de igual liberdade); (2) o Princípio da Diferença trata não somente de considerações distributivas mas também da eficiência (no sentido de que qualquer mudança que melhora a posição de todos - incluindo o grupo que se encontra na pior situação - é vista como uma melhoria); e (3) os princípios afirmados não decorrem de fórmulas mecânicas, e uma boa extensão da explicação e análise do seu uso é apresentada por Rawls como um elemento incluído na sua teoria da justiça como equidade (para esclarecimentos recentes sobre as exactas pretensões da sua teoria, ver Rawls 1985, 1988a, 1988b, 1988c, 1990; ver também Laden 1991a). Apesar destas qualificações, é óbvio que a igualdade de parcelas de bens primários tem um lugar importante na estrutura da ética política de Rawls.
[2] Sobre esta questão, ver Sen (1990b).

[3] Rawls (1985, 1987, 1988a) que enfatizou outro tipo de diversidade entre os indivíduos, o das diferenças entre as suas respectivas concepções de bem. Isto leva a diferenças nos objectivos que eles têm, respectivamente, razões para perseguir. Essa heterogeneidade tem de ser distinguida da diversidade na capacidade para converter recursos e bens primários na satisfação de objectivos (ou na capacidade para satisfazer objectivos). Nenhuma das diversidades implica a outra, e é importante considerar ambos os tipos de variações interpessoais. Estas questões são discutidas no cap. 5.

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